Viajamos até à barragem de Santa Clara: um lugar onde a água já foi de mais, hoje, não chega para as encomendas. Após anos de secas persistentes e níveis de precipitação atmosférica que não repuseram minimamente os níveis de armazenamento actuais, nas albufeiras de Santa Clara (31%), Monte da Rocha (8%) e Campilhas (6%), tanto o modelo agrícola baseado nas culturas intensivas, como nas tradicionais, a actividade pecuária e até a indústria mineira estão longe de ter a garantia de os recursos hídricos estarem à altura das suas necessidades.
Apesar de o consumo humano para as populações dos concelhos de Ourique, Castro Verde, Almodôvar e Odemira estar assegurado através das albufeiras de Monte da Rocha e Santa Clara, as respectivas estações de tratamento só têm acesso a água bruta muito “condimentada” com resíduos sólidos, agroquímicos e fertilizantes que ficaram retidos, ao longo de décadas, no lodo das albufeiras. Torná-la potável exige uma depuração que eleva o seu custo.
O nível de água da albufeira de Santa Clara já não permite regar as culturas permanentes e tradicionais no Aproveitamento Hidroagrícola do Mira.
Tiago Bernardo LopesTodos os anos a mesma apreensão. “Continuamos a olhar para o céu e a perguntar: quando é que chove? E quando chove é sempre menos do que já choveu”, comentou numa das suas recentes declarações públicas o presidente da Câmara de Almodôvar, António Bota.
As interrogações preenchem a mensagem do autarca. “Muitos se perguntam o que acontecerá se se continuar sem chuvas. E se a seca se tornar crónica? Ou se esta situação se tornar permanente ou piorar com as alterações climáticas?”
É em condições que se agravam de ano para ano que os municípios mais afectados pela seca têm de garantir que a água chegue aos núcleos populacionais do interior. “Há décadas que são abastecidos através de autotanques. E todos os anos se repete este quadro de carências”, lembra António Bota.
A empresa Águas Públicas do Alentejo (AgdA) tem em curso três empreitadas para ligar 29 aglomerados populacionais dos concelhos de Almodôvar, Castro Verde e Mértola aos sistemas de abastecimento de água de Monte da Rocha e Guadiana Sul, com o objectivo de “solucionar constrangimentos históricos de disponibilidade e qualidade de água.”
Reserva para rega esgotada
Este quadro de carências é particularmente crítico nas bacias do Sado e do Mira, território sistematicamente fustigado pela escassez hídrica. A consequência mais significativa da falta de água está patente na barragem de Santa Clara. A sua reserva de água para rega está praticamente esgotada, a não ser que a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) accione mais uma medida de excepção, de continuar a permitir a captação de água para assegurar a actividade agrícola.
A APA adiantou ao PÚBLICO que, em Março deste ano, “autorizou a exploração à cota 104”, abaixo desta apenas serão autorizadas captações “exclusivamente para consumo humano”. O nível de armazenamento da albufeira encontrava-se na última quinta-feira à cota de 104,24 metros acima do nível do mar.
Feitas as contas, dentro de poucas semanas, não haverá água para rega, mesmo que não seja feita nenhuma captação. O processo de evapotranspiração do espelho de água traduz-se, em média, na perda de 2mm/diários no volume armazenado, colocando a cota, até ao final de Dezembro, abaixo do valor autorizado pela APA. Já não é possível captar mais água para rega e deixará de haver reservas no Aproveitamento Hidroagrícola do Mira (AHM).
Desde 2019 que a agricultura, a pecuária, o complexo mineiro de Neves Corvo e a rede pública de abastecimento recebem água da albufeira de Santa Clara captada abaixo do nível mínimo de armazenamento, que se encontra à cota dos 114,70 metros acima do nível do mar.
As autorizações dadas pela APA para fornecer água para rega baixaram o nível da albufeira para os 105,24 metros (dia 30 de Novembro), que “equivale a cerca de 10 metros abaixo do nível mínimo de armazenamento, ou seja, da cota normal de exploração da albufeira”, explicou ao PÚBLICO o engenheiro agrónomo Manuel Amaro, presidente da direcção da Associação de Beneficiários do Mira (ABM).
