Entrevista

Literacia mediática: “As pessoas têm de entrar num cepticismo saudável”

O investigador em literacia mediática Vítor Tomé diz que é preciso dar mais formação a todas as faixas etárias e grupos sociais para que saibam destrinçar o que é informação e o que é desinformação.

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Vítor Tomé Daniel Rocha

Entre 41 países europeus, Portugal ocupa o 14.º lugar no índice de literacia mediática de 2022, apresentado no ano passado pela European Policies Initiative (EuPI) e pelo Open Society Institute — Foundation Sofia (OSI — Sofia). Olhando para estes dados, Vítor Tomé, perito internacional em Educação para a Cidadania Digital do Conselho da Europa, considera que Portugal está “bem cotado” em termos europeus, mas não deixa de ressalvar que há ainda muito trabalho a fazer. Em entrevista ao PÚBLICO, admite que esse trabalho deve começar cedo, na escola, "no terreno", junto dos alunos, dos professores e dos pais, tendo em conta os vários contextos, nota o também investigador do Iscte, que está ligado a vários projectos de literacia mediática.

Os jornais escolares, como os que o PÚBLICO vai premiar esta terça-feira, podem ser uma ferramenta de promoção da literacia mediática se desafiarem os jovens a questionar a escola, a comunidade, a “intervir socialmente”, acredita. Mas a formação nesta área, essencial nos dias que correm, deve ser transversal a todos os grupos etários, a todos os grupos sociais, sublinha Vítor Tomé, que diz ainda ter grande esperança no Plano Nacional para a Literacia Mediática, que agora dá os primeiros passos. “Não é transformar cada pessoa num fact-checker profissional, mas é transformar numa pessoa que tenha a capacidade de verificar essa informação de forma cada vez melhor.”

Como avalia o desempenho de Portugal em relação à literacia mediática?
Diria que, do ponto de vista legislativo, estamos bem. Temos uma política que defende a literacia mediática. Podia ser mais forte nas escolas, podia ter uma disciplina específica, mas a verdade é que está nas nossas escolas. Do ponto de vista político, penso que estamos a trilhar caminho. Está em curso o Plano Nacional de Literacia Mediática. No terreno, precisamos de aumentar os níveis de literacia mediática dos cidadãos. Não é fácil, até porque há aqui muitos contextos, cidadãos diferentes. Não estamos ao nível de uma Finlândia, mas estamos bem cotados em termos europeus. Ainda há muito trabalho a fazer, mas temos feito um trabalho na formação de professores, dos próprios jornalistas. Mas se me perguntarem se Portugal tem um nível de literacia mediática excepcional, não, não tem.

Se nós precisarmos de dar uma carta de condução a cada cidadão português, vamos às escolas de condução. O problema é que, no caso da literacia mediática, a carta de condução deixa de valer muito depressa, porque há uma evolução brutal dos media que é exponencial e permanente. Há muito trabalho a fazer, mas diria que estamos no bom caminho.

Como é que define o que é a literacia para os media?
Não há um acordo em termos de designações, nem de definições. Em termos básicos, a literacia dos media é o quê? Saber aceder aos media, saber usar a tecnologia, saber interpretar criticamente os conteúdos dos media, saber produzir, fazendo chegar as nossas mensagens a alguém e depois provocar mudança, intervir socialmente. Isto é a base. Mas as designações que existem são tantas. Em Portugal usamos muito a literacia mediática, a literacia dos media, mas depois pode ser a educação para os media, pode ser a literacia dos novos media, pode ser digital media literacy.

Faz sentido que a literacia mediática esteja nos currículos escolares, por exemplo, como uma disciplina?
O Conselho da Europa faz recomendações, e há uma recomendação, assinada pelos ministros em Novembro de 2019, para incluir nos currículos a cidadania digital. O que é a cidadania digital? É a pessoa conseguir ter as condições para participar na sociedade online para trabalhar, para se divertir, para aprender, para comunicar de forma positiva, segura e ser um cidadão de pleno direito online. O nosso objectivo [do Conselho da Europa] é que a cidadania digital esteja no currículo escolar, de uma forma ou de outra, dos países europeus.

Um dos projectos em que já participou foi em Caneças, Odivelas, com alunos do pré-escolar e do primeiro ciclo, em 2015. Tem defendido que as crianças devem ter um papel de liderança na literacia mediática. Como é que isso se pode fazer?
Nesse projecto, que se chamava Cidadania Digital, percebemos que não havia diálogo entre alunos, pais e professores. Normalmente, paravam para falar quando havia problemas. Então, numa escola muito pequenina em Caneças, a Escola Artur Alves Cardoso, decidimos criar um jornal escolar. O que é que acontecia? Os alunos desenvolviam temas que envolviam também a comunidade. Faziam reportagens, faziam perguntas à família, mas também a outras pessoas do meio. Era deixá-los trabalhar os media para perceberem como os media funcionavam.

Com as crianças do pré-escolar, pedimos que desenhassem a escola e perguntámos-lhes o que gostavam que a escola fosse. A escola de primeiro ciclo desapareceu. Havia o refeitório, as salas de pré-escolar, um campo de futebol muito mais pequenino, uma horta, uma piscina, insufláveis. A partir daí, criámos uma horta, que ainda hoje existe. A escola foi melhorando alguns aspectos. Os pais também conseguiram que o campo de futebol tivesse um piso sintético.

No fundo, as crianças vão percebendo gradualmente como é que os media funcionam e como é que podem usá-los para intervir. Isto faz-se muito devagarinho, com uma grande colaboração dos professores e dos pais. A lógica de fazer educação para os media depende muito do contexto. Aquilo que é importante fazer numa escola pode ser diferente noutra.

Os jornais escolares podem ser uma ferramenta importante?
Em França, por exemplo, os jornais escolares têm uma força enorme. Em Portugal, já houve muito mais jornais escolares, o que também pode ter a ver com as questões contextuais das escolas e o custo de produzir jornais impressos. Eu considero que os jornais escolares são uma boa ferramenta, sejam eles em papel ou digitais, porque são uma forma de intervir socialmente. É importante que os alunos tenham, de facto, voz. O centro do jornal tem de ser a discussão da escola, da comunidade.

Em Caneças, uma das coisas que fizemos foi estudar segurança rodoviária. E, depois, os alunos saíram da escola com o professor e vieram cá para fora ver se aquilo que tinham estudado existia. Quando perceberam que não, fizeram uma maquete, explicaram onde é que devia haver passadeiras, semáforos, bancos. Chamaram o presidente da junta, escreveram uma carta ao presidente da câmara, enviaram cópia da maquete, colocaram o vídeo online, e explicaram que queriam aquilo arranjado.

Está em marcha o Plano Nacional de Literacia Mediática. Que impacto é que pensa que terá?
As expectativas são bem maiores do que antes, porque, quando foi anunciado em Abril de 2023, havia uma determinada verba que nos parecia ser muito redutora. Neste momento, há outra verba e a expectativa é que, de facto, trabalhando em conjunto, seja possível fazer aqui algo estruturado, sustentado, que não se centre apenas na formação de professores ou nas escolas, mas que abranja toda a sociedade, todas as faixas etárias, todos os grupos sociais. Temos de perceber os contextos das pessoas com quem estamos a trabalhar. Esta lógica de criar projectos de intervenção pronto-a-vestir não resulta. Eu diria que precisamos de projectos de intervenção de alfaiate. E isso demora muito tempo a fazer.

Há estudos internacionais, como o PISA, que têm revelado que os alunos têm grandes dificuldades em distinguir um facto de uma opinião. Como olha para este dado e que trabalho falta fazer?
Eu diria também que muitos adultos têm uma dificuldade extrema de distinguir um facto de uma opinião. E, isso, penso que se consegue fazer com treino e com formação, havendo uma educação mais aberta. Quando digo mais aberta é que não pode ser uma responsabilidade só da escola. Todos têm de participar. Por exemplo, muitas pessoas não fazem a mínima ideia de qual é o objectivo do jornalismo e portanto às vezes distinguir um facto de uma opinião é algo extremamente difícil para pessoas que nunca foram treinadas a fazê-lo.

