Os novos negacionistas

Não podemos deixar tudo “nas mãos” de um nível de comentário político miserável, de elites políticas e económicas focadas em lucros e eleições, e tudo dependente de uma premissa económica impossível.

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Quando Galileu descobriu que era a Terra que rodava em torno do Sol (e não o contrário), a doutrina dominante não aceitou e obrigou-o a renunciar à sua descoberta. Reza a história que à saída da igreja onde abjurara, Galileu se voltou para um amigo e lhe sussurrou: “E, no entanto, ela (a Terra) gira.”

O mesmo se passa hoje em relação à crise ecológica e ao crescimento económico exponencial das nossas economias. Quando se diz algo absolutamente razoável sobre a insustentabilidade de um sistema dependente do crescimento a todo o custo, a recepção violenta ou pedante (pelas elites, comentadores políticos, etc.) é sinal de que voltamos ao estilo da Idade Média.

Mas, independentemente do dogmatismo vigente, o facto é que não podemos continuar a aumentar o PIB para sempre. É muito simples: não é possível crescer o PIB sem aumentar ao mesmo tempo os fluxos de matérias e de energia – necessários para construir e fazer funcionar quase tudo o que se compra e vende. Mesmo quando uma inovação reduz o consumo material/energético de um bem ou serviço, esse ganho de produtividade/competitividade resulta em vendas acrescidas, o que leva a maiores consumos materiais e energéticos no total. Chama-se a isto o paradoxo de Jevons. Verifica-se sempre, desde que foi identificado no início da Revolução Industrial, e é o que demonstra a impossibilidade crónica do crescimento verde. Sem apelo.

E esta dependência de fluxos materiais e energéticos cada vez maiores implica uma destruição da Natureza na mesma proporção, porque estes têm de ser extraídos e transformados ao longo de toda a cadeia de produção: estamos a provocar a 6.ª extinção em massa, a desflorestar, sobrepescar, minerar, poluir, instalar megaparques solares e eólicos, e monoculturas industriais em todo o lado.

O relatório do Estado do Clima de 2023 publicado na revista BioScience é taxativo: “Estamos a deixar para trás as condições associadas com a civilização humana. (…) Temos de mudar a nossa perspectiva de a emergência climática ser uma questão ambiental isolada para uma [perspectiva de] ameaça sistémica e existencial.” Continuar a acreditar que conseguimos “inovar tecnologicamente” as soluções para as múltiplas manifestações deste imenso problema é não perceber a natureza desse mesmo problema. É confundir causas com sintomas. É como tentar curar um cancro com aspirinas, por nos recusarmos a aceitar que temos cancro.

É este o novo negacionismo. No anterior, o climático, não se acreditava que o aquecimento global era provocado pela ação humana. Neste novo, (ainda) não se acredita que a destruição natural sem precedentes que estamos a viver seja provocada pela obsessão do crescimento económico exponencial.

Mas esse crescimento económico exponencial é matemática e fisicamente impossível num mundo com recursos finitos. Não só por causa dos desequilíbrios ecológicos, mas também devido a outras instabilidades como a financeira, a social ou a geopolítica.

O mundo como o conhecemos, e como se materializa nas nossas vidas diárias, está prestes a sofrer uma redução imensa na sua capacidade de aceder às quantidades de energia, materiais e estabilidades essenciais à sua continuação. E se não podemos fazer grande coisa relativamente aos sistemas macro, podemos fazê-lo em relação aos nossos sistemas socio-eco-nómicos locais, regionais, nacionais – e talvez europeus – preparando-(n)os para os choques que se avizinham.

É por isso que os artigos do JMT, de Pedro Norton, ou as lastimáveis conversas de café da CNN, são bem exemplificativos das "elites" em Portugal. Embrulham-se na sua incompreensão do que se está a passar, discorrendo disparatadamente sobre um qualquer acontecimento global, repentino, tipo “cometa dos dinossauros” ou apocalipse bíblico onde tudo acontece num repente – daqueles que, realmente, nunca aconteceram à espécie humana. Têm uma visão de progresso monolítica, subjugada ao imperativo do crescimento económico, fora da qual tudo para eles é "um inferno”.

Não contemplam qualquer possível transição, qualquer via de desenvolvimento alternativo. Não entendem que o tal "fim do mundo" se refere ao aproximar do "fim de um mundo", i.e. de um modo de viver: o nosso.

E estão 100% errados, porque isto foi algo que aconteceu, literalmente, a 100% das civilizações da história da humanidade. E nas 100% das vezes que isto aconteceu, as suas elites não reagiram: o que as tornava e mantinha como elites era o sistema em que viviam, mesmo quando este se desmoronava debaixo dos pés. Pelo que mantê-lo a todo o custo era e é o seu objetivo último.

Hoje, com o velho mundo a desmoronar, surgem já várias alternativas sistémicas, económicas, democráticas, agrícolas, regenerativas, tecnológicas e em tantas outras vertentes. E o Decrescimento, enquanto corrente crítica, debruça-se precisamente sobre isto: convidar reflexões difíceis, mas honestas, imaginar e experimentar novas economias, novas medidas de progresso social, e experimentar formas de transitar, coletiva e estrategicamente, para uma sociedade onde será cada vez mais difícil o acesso a energia e materiais – por constrangimento, ou por opção.

O que não podemos e não podemos mesmo é deixar tudo na mesma, "nas mãos" de um nível de comentário político miserável, de elites políticas e económicas focadas meramente em lucros e eleições, e tudo dependente de uma premissa económica impossível.

Nas tantas histórias da humanidade, já se fez muito mais, por muito menos. Está na hora de mudar de página, de mundo e de elites.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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