Este órgão foi suspenso pela ministra da Agricultura e Alimentação (MAA) e substituído por uma comissão administrativa para que fosse “assegurada a segurança hídrica do Aproveitamento Hidroagrícola do Mira”, justifica a ministra no Despacho 5084/2023, publicado no dia 21 de Abril, decisão contestada pelos visados no Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, e a aguardar pela decisão judicial.
Manuel Amaro recorda que a APA e a ABM celebraram, em Março, um pacto da água para a exploração sustentável da albufeira de Santa Clara, onde ficou estabelecido que as captações “poderiam ir até à cota 104”. Contudo, o que está escrito no contrato de concessão dos recursos hídricos da barragem é que a captação só se faria “no máximo até à cota 106”, recorda o presidente suspenso da ABM.
Mesmo assim, se as condições não forem alteradas, com chuva em abundância, “é muito remota” a possibilidade de poder vir a regar as culturas do ano agrícola, que se inicia em Janeiro, acrescenta o dirigente suspenso.
Luís Alão perdeu o direito a água
As consequências resultantes das restrições no acesso à água na albufeira de Santa Clara revelaram-se severas para o pequeno agricultor Luís Guerreiro Alão, que explora uma quinta de família no AHM, onde tem à volta de 10 hectares de batata-doce e três de pequenos frutos e faz pecuária extensiva com alguns bovinos.
Este ano, explicou ao PÚBLICO, com a dotação que a ABM lhe atribuiu, como a todos os agricultores do perímetro de rega, na altura, 1800 metros cúbicos por hectare, “à partida estava tudo controlado”.
Decorria o mês de Julho, e “com a campanha a meio, a comissão administrativa comunica-me que ia sofrer um corte na dotação de água, alegando que eu não tinha direito a ela” por não a ter utilizado no ano anterior. Dos 35 mil metros cúbicos a que tinha direito, foram-lhe retirados 10 mil metros cúbicos.
“Foi como se me tivessem cortado as pernas. Deixei de plantar e fui obrigado a mandar embora os imigrantes que trabalhavam comigo.” Para não perder tudo, “joguei com a dotação que tinha e optei por reduzir na plantação da batata-doce para que não faltasse água nos três hectares de frutos vermelhos que produzo em estufa”.
Há três anos, Guerreiro Alão produzia cerca de 200 toneladas de batata-doce. “Este ano não vou chegar às 60 toneladas, o que significa um prejuízo de 70 mil euros”, sintetiza o agricultor.
Agora está mais apreensivo do que nunca em relação ao futuro imediato. É a partir de Janeiro que faz os viveiros de batata-doce, “mas a comissão administrativa ainda não me disse nada sobre a dotação de água que vou ter”, afirma. Uma garantia que já se faz anunciar: “Vou ter dívidas, de certeza absoluta, e o desemprego vai ser um pesadelo.”
Empresa mudou rega e aproveita cada gota
Numa outra dimensão, posiciona-se a empresa Vitacress, que assegura 40% da produção nacional de baby leaf de rúcula, alface, espinafre e também ervas aromáticas, com cerca de 320 hectares no perímetro de rega do Mira, há mais de 32 anos.
Tal como todos os outros agricultores que recebem água de Santa Clara, “nós também estamos a sofrer as consequências da limitação dos consumos”, esclarece o director-geral da Vitacress, Carlos Vicente, junto a uma extensa plantação de salsa.
Que volume de água consome este tipo de exploração de hortícolas?, perguntou o PÚBLICO. “É só fazer as contas”, propõe Carlos Vicente, avançando com os números: 320 hectares a multiplicar por 1800 metros cúbicos por hectare dá mais ou menos 576 mil metros cúbicos. Mas, como poupamos 39%, o consumo final anda à volta dos 460 mil metros cúbicos.”
A maioria das culturas que se praticam nesta exploração de Odemira, como por exemplo, as alfaces, requer “muita água para crescer e ter a qualidade de que necessitamos”. A Vitacress “é um grande consumidor de água”, assume o presidente da empresa, realçando as preocupações com a que é utilizada e que requer exigências “muito elevadas” quanto à sua qualidade. Provavelmente poucos saberão que “a água utilizada na rega é potável, para garantir segurança alimentar”, observa.
Com a albufeira de Santa Clara em mínimos históricos no seu nível de armazenamento, a Vitacress teve de alterar métodos de rega e aproveitar cada gota de água. “Estamos a instalar e a aplicar sistemas e metodologias que têm na sua finalidade reduzir o consumo de água”, sublinha Carlos Vicente, salientando que em três anos a empresa conseguiu reduzir o consumo em 39% e espera reduzir ainda mais, num futuro próximo.
No regresso ao passado, quando a falta de água não se colocava, recorda que “havia razões para regar a todo o instante, regas para manter a temperatura das folhas, regas para evitar que as poeiras de areia que se levantavam cobrissem as folhas”. Agora “optámos por regar só quando se trata de fornecer a água necessária à planta, o que permitiu reduzir o consumo”, destaca o director-geral, revelando ainda os investimentos que a empresa está a fazer em sementes de variedades de alface que são menos exigentes no consumo de água.
Uma quinta no norte para segurar a do sul
O investimento próximo da Vitacress será em novos sistemas de filtragem de água que será reutilizada na fábrica onde as baby leaf são embaladas, e ainda em novos reservatórios e sistemas de rega, onde foram investidos nos últimos dois anos cerca de um milhão de euros, “para alcançar maior eficiência no uso da água”, sublinha Carlos Vicente. Mesmo assim, “é difícil antecipar se seremos autónomos a nível da água” num contexto de grande imprevisibilidade, admite.
E percebe-se porquê: a Vitacress tem nos seus quadros de pessoal 420 trabalhadores, mais de 200 pessoas nas tarefas do campo, 120 na fábrica (de embalamento das folhas) em Odemira e mais 70 nos administrativos, na sede da empresa. “Temos aqui residentes especialistas em economia e agronomia e criamos oportunidades de carreira, que faz com famílias inteiras trabalhem connosco”, realça o director-geral da empresa, a segunda maior entidade empregadora no concelho alentejano.
Para acautelar os riscos e a incerteza que a falta de água suscita, a Vitacress pretende instalar uma quinta no norte de Portugal, “onde a água é abundante”, de modo a permitir manter um equilíbrio que garanta o abastecimento do mercado. Um modo de compensar a norte as eventuais quebras de produção a sul devido à escassez de água, que diz poder ser minorado de duas formas: através de um sistema de transvases que traga água das regiões no norte de Portugal para o sul, ou com a instalação de uma central dessalinizadora em Sines, de onde poderá vir a água através de um pipeline para o regadio do Mira.
Porém, qualquer das soluções tardará a ser instalada, quando a resposta à escassez de água se põe no imediato.
Campanha em risco
Manuel Amaro, não tem dúvidas: apesar do que choveu em praticamente em todo o país, a barragem não subiu significativamente no seu volume de armazenamento. Com grande probabilidade, “não será possível realizar uma campanha normal, nem pouco mais ou menos”, a não ser que a APA decida autorizar novas captações a cotas mais baixas.
Para o engenheiro agrónomo, a agricultura que se faz no Mira apoia-se em “culturas com grandes níveis de consumos”. Por exemplo: a cultura de frutos vermelhos de maior peso em Odemira, as framboesas, pode fazer-se em duas e até três colheitas por ano e cada uma delas tem um consumo semelhante de água. “Esta cultura pode ter um consumo entre os 5 e os 8 mil metros cúbicos por hectare, dependendo da opção do agricultor”, refere Manuel Amaro, destacando um elemento importante: “Temos de ter dois anos a chover bem para repor os consumos, ou seja, recuperar os 10 metros que já faltam no caudal morto.”
“Se não for feito um esforço grande para adequar as necessidades das culturas às necessidades de água, ou se regressa às culturas tradicionais, ou vamos acabar por nem ter água para as populações”, conclui o presidente da direcção da ABM suspenso.
O PÚBLICO colocou um conjunto de questões sobre a gestão dos recursos hídricos da albufeira de Santa Clara à Associação de Beneficiários do Mira e à ministra da Agricultura e Alimentação, mas não foi dada qualquer resposta.