Elliott Erwitt (1928-2023), o fotógrafo que nos pôs a rir e a chorar ao mesmo tempo

Fotógrafo da cooperativa Magnum tinha 95 anos. São dele algumas das fotografias mais icónicas do século XX, entre as quais a da Marilyn Monroe de vestido branco esvoaçante.

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Elliott Erwitt durante a inauguração da exposição To The Dogs, em 1994 STEVEN SIEWERT/FAIRFAX MEDIA VIA GETTY IMAGES
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É difícil não nos termos cruzado com uma fotografia de Elliott Erwitt nalgum momento. E também é difícil, depois desse momento, não nos recordamos dessas imagens uma e outra vez, mesmo que de maneira subliminar. Elliott Erwitt, um dos grandes nomes da fotografia do século XX e membro da cooperativa Magnum desde 1953, morreu "pacificamente em casa rodeado pela família" aos 95 anos, em Manhattan, Nova Iorque. O dia exacto da morte daquele que era uma das últimas lendas vivas da fotografia ainda não é exacto. Segundo a revista online especializada em fotografia Blind, que cita o genro do artista, o também fotógrafo Rick Smolan, Erwitt terá morrido esta quinta-feira. Por seu lado, o The New York Times, refere o dia 29, quarta-feira, citando uma das suas filhas, Sasha Erwitt.

“Aos 95 anos, foi uma boa caminhada e, embora eu saiba que ele era incrivelmente modesto, espero que se tenha orgulhado do impacto que teve durante tantas décadas em tantas vidas — quando pensamos em todos os fotógrafos que ele inspirou, é impressionante”, disse Smolan num depoimento à Blind.

Construída ao longo de mais de 70 anos, a obra de Erwitt andou sempre perto do humor, um caminho que nos levava também para assuntos sérios, uma estratégia para nos pôr a pensar. “Diria que o mais importante numa fotografia é despertar emoções, fazer as pessoas rir ou chorar, ou as duas coisas ao mesmo tempo”, disse Erwitt, citado pelo site da exposição retrospectiva que pode ser vista actualmente em Lyon, França, até ao dia 17 de Março de 2024. Paralelamente ao humor requintado, a ironia, a comicidade, o absurdo, o espanto ou a caricatura são outros dos universos que estão bem representados no vasto corpo de trabalho deste cultor da desdramatização e da simplicidade da mensagem.

Mas não era só através das imagens que Elliott Erwitt brincava com a realidade. São vários os testemunhos que o caracterizam como uma pessoa alegre, alguém que gostava de pregar partidas para quebrar o gelo em situações mais complicadas. "Quando as pessoas estavam muito tensas numa sessão de fotografia, o Elliott saia e ia buscar uma velha buzina de carro e tocava-a para fazer rir e descontrair as pessoas", contou Jimmy Fox (1935-2022), amigo de longa data de Erwitt, arquivista, editor e curador da Magnum ao longo de mais de 30 anos.

No obituário que assinou na Blind, Jonas Cuénin caracteriza o lendário fotógrafo como alguém "um pouco desordeiro, mas sem maldade no corpo", uma espécie de "intelectual do humor", elogio que o próprio negava afirmando que tinha tido uma "educação fraca".

Com educação frágil ou não, certo é que o olhar de Erwitt sempre se mostrou afinado a questionar as injustiças do mundo e a indiferença. "Elliott é um fotógrafo eminentemente político. Gosta de mostrar as diferenças entre as pessoas, recorrendo sempre ao escárnio para evitar ser demasiado fechado", disse à Blind Ferdinando Scianna, que dá como exemplo a fotografia de um soldado negro a deitar a língua de fora, que pode ser lida como Elliott Erwitt a "gozar com a seriedade da instituição militar". E o fotógrafo franco-americano conhecia bem esta realidade, já que entre 1951 e 1953 cumpriu o serviço militar em missões na Alemanha e na França, tendo aí trabalhado como assistente de fotografia.

Entre o muito que Elliott Erwitt fotografou, há um sujeito específico que ficará para sempre ligado ao seu nome: os cães. A partir do momento em que percebeu que os seus negativos estavam cada vez mais cheios de caninos começou a dedicar-lhe mais e mais atenção, tendo publicado cinco livros só com eles (acompanhados de alguns humanos): Son of Bitch (1974), To the Dogs (1992), Dog Dogs (1998), Woof (2005) e Elliott Erwitt's Dogs (2008). “Para Erwitt, os cães são uma fonte profícua de conhecimento da humanidade”, refere a Magnum num comunicado dedicado ao fotógrafo, que presidiu a esta cooperativa durante três anos na década de 1960. Mesmo que esteja pejada de animalia, a obra de Erwitt é profundamente humanista, tomando partido pelos mais fracos, criticando os ricos e os poderosos: "Pode dizer-se que estou à esquerda​".

Rumo à Magnum

Os primeiros trabalhos de maior fôlego chegaram por convite do influente economista e fotógrafo Roy Stryker, que liderou o grande levantamento fotográfico ligado à Farm Security Administration, durante a Grande Depressão, nos Estados Unidos. Primeiro, Erwitt foi contratado para fotografar para a Standard Oil Company, para a qual Stryker estava a organizar uma biblioteca fotográfica, e depois rumou a Piitsburgh para documentar as mudanças e o quotidiano desta cidade.

Depois de se ter juntado à Magnum pela mão de Robert Capa, em 1953, Erwitt trabalhou como freelancer nas mais influentes revistas dos anos 1950 e 60 (período dourado das revistas americanas, que tinham na fotografia um dos seus principais argumentos), entre as quais a Collier’s, a Look, a LIFE e a Holiday. Foi a partir dessas colaborações que captou algumas das figuras mais célebres e populares das artes e da vida social (Grace Kelly, Jack Kerouac, Humphrey Bogart...), e alguns dos protagonistas mais carismáticos e poderosos da política (John F. Kennedy, Fidel Castro, Che Guevara, Nikita Khrushchev, Richard Nixon…).

A lista de celebridades que passaram pela lente de Erwitt é muito extensa, mas há um nome que se destaca entre todas elas, não só pela capacidade de nos mostrar o ser humano para além do carisma e da energia da estrela de cinema, como pela contribuição para a iconografia fundamental da cultura popular do século XX: Marilyn Monroe. São dele algumas das fotografias mais memoráveis da actriz na intimidade, quer seja nos bastidores da rodagem dos filmes de que foi protagonista, quer seja no conforto do seu quarto, a ler um livro, a estudar um guião; são dele as fotografias da Marilyn de vestido esvoaçante na grelha respiradora do túnel do metro, durante a rodagem de O Pecado Mora ao Lado (1955), comédia romântica de Billy Wilder.

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California, de Elliott Erwitt, na exposição Mujeres en Plural, em Madrid, em Outubro de 2008, na qual a mulher era a protagonista através de fotógrafos como Garry Winogrand, Dorothea Lange, Robert Frank, Bill Brandt e Irving Penn Susana Vera/Reuters

Mas não é tudo. É que depois disto há ainda a Marilyn nos bastidores de Os Inadaptados (1960), de John Huston, onde surge entre o abonecado e a divindade aglutinante nas imagens de Erwitt: quão memorável é aquele retrato de grupo em que a diva surge de vestido às cerejas no meio de meia-dúzia de cowboys, entre os quais Clark Gable, Montgomery Clift e Arthur Miller? "Simplesmente aconteceu que toda a gente estava disponível naquele momento", diz Erwitt com modéstia numa legenda lacónica a esta fotografia incluída no livro The Misfits (Phaidon, 2011). Num gesto tão arriscado quanto raro, a produção do filme decidiu convidar nove fotógrafos da Magnum para acompanharem quer os bastidores, quer a rodagem do filme. Elliott Erwitt era dos mais novos e estava entre "tubarões" como Henri Cartier-Bresson ou Cornell Capa. É dos fotógrafos menos representados no livro, onde quem mais brilha é Inge Morath. Muitas das fotografias dessa sessão haveriam de ser divulgadas depois, mostrando que Erwitt estava tão em forma quanto os outros oito.

