Tribalismo sem tribo
Tribalismo sem tribo. Esta frase não é minha, é de uma amiga, artista e artesã, do interior do barrocal algarvio, Manuela Caneco, com quem tenho o prazer de partilhar a natureza. Ela lembra-me um livro que muito me influencia e emociona, Humanidade, de Rutger Bregman, que fala da natureza humana e dos seus singelos 315.000 anos. Nestes milhares de anos correspondentes a uma semana do trabalho de deus, como diz Gilberto Gil, conseguimos criar condições únicas de vida nos lugares mais inóspitos, fomos tribos da tundra ao deserto.
Recuemos 3,7 mil milhões de anos, à primeira forma de vida, ou à extinção dos dinossauros não-avianos há cerca de 66 milhões de anos, ou ao aparecimento do Homo sapiens, há aproximadamente 315.000 anos. Se colocássemos tudo num calendário anual, com os 12 meses, e esta ideia também não é minha, a origem da vida seria no dia 1 de Janeiro, o desaparecimento da maioria dos dinossauros a 25 de dezembro e nós Homo sapiens nascemos na última hora do dia 31 de Dezembro. Somos, portanto, os novatos deste planeta vivo.
Nestes 315 mil anos de tentativa-erro e de movimentações pelo globo, o Homo sapiens saiu da terra-mãe África e povoou Ásia, Europa, Oceânia e passou o estreito de Bering. Chegou à América do Norte e América do Sul há cerca de 15-12 mil anos. Éramos unos com a natureza, precisávamos dela para caçar animais e coletar bagas e tubérculos, tribos com um tribalismo vivo e necessário. Conseguimos povoar um mundo inteiro, coisa que outros hominídeos não conseguiram, em grande parte devido à nossa capacidade de cooperação e entreajuda. Os humanos sobreviveram à última idade do gelo (115.000-15.000 anos) porque desenvolveram esta capacidade de trabalhar em conjunto.
Há 10 mil anos, quando a agricultura e o sedentarismo começaram a surgir em algumas regiões, tudo mudou. A propriedade privada mudou para sempre o modo de vida da maioria das tribos. Tornámo-nos donos e colonos. Já não éramos da natureza, mas sim, Ela já era “nossa”, domada e domesticada. Erguemos territórios e denominámo-los nossos, com línguas e tradições, incluindo as tribos que recusaram a agricultura. Inventámos religiões. Religiões que ditam a vida e a morte de nações.
Na altura das tribos, se houvesse elementos desviantes, eram ignorados, ou mesmo ostracizados, em prol do colectivo. Actualmente, existem demasiados elementos desviantes e demasiadas vezes alguns deles ocupam posições de poder. Lembro a reflexão de Marjane Satrapi dizendo que a diferença entre um povo e o seu governo é muito maior que a diferença entre povos de diferentes territórios. Sim, a população é muito maior que os seus governantes e as culturas devem definir-se pela sua integridade e não pela sua autoridade. Vemos isso acontecer há mais de um ano no país da Marjane, onde as mulheres morrem por soltar o cabelo.
Evidências da nossa união e natureza são mais notórias em momentos de aflição, catástrofe. Nestes momentos as pessoas ajudam-se, partilham e salvam, escreve Rebecca Solnit. “The revolution will not be televised, the revolution will be live” cantava Gil Scott-Heron. Existe uma legião de humanos com causas nobres anti-racistas, anti-colonialistas, de justiça climática, igualdade de género, preservação da biodiversidade. Causas que nos unem e nos fazem tentar a equidade e a liberdade, diariamente, ou a morrer a lutar por elas.
A Manuela Caneco e o Rutger Bregman não se conhecem. Uma age localmente, outro pensa global e ambos me fazem crer num tribalismo sem tribo, numa conexão de agir e pensar o colectivo. A colectividade é uma necessidade e foi essa mesma que nos fez singrar enquanto espécie. Somos parte da natureza, e precisamos de utilizar todos os avanços tecnológicos e científicos para o bem comum, e extensíveis a todo o mundo. Sem descurar a educação, processo mais ancestral e tribalista de todos, com toda a criatividade e amor, necessários à continuidade da nossa espécie e de todas as outras nesta complexa teia ecológica do nosso pequeno planeta azul.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico