Pacificar, e outras formas de violência
Após a II Guerra Mundial, o universo militar criado pela NATO implicou que os nomes dos ministérios que tratavam do bélico passaram de Ministério da Guerra para Ministério da Defesa.
As identidades e as palavras que dão corpo à forma como pensamos e agimos são o resultado de um imenso caldeirão que ao longo dos séculos foi trabalhando em posturas e lógicas que passámos a tomar como certas, exatamente porque são adquiridas nessa mecânica de fazer tempo longo.
Os conceitos são, tantas vezes, o resultado desses longos caminhos de séculos, que se afirmam de forma absoluta, como se nos dominassem, como se tivessem vida própria que se sobrepõe à nossa vontade. A guerra é um dos campos onde as palavras vão vagueando pelas culturas, seja pelas teorias, seja pelo linguarejar, ganhando uma vida que vai mais longe que o nosso pensamento.
Nessa história que nos atravessa, que do seu cerzir somos feitos, alguns casos são interessantes, porque exemplificativos. Após a II Guerra Mundial, o universo militar criado pela então fundada NATO implicou que nessa nova forma de ver a guerra mudassem os nomes dos ministérios que tratavam do bélico: os nomes passaram de Ministério da Guerra para Ministério da Defesa. É uma mudança, de uma única palavra, que mostra toda uma tentativa de reformulação mental.
Mas, em dias em que o chamado Ocidente se debate com duas tremendas guerras, em que tanto se fala em paz, importa olhar para a própria ideia de paz, especialmente para a palavra "pacificar". O que significa ter um território "pacificado"? Simples: ter um território ou uma população totalmente incapaz de qualquer reação à força que o subjuga. Esta era a visão de César, por exemplo, em que pacificar uma determinada região era reforçar o domínio romano e levar os nativos a uma forma de vida latinizada.
Foi assim por todo o Império. Júlio César pacificou a Gália após imensas chacinas, verdadeiros genocídios, que colocaram as populações sem qualquer resistência à ocupação "civilizadora". Assim foi também com os lusitanos, e assim era em todas as guerras e ocupações. D. Afonso Henriques espanta as tropas que o ajudaram a conquistar Lisboa quando não permite a selvajaria de saque e morte que era comum e considerado direito por parte de quem vencia – mais que humano, o quase monarca português deve ter percebido que a rica e comercial cidade de nada lhe servia se as suas gentes, judeus e muçulmanos, fossem dizimadas.
Mais perto de nós, na História do Brasil, “a ideia de pacificação está presente na história brasileira engendrando práticas de governo tutelar das populações que são percebidas como perigosas, não civilizadas e “bárbaras”” (Oliveira, J. P. (2017). Uma Guerra sem Fim: a retórica da pacificação. In Pacificar o Brasil… São Paulo: Alameda. p. 55-56), tendo evoluído para um campo ainda mais sólido na construção da desigualdade: “os indivíduos 'a serem pacificados' está assentado na construção de uma sociedade baseada na ideia de raça” (Hoff, N; Blanco, R, (2020). Civilizar o Brasil…, 12.º Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política).
Distante no tempo, estes ecos que a história das palavras nos traz, ajuda a compreender muito da forma como hoje se faz guerra, seja na Ucrânia, seja na Palestina ou em Israel (aqui em duplo sentido). O que os agressores procuram é a pacificação, sim. Mas nesse sentido antigo de ter um inimigo que já nem consiga reagir. É esta a herança milenar que temos.