"Só temos de nos impressionar com o que nos rodeia e ter uma preocupação com a humanidade e a comédia humana", disse Erwitt, que, apesar de fazer da fotografia o seu modo de vida, nunca pareceu levar-se demasiado a sério. Certo é que o legado que deixou é levado muito a sério. Uma frase de Ferdinando Scianna, também fotógrafo da Magnum: “Não se pode ser irónico sem se ser inteligente. As fotografias de Elliot deviam ser incluídas em kits de sobrevivência — quando se está desesperado, elas podem salvar-nos a vida.”

Filho de emigrantes judeus russos, Elliott Erwitt nasceu em Paris em 1928 com o nome Elio Romano Ervitz e passou a infância em Milão, até o fascismo e o anti-semitismo do período entreguerras terem forçado a família a sair de Itália em 1939, rumo aos EUA. Começou a fotografar em Los Angeles aos 15 anos com uma Rolleiflex e nunca mais parou.

Para além da fotografia dita "de autor", Erwitt trabalhou para muitas empresas e instituições, ora fazendo imagens mais "comerciais", ora aproveitando pérolas do seu arquivo para pedidos muito específicos. Por exemplo, uma das suas imagens mais famosas — ​a de homem de bicicleta com o filho (de olhar maroto) e baguetes de pão no cesto de trás na zona da Provença —​ foi escolhida para fazer cartazes para o Gabinete de Turismo da França. Está na capa de um dos seus livros (Snaps, Phaidon, na edição de 2013) e em muitas colecções de arte de museus de todo mundo.

Embora este movimento entre o trabalho pessoal e o comercial tivesse acontecido com frequência sem qualquer preconceito para com o segundo, também houve imagens às quais Erwitt não quis associar seu nome, como quando fazia trabalhos por encomenda para revistas sobre restaurantes e viagens. Aí era "Snaps Picazo". Mas os alter egos não serviram apenas para Elliott Erwitt esconder a sua identidade, tendo sido usados também para o sarcasmo, nomeadamente para criticar o mundo da arte contemporânea. Como quando surgiu André S. Solidor, uma espécie de "Sacha Baron Cohen do mundo da fotografia", tal como lhe chamou Charlotte Cripps, no jornal Independent, quando, em 2011, aquele "artista contemporâneo de uma colónia francesa das Caraíbas" inaugurou em Londres a sua segunda exposição. Para além de muitos auto-retratos, onde se apresentava de bigode, óculos escuros e vestido com diversos "tipos" (desde o toureiro espanhol ao caçador inglês), Solidor era autor de fotografias de estúdio minimais, onde reinavam cabeças de peixes com cigarros na boca (Cohiba Cigar with Smoking Fish; Smoking Fish Out of Water) ou ovos de diferentes categorias (​​The Age-Old Guery of Which Came First).

E porque veio A.S.S. ao mundo? Quem é este fotógrafo pomposo e cheio de si próprio? "É uma forma de satirizar as excentricidades da fotografia contemporânea e do mundo da arte", disse Erwitt ao Independent.

Elliott Erwitt recebeu inúmeras distinções e prémios ao longo da vida. Em 2011, o International Center of Photography, em Nova Iorque, agraciou-o com o prestigiado Lifetime Achievement Award. este ano, foi o escolhido para o Leica Hall of Fame Award, um prémio atribuído desde 2011 a artistas "cuja visão do mundo mexeu com alguma coisa, mudou alguma coisa"; artistas cujas "imagens icónicas intemporais que revelam a condição humana e que se tornaram parte da nossa memória colectiva são o testemunho da sua criatividade".

Para além de Marylin, Elliott Erwitt deixou muitos outros ícones na fotografia, arte em que, para além do humor e da derisão, cultivava a poesia, o glamour, a relação entre pessoas e o amor — o beijo do casal reflectido no retrovisor redondo de um carro estacionado à beira-mar atira-nos para a felicidade a dois. E mostra-nos o quão sedutor pode ser um rosto.

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