Violadas durante a guerra da Etiópia, estas mulheres são agora rejeitadas pelas famílias

Durante os dois anos de guerra, estima-se que mais de 100 mil mulheres tenham sido agredidas sexualmente e várias engravidaram. Shila sonhava sufocar o filho à nascença.

Shila, a survivor of sexual enslavement, poses for a portrait at the Daughters of Charity skills training center in the town of Mekelle in the Tigray region of northern Ethiopia. (MUST CREDIT: Arlette Bashizi for The Washington Post)
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Violadas durante a guerra da Etiópia, estas mulheres são rejeitadas pelas famílias Arlette Bashizi
Another survivor of systematic sexual violence is shown in the skills training center of the Daughters of Charity in Mekelle. (MUST CREDIT: Arlette Bashizi for The Washington Post)
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Violadas durante a guerra da Etiópia, estas mulheres são rejeitadas pelas famílias Arlette Bashizi
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Shila sobreviveu a três meses de escravatura sexual durante a guerra civil da Etiópia e depois ao nascimento de um bebé filho do agressor. Não contou a ninguém e disse que a criança foi o resultado de uma visita clandestina do marido, membro das Forças de Defesa da região do Tigré.

Passados três longos anos, o marido regressou definitivamente, recorda a mulher. Shila pensava que ele estava morto. Quando o militar tirou o chapéu e viu a silhueta dele na escuridão, teve um colapso.

"Durante anos, desejei que ele voltasse para casa. Mas também receava que ele contasse às pessoas o que tinha acontecido e me rejeitasse", conta, à medida que as lágrimas lhe escorrem pelo rosto.

Durante os dois anos de guerra civil no Tigré, no Norte da Etiópia, estima-se que mais de 100 mil mulheres tenham ter sido violadas, segundo dados de um estudo exaustivo realizado até à data sobre estes ataques conduzido pelo bioestatístico Kiros Berhane, da Universidade de Columbia, em Nova Iorque. As várias mulheres que deram à luz em consequência disso debatem-se com uma agonia latente e são, muitas vezes, ostracizadas até pelas famílias.

Foram vítimas de dois actos, um durante o conflito que opôs os militares da Etiópia e os soldados aliados da Eritreia aos rebeldes de Tigré, e outro pelas próprias comunidades, mesmo depois do cessar-fogo, que dura há um ano, ter acalmado as hostilidades.

Uma dúzia de sobreviventes de violação, a maioria a criar filhos pequenos, relataram em entrevistas, sob condição de anonimato, os esforços que fazem para reconstruir a vida. Segundo grupos de defesa dos direitos humanos e vítimas, durante a guerra, todas as partes cometeram violações, mas a violência mais prolongada e organizada foi cometida contra as mulheres de Tigré, que disseram ter sido agredidas sexualmente por soldados etíopes e eritreus e por milícias da região de Amhara, na Etiópia.

Um inquérito a mais de cinco mil mulheres em idade reprodutiva na região de Tigré, que foi publicado em Julho na revista médica BMJ Global Health, revelou que cerca de 8% das inquiridas disseram ter sido violadas. Destas, mais de dois terços afirmaram ter sido violentadas em grupo e um quarto afirmou ter sido agredida em várias situações. É provável que se trate de uma subestimação, tendo em conta o estigma e o facto de algumas zonas onde a violência foi mais elevada — como na cidade natal de Shila — serem inacessíveis, uma vez que continuam a ser ocupadas por soldados eritreus. (A Etiópia e a Eritreia negaram que os soldados tenham cometido violações em massa.)

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Estima-se que mais de 100 mil mulheres tenham ter sido violadas Arlette Bashizi
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Shila tem acompanhamento psicológico Arlette Bashizi

No entanto, de acordo com o Gabinete das Mulheres, que é gerido pelo Governo, mais de metade das mulheres que chegaram a vários centros hospitalares que prestam apoio em casos de violação estavam grávidas.

Médicos, terapeutas, freiras e padres disseram nas entrevistas que a maioria dos homens rejeitou as esposas que tinham sido violadas — sobretudo as que tinham filhos resultantes da agressão. "Na maioria dos casos, o homem abandona a mulher se ela tiver um filho", afirma Abel Gebreyohannes, um terapeuta que trabalha com vítimas de violação. "Algumas famílias também não aceitam a mulher. Por isso, ela guarda segredo", completa.

Segundo outro terapeuta, apesar de a igreja pregar tolerância, os líderes religiosos de algumas zonas rurais declararam que as mulheres foram violadas porque Deus não as amava. A par disto, alguns residentes insultaram-nas e às crianças, apelidando-os de "sobras" dos violadores.

Uma mulher de 25 anos disse que os pais se recusaram a deixá-la regressar à casa da família e ficaram com a filha de sete anos — fruto do casamento — depois de ela ter tido um bebé de um dos violadores.

"A [minha]mãe disse: 'Dá-o'. Quando fui para casa, nem sequer me deixou ver a minha filha. Quando falo com ela ao telefone, ela chora e implora-me que a vá buscar", conta.

Outra vítima disse que o marido voltou para casa depois da guerra, entrou sem dizer uma palavra e levou a filha mais velha, deixando para trás um bebé nascido de uma violação. Uma terceira mulher relatou que o marido telefonou a dizer que tinha sabido que ela tinha sido violada e que tinha tido um bebé — por isso, casou com outra pessoa e abandonou-a e aos quatro filhos. E uma outra disse que tinha tido demasiado medo de contar ao marido sobre a violação colectiva que sofreu, mas que o terror subsequente em relação à intimidade fez com que ele a abandonasse na mesma.

A história de Shila

Antes da guerra, a família de Shila vivia perto da fronteira entre a Etiópia e a Eritreia. A mulher tomava conta dos três filhos e tinha um cabeleireiro, ao passo que o marido pertencia à milícia da região. Depois chegaram as tropas da Eritreia, os filhos mais novos fugiram enquanto os soldados arrastavam a mais velha, uma rapariga de 13 anos apelidada de Mita, "a doce". Segundo Shila, a jovem adorava saltar à corda, brincar com a maquilhagem da mãe e estudar arduamente para se tornar contabilista.

Os soldados exigiram que Shila lhes dissesse onde estava o marido. Ela insistia que ele estava morto, mas os militares não acreditavam. Passaram-na por grupos de soldados eritreus e violaram-na repetidamente, juntamente com outras mulheres. Engravidou.

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Shila começou a bate e empurrar o filho bebé Arlette Bashizi

Quando chegou a Mekelle, capital regional, tentou fazer um aborto, mas já estava com quase cinco meses de gestação e os médicos disseram-lhe que tinha de dar à luz. Shila sonhava em dar à luz a criança e sufocá-la.

Semanas depois, os médicos levaram Mita para o quarto de Shila no hospital. A rapariga tinha sido atacada de forma tão violenta que já não conseguia andar ou controlar a urina e precisava de uma cadeira de rodas. Shila ficou destroçada. Durante os cinco meses seguintes, esteve confinada a uma ala psiquiátrica e foi muitas vezes sujeita a práticas que lhe limitavam os movimentos.

Depois de dar à luz, recorda, os médicos amarraram-lhe os pulsos e os tornozelos à cama e trouxeram-lhe o bebé para ser amamentado. Sem qualquer ajuda humanitária a chegar à zona, esta era a única hipótese de sobrevivência do rapaz.

A comida era escassa. Os mais pequenos choravam e tinham erupções cutâneas. Quando Mita teve finalmente alta, após um aborto e várias operações, estava esfomeada, com frio e com dores. Atacou a mãe repetidamente. Uma noite, Shila correu para uma igreja e rezou até de manhã — por comida, ajuda, paciência, misericórdia.

"Odiava o meu filho [bebé]. Costumava bater-lhe. Empurrava-o para longe, atirava-o. Os meus outros filhos não compreendiam, porque eu não lhes tinha batido. Perguntavam: 'Mãe, o que estás a fazer? Eu não conseguia evitar'", revela.

