Criticamente em perigo: declínio da águia-caçadeira em Portugal acima dos 75%

Autores do primeiro censo sobre a águia-caçadeira querem que o estado de conservação da espécie em Portugal passe para “criticamente em perigo”. Declínio, em dez anos, foi de entre 76% e 79%.

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Há medidas de emergência em vigor para tentar salvar os ninhos e crias da espécie Adriano Miranda
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Não foi uma surpresa, porque os investigadores que estiveram envolvidos no primeiro censo nacional da águia-caçadeira já sabiam que existia um forte declínio para esta espécie, como acontece com outras aves estepárias, como o sisão e a abetarda. Mas agora há um valor real para associar à crescente diminuição de casais a que se foram habituando: o Censo 2022-2023 aponta para um declínio, em dez anos, entre 76% e 79% da espécie. É “urgente” um plano nacional de conservação, defendem.

Os dados não diferem muito da estimativa que fora apontada pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), e que eram de um declínio de 76% da população de águia-caçadeira (Circus pygargus), mas João Gameiro, que coordenou o censo agora revelado, diz acreditar que a realidade seja mais próxima da percentagem máxima apresentada por este levantamento (79%) do que da mínima. E que, neste momento, já pode até ser pior. “O valor mínimo reflecte todos os ninhos que foram estimados ou dados como prováveis e o máximo tem em conta ninhos que foram monitorizados e não foram encontrados ou que foram dados como possíveis mas não foram confirmados”, explica o investigador.

Este primeiro censo da águia-caçadeira foi feito no âmbito do projecto "Searas com Biodiversidade: Salvemos a Águia-Caçadeira", que tem como parceiros o Biopolis-CIBIO – Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos, a associação Palombar, o Clube de Produtores Continente e a ANPOC – Associação Nacional de Produtores de Proteginosas, Oleaginosas e Cereais. Mas o trabalho no terreno contou com o apoio de muito mais voluntários e investigadores, de entidades tão diversas como o ICNF, a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA) a Liga para a Protecção da Natureza (LPN), a Rewilding Portugal ou a ATN – Associação Transumância Portugal, entre outras.

No final, o escrutínio feito em todo o território permitiu à equipa coordenada por João Gameiro e João Paulo Silva (coordenador científico), do Biopolis-CIBIO, concluir que Portugal continental terá, neste momento, entre 119 e 207 casais de águia-caçadeira. O Livro Vermelho de 2005, referindo-se a dados com uma década de existência, apontava para a presença de entre 900 e 1200 casais.

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Águia-cacadeira, há crias em cativeiro e outras selvagens cujos ninhos sao protegidos, para evitar predadores. A missão é salvar a espécie Adriano Miranda

São muito menos e encontram-se em territórios mais concentrados, tendo desaparecido de vastas áreas onde a espécie era muito comum, no Alentejo. Neste momento, os distritos com a maior estimativa de casais presentes são Bragança (45-50) e Beja (35-55), seguidos de Portalegre (16 a 20 casais estimados). Olhando para as regiões de forma mais alargada, o Norte do país (Viana do Castelo, Braga, Porto, Vila Real e Bragança) concentra entre 55 e 80 casais, enquanto o Alentejo (Portalegre, Évora e Beja) terá entre 53 e 78 casais.

No Centro (Aveiro, Viseu, Guarda, Coimbra e Castelo Branco), os investigadores admitem que possa haver entre 11 e 38 casais e no Algarve alimenta-se a esperança de que subsista ainda um casal.

Maior percentagem em matos do Norte

Dados que alteram o que era a tradicional distribuição da espécie – muito mais concentrada no Alentejo, onde existiam as grandes produções cerealíferas –, e levanta novas questões sobre a sua permanência no território nacional. “Encontrámos uma maior percentagem de indivíduos em zonas de matos e serranas, no Norte do país, o que é curioso. Nos estudos na Península Ibérica, sempre se disse que 90% da espécie estaria em áreas agrícolas. O que o censo nos mostra agora é que, em Portugal, temos 30% em zonas de matos ou serranas. Isto não é sinal de que houve uma transferência de localização, mas de que, como as águias-caçadeiras desapareceram de muitas zonas agrícolas, a proporção nas zonas de matos aumentou”, explica João Gameiro.

Esta nova realidade leva os investigadores a questionarem que novos desafios se porão à conservação da espécie nestes territórios, uma área que está ainda por estudar. “Quase ninguém em Portugal percebe bem os riscos para a águia-caçadeira, é uma população que não é tão estudada como outras. O que há está muito focado na população em território agrícola, porque é onde já se sabe que tem de haver uma intervenção imediata. O resto fica mais descurado, mas sabemos que há várias ameaças, que elas sofrem mais a norte, como os aerogeradores [as turbinas eólicas], pela perda de habitat na zona onde são instalados, e também os incêndios e a gestão de matos contra os fogos, que pode ser um factor problemático”, diz Américo Guedes, da Palombar.

O biólogo diz que na associação “adorariam avançar com um estudo” sobre esta questão, mas que é preciso financiamento para que isso possa acontecer. “Era superimportante, e as autoridades portuguesas deviam fazer o seu trabalho porque o que este censo mostra, mais uma vez – e apesar de ter havido um grande envolvimento do ICNF –, é que se não forem as ONG, e algumas a fazer trabalho voluntário, não temos sequer dados”, afirma.

Águia-cacadeira, há crias em cativeiro e outras selvagens cujos ninhos sao protegidos, para evitar predadores. A missão é salvar a espécie Adriano Miranda
Adriano Miranda
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Águia-cacadeira, há crias em cativeiro e outras selvagens cujos ninhos sao protegidos, para evitar predadores. A missão é salvar a espécie Adriano Miranda

Criticamente em perigo?

Quanto ao desaparecimento em grande escala da espécie no Alentejo, as causas são conhecidas e já foram repetidas várias vezes, sendo as mesmas que estão também a pôr em risco a permanência no país de espécies como o sisão (Tetrax tetrax) ou a abetarda (Otis tarda). Mas João Paulo Silva repete-as de novo: “No Alentejo, o declínio destas espécies é vertiginoso, são espécies que dependem de vegetação alta para nidificar e achamos que os dois últimos anos terão sido desastrosos para a águia-caçadeira. Não só por causa das alterações da política agrícola naquela região, que tem substituído a cultura cerealífera por forrageiras – com cortes mais cedo, em pleno período de nidificação, e que se acontecerem na parte final da incubação, quando a fêmea está mais agarrada ao ninho, pode mesmo levar à sua morte –, mas também por causa do clima. Chegámos a ter ondas de calor em Maio e elas têm um potencial muito grande para desidratar as crias e as levar à morte. Uma onda de calor pode afectar toda uma população.”

O apelo de João Paulo Silva é, por isso, o mesmo que já foi feito para o sisão, depois de um estudo em que o investigador participou ter apontado para um declínio da espécie na ordem dos 77%, o que pode levar à sua extinção em território nacional. “O declínio é tão dramático e a velocidade é tão grande que devia equacionar-se um plano de acção com medidas de emergência e começar a aplicá-lo já, com uma estratégia que salvaguarde algum habitat e tente salvaguardar ao máximo as perdas. Há instrumentos previstos na PAC para a gestão destas espécies, mas estas medidas estão muito mal desenhadas ou não foram articuladas entre o ICNF e o Ministério da Agricultura”, lamenta.

Ainda assim, admite que alguma coisa tem sido feita, nomeