Viajámos no tempo para dar corpo ao mito

À Procura da Estrela (2023) combina o real e o mitológico, intercalando lenda e documentário, partindo da fábula para nos mostrar um lugar em extinção.

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Megafone P3: Viajámos no tempo para dar corpo ao mito Teresa Pacheco Miranda
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“Esta é a história de um pastor pobre que vivia numa aldeia triste e tinha por única companhia o seu cão.” Assim começa a lenda do Pastor e da Estrela, história que põe a descoberto uma das mais altas montanhas de Portugal enquanto lugar de fantasia, contada na primeira longa-metragem do realizador galego Carlos Martínez-Peñalver Mas.

À Procura da Estrela (2023) combina o real e o mitológico, intercalando lenda e documentário, partindo da fábula para nos mostrar um lugar em extinção. Martínez-Peñalver Mas integra o mito no percurso do seu personagem que, no papel de herói romântico, propõe-se a conhecer o território à medida que o vai caminhando, deixando-se absorver na paisagem de uma região cuja realidade social tem sofrido profundas transformações ao longo dos últimos anos.

O seu personagem, Xoel, é um etnólogo sonoro em viagem. Do Gerês até à Serra da Estrela, vai preservando a memória dos locais por onde passa coleccionando-lhes os sons: o cantar dos pássaros, a água da fonte, as ruas desertas das aldeias já pouco habitadas. E tal como o trabalho do pastor, também a missão de Xoel é solitária.

Deambulando de gravador na mão por territórios que lhe são desconhecidos, tenta desenhar um retrato dos lugares a partir dos sons que os compõem, estendendo a paisagem além das suas formas. Com os pés no chão e a cabeça nos supostos cantares autênticos da serra, é ele o nosso intermediário entre as duas dimensões representadas.

Se por um lado a sua relação com a região passa por aprender o seu presente no contacto que estabelece com as pessoas locais, por outro o seu exercício de ocupação de um lugar leva-o na procura da melodia que todos julgam ser fruto da imaginação fértil dos pastores, só presente nas histórias de um antigamente impossível de comprovar. Mas há qualquer coisa que apenas Xoel parece conseguir ter acesso, segredos que a montanha revela somente àqueles que são capazes de prestar atenção.

Na vontade de conhecer o que existia para lá do que os seus olhos alcançavam, o pastor partiu numa jornada até ao mundo além do recorte da montanha, guiado por uma pequena estrela que lhe disse ter sido enviada por Deus para lhe cumprir o desejo, ou assim continua a lenda do Pastor e da Estrela.

Analogamente, também Xoel parte à procura do que não consegue ver. Em busca da fonte da misteriosa melodia que o parece perseguir, sobe até ao acima das nuvens. Vemo-lo desde o céu, transformado num ponto em movimento contra a imensidão estática da paisagem. Mas chegados ao topo da montanha, algo acontece.

O nevoeiro adensa-se, a imagem desfoca, e começamos a ouvir o entoar de uma harmonia. São os cantares melancólicos da serra que chora o seu próprio esquecimento. A voz melódica ecoa cada vez mais alto, criando um momento de êxtase que abre uma brecha na realidade através da qual Xoel escorrega, engolido pelo sublime.

É agora o pastor reencarnado, a pisar o chão do mesmo trilho que momentos antes, embora muitas vidas depois, ajudava a construir com José Maria Saraiva, presidente da Associação Amigos da Serra da Estrela, e guia de Xoel pelas tradições locais de salvaguarda da paisagem.

Viajámos no tempo para dar corpo ao mito.

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