Ao longo dos meses, o bebé começou a gatinhar e a falar. Chamava-lhe "mamã" e voltava a gatinhar quando Shila o empurrava. Com o tempo, parou de o fazer. Pôs-lhe a alcunha de Hero (Herói, em tradução livre) e disse aos outros filhos que Hero era irmão deles. Um ano mais tarde, em Outubro, o marido apareceu.

Tinha ouvido dizer que Shila tinha sido violada, mas não que tinha tido um bebé. Quando o viu, a mulher desmaiou e bateu com a cabeça com tanta força que o marido teve de a levar para o hospital. Os médicos contaram-lhe a história.

Bater nos próprios filhos

Etsgingl Hadera, especialista em saúde mental do Ayder Referral Hospital, que já tratou cerca de 500 vítimas de violação, disse que algumas mulheres se tornaram suicidas; outras atacaram familiares do sexo masculino ou os próprios filhos. A par disto, a vergonha que rodeia as violações aumentou devido à falta de terapeutas com formação adequada. "O trauma não tratado gera vingança", acrescenta.

Nas entrevistas, oito mulheres confessaram que batiam nos bebés que nasceram das violações e quatro disseram que também começaram a agredir os filhos mais velhos. As que deixaram de o fazer só o conseguiram depois de receberem acompanhamento psicológico.

O One Stop Shop, centro de atendimento a vítimas de violação de Ayder, tem apenas um terapeuta para quatro mil pacientes, explica a freira Mulu Mesfin, enfermeira responsável. É o maior e o mais bem equipado centro de violação dos hospitais, mas continua a ser altamente insuficiente. "Sim, precisamos de mais técnicos. Precisamos de medicamentos, precisamos de comida. Não temos mais medicamentos para o HIV e algumas destas mulheres foram deliberadamente infectadas com o vírus. A resistência aos medicamentos está a aumentar", explica, com ar cansado.

"É aqui que é suposto guardarmos os medicamentos", adianta Mulu, enquanto bate com as unhas pintadas de cor-de-rosa num armário de vidro onde estão guardadas várias caixas e uma pilha de ficheiros. "Vê, nada. Só papéis. Também não temos kits de teste de HIV e reagentes de laboratório."

O telefone de Mulu está constantemente a receber chamadas de mulheres que precisam de ajuda. As olheiras rodeiam-lhe os olhos. Quer encontrar uma forma de trabalhar com a Igreja Cristã Ortodoxa de Tigré, a única organização com a seriedade e o alcance necessários para influenciar a opinião pública, mas não tem tempo nem dinheiro.

Virar as costas

Por fim, Shila teve uma oportunidade. Um médico encaminhou-a para uma ordem de freiras católicas, as Filhas da Caridade, que lhe ofereceram comida, formação profissional e acompanhamento. Isto deu-lhe esperança suficiente para escolher um novo nome: Shila significa "Águia". (O Washington Post não revela o nome antigo para não a identificar.)

Shila numa igreja ortodoxa cristã em Mekelle Arlette Bashizi
Shila, o marido e os filhos vivem numa sala de aula com outras famílias Arlette Bashizi
Shila numa das aulas de culinária da ordem das freiras católicas Arlette Bashizi
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Shila numa igreja ortodoxa cristã em Mekelle Arlette Bashizi

A mulher não sabe o que vai acontecer à família, se o marido vai ficar com ela ou se vai embora. Sem poder regressar à cidade onde viviam, que ainda está ocupada por soldados eritreus, Shila e a família estão alojados numa sala de aula com outras 19 pessoas e dormem em pedaços de cartão. São poucas as oportunidades para marido e mulher terem uma conversa privada.

Shila vê Hero correr para o marido com os outros filhos chamando-lhe "papá". E vê o marido afastar-se e abraçar os outros filhos. Diz que engole a mágoa e a raiva, lembrando-se dos instintos assassinos que sentia quando o bebé nasceu. Por outro lado, tenta concentrar-se no quanto a filha Mita melhorou desde que o marido regressou. O pai lê para a filha e arranjou-lhe alguns materiais de desenho.

"Durante muito tempo, estive sempre zangada e com medo. Mas tudo o que eu sempre temi tornou-se realidade e eu sobrevivi", diz, com voz firme.


Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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