Eu diria que é necessário começar a trabalhar isto desde cedo. Na Finlândia, começaram a trabalhar na Matemática a interpretação de gráficos no primeiro ciclo. E é interessantíssimo que, à medida que os jovens foram avançando no percurso escolar, a capacidade que têm de descodificar e de verificar desinformação gráfica é brutal. Porque a escala de um gráfico pode querer dizer muita coisa. Na escala de um gráfico consigo fazer com que 0,3 pontos percentuais pareçam uma diferença do dobro.

Vamos cair sempre na escola, mas é preciso começar a trabalhar também com os maiores de 65, por exemplo, nas universidades seniores. É preciso trabalhar com os jovens adultos, com os pais, com os professores. Por isso é que tenho grande esperança no plano nacional, porque é integrado, juntando as entidades que contactam com toda esta diversidade social que temos.

Quando se fala em literacia mediática, além dos media tradicionais, pensamos imediatamente nas redes sociais, em inteligência artificial. Que desafios nos trouxeram?
Para tentar simplificar, diria que trazem muitos desafios, mas desde logo há dois que são importantíssimos: as pessoas enquanto audiência e as pessoas enquanto participantes. Enquanto audiência, é óbvio que a quantidade de informação disparou. É brutal. É uma informação que chega toda numa máscara muito similar. Eu escrevo lá o que é que almocei ou eu escrevo lá qual vai ser a próxima teoria científica e a máscara é a mesma. É uma lógica muito baseada na imagem, no título.

Não há uma hierarquização da informação, como existe nos meios de comunicação.
Nas redes sociais, sobretudo no telemóvel, vou passando a informação e é como se eu estivesse numa slot machine. O que é que me vai sair a seguir? É como se estivesse a puxar permanentemente a manivela. E essa lógica de slot machine mudou completamente a maneira como trabalhamos e como lidamos com a informação. Não conseguimos distinguir entre uma notícia e uma publicidade porque a máscara é sempre a mesma.

Depois, enquanto produtores [de informação], dar um megafone a cada um trazia a lógica de mais participação social, de uma democracia muito maior, e, na verdade, não foi isso. Há uma metáfora muito interessante do Ramon Salaverria [professor catedrático de Jornalismo na Universidade de Navarra] que diz que as redes sociais foram anunciadas como a ágora de Atenas, mas revelaram-se ser o Coliseu de Roma. A progressão do discurso do ódio é brutal, a polarização política, os extremismos. Isto deriva também de não termos a capacidade de ler em profundidade, de sairmos e conseguirmos olhar para as coisas. Estamos dentro de uma bolha, de grupos, e, muitas vezes, estamos dentro das nossas bolhas a tentar olhar para o mundo.

Quando abro uma rede social ou quando abro a Internet, não abri a janela e estou a ver o mundo. Estou à janela que me estão a mostrar. E aí entramos na inteligência artificial e nos algoritmos. Muitas vezes, as pessoas pensam que estão, de facto, a ter uma visão de espectro, quando, na verdade, estão a ter uma visão de funil só sobre aquilo que lhes querem mostrar.

A desinformação serve-se de ferramentas de inteligência artificial. Vai ser ainda mais difícil distinguir o que é real do que é fabricado?
Não sei para onde é que vamos, mas sei desde já que, se não houver uma regulação da inteligência artificial, vai ser o que for. Vai ser um faroeste, digo eu. Será quase impossível distinguir [entre o que é real e o que é fabricado]. Os deepfakes — ou os 'cheapfakes', porque é muito barato fazer deepfake — circulam com grande qualidade. A sintetização do som, da voz, a imagem... Todas as imagens podem ser geradas. Eu diria que cada vez necessitamos mais de literacia dos media. As pessoas têm de saber como é que funciona o algoritmo, como é que é possível criar deepfakes, para perceberem que podem estar a ser enganadas. As pessoas têm de entrar numa lógica de cepticismo saudável, e só fazem isso se tiverem conhecimentos suficientes que lhes permitam fazer isso.

É preciso sermos mais críticos?
É preciso analisar, é preciso verificar fontes. Quando aparece uma informação qualquer, tenho de verificar quem são as fontes, de ler o texto até o fim, tenho de perceber se o texto tem alguma coisa a ver com o título, tenho de ver as datas. Não é transformar cada pessoa num fact-checker profissional, mas em alguém que tenha a capacidade de verificar essa informação de forma cada vez melhor.