Marcelo, António, João,
Perdoem-me a falta de formalismo. Lamento não ter disponibilidade para aceder às formulações “apropriadas” às posições que ocupam. Confesso que a angústia e desespero que sinto impedem-me de me curvar a essas regras. Na verdade, hoje escrevo não só como uma cidadã portuguesa que exige acção dos seus Presidente da República, Primeiro-Ministro e Ministro dos Negócios Estrangeiros, mas como a Júlia — uma jovem que podia ser vossa filha ou neta, que sonha, que luta por um futuro mais justo e democrático. Escrevo-vos como alguém que não aceita a legitimação de um genocídio. Escrevo-vos porque preciso que ajam. Agora.
Tenho caracteres limitados e pensei cuidadosamente como utilizá-los. Nestes caracteres que tenho em mãos podia continuar a olhar para fora. Podia imprimir neles as dezenas de resoluções e leis internacionais já infringidas pelo ocupante Estado israelita. Podia reflectir neles (parte d')os nomes das, pelo menos, 14 mil pessoas assassinadas na Palestina nos últimos 50 dias. Podia utilizá-los para espelhar o desespero que amigas me relatam ao verem as suas casas, decoradas com memórias de infância, brutalmente destruídas por bombardeamentos.
Mas, depois de 50 dias a olharmos para fora, para um massacre contínuo contra pessoas palestinianas, 50 oportunidades perdidas para o Estado português assumir uma posição activa de denúncia deste genocídio, continuarmos a olhar para fora, sem repensarmos a forma como pensamos cá dentro, um exercício fútil.
Peço-vos, Marcelo, António, João, que invertam comigo a marcha. Olhemos para dentro. Cá dentro estou zangada. Estou triste. Estou desesperada. Olho para os círculos onde me movimento. O metro continua a aparecer a cada seis minutos. Continuo a encontrar estudantes a fumar o seu iQOS à porta da faculdade. Continuo a ouvir professores falarem sobre os critérios de avaliação do exame que se avizinha. Oiço as vizinhas, no café da rua, a queixarem-se do Euromilhões que nunca mais ganham. Vejo os tuk-tuks passarem com turistas entusiasmadas com as colinas lisboetas. Passo por restaurantes de onde se ouvem gargalhadas, celebração.
Olho para dentro do país, da cidade, do privilégio em que vivo, e fico zangada, triste, desesperada. Como conseguimos nós continuar com as nossas vidas enquanto testemunhamos o bárbaro genocídio em Gaza?
Lido mal com incongruências e, nos meus curtos 23 anos de vida, nunca antes senti uma incongruência tão aguda e dolorosa como aquela que agora vivemos. Oiço na rádio notícias sobre as celebrações dos 50 anos do 25 de Abril que se avizinham. Estamos, em Portugal, a celebrar a liberdade, o direito à democracia, o fim do fascismo e do colonialismo. Mas que sentido faz prosseguir com a preparação das festas, cá dentro, quando os governantes deste mesmo país permanecem inertes face à violência antidemocrática e colonialista que se passa fora?
Que sentido faz celebrarmos a liberdade quando nada fazemos ao ver a liberdade do povo palestiniano ser usurpada, não só agora, mas há mais de 75 anos, desde a Nakba (“catástrofe”) de 1948?
Seja por uma dose de ingenuidade ou graças à minha personalidade de “copo meio cheio”, antes do dia 7 de Outubro eu conseguia ainda sonhar com um futuro diferente para Portugal e para o mundo. Um futuro mais justo, mais humano. Um futuro onde existe diálogo e colaboração internacional.
Onde cada povo existe de forma soberana, celebrando diferenças, estabelecendo pontes, fazendo reparações de traumas passados. Um futuro onde, nas nossas interacções interpessoais, cada uma de nós pode ser celebrada na sua plenitude. Antes de 7 de Outubro acreditava, realmente, na viabilidade deste futuro.
É, no entanto, com amargura que confesso, Marcelo, António, João, que a vossa inacção está a destruir os sonhos deste futuro que eu tinha. Note-se que pouco importam aqui os meus sonhos. Importa, sim, a viabilidade dos valores democráticos, de liberdade e de anticolonialismo em Portugal e no mundo.
E vocês, lamento dizê-lo, estão a pô-los em causa. A vossa inacção, para além de reveladora de uma tolerância injustificável ao sofrimento palestiniano, é uma condenação à frágil democracia que temos construído nos últimos 50 anos.
Como podemos ensinar os valores de Abril às nossas crianças quando, face a uma chacina televisionada de milhares de crianças palestinianas, os representantes da democracia portuguesa se mantêm em silêncio?
Como podemos advogar por uma vida digna para os cidadãos em Portugal sem nos revoltarmos contra os bombardeamentos israelitas a bairros residenciais em Gaza, contra a destruição indiscriminada de hospitais, escolas ou infra-estruturas de saneamento?
Contra a política colonial e de brutalização militar que governa a Cisjordânia? Como podemos exigir que a União Europeia oiça e respeite a voz de Portugal, se os nossos governantes se vergam obedientemente enquanto Ursula von der Leyen apoia publicamente um governo de apartheid assente na limpeza étnica de todo um povo? Como podemos lutar contra a abstenção e a apatia política em Portugal quando os nossos representantes políticos se mostram apáticos face à violação de dezenas de leis internacionais pelo ocupante Estado israelita?
Não podemos lutar por estes valores a meio gás. Ou nos comprometemos radicalmente (e bem sei como esta palavra assusta o imaginário português) com os valores de liberdade, democracia, anticolonialismo, justiça, ou o compromisso parcial será infrutífero.
Um compromisso parcial, apenas cá dentro e nunca lá fora, significa uma inevitável corrosão destes mesmos valores. Hoje, enquanto vejo o exército sionista roubar a liberdade e vida do povo palestiniano, observo-vos também a roubarem-nos o direito de continuarmos a viver, a construir, a sonhar com um futuro verdadeiramente democrático. É ilusória a ideia de inacção fora e acção dentro. A incongruência mata — pessoas palestinianas e democracias europeias.
Dir-me-ão que “é complicado”. Que eu não entendo a delicadeza dos equilíbrios diplomáticos que vos cabe a vós estabelecer. Admito não entender o malabarismo de interesses que têm em mãos. Mas não é isso que aqui está em causa. Não debato diplomacia nem relações internacionais. Debato justiça.
Marcelo, António, João, eu olho para fora e olho para dentro e peço-vos: ajam. Eu quero o “25 de Abril, sempre! Fascismo nunca mais!” que oiço na rádio. Pelo qual as minhas avós lutaram. Pelo qual eu quero continuar a lutar. Mas só o quero se for desde Lisboa até Gaza. Do Porto a Ramallah. De Évora a Jerusalém. Juntem-se aos milhares de pessoas em Portugal que exigem um cessar-fogo permanente e uma Palestina livre, independente, descolonizada. Representem-me, representem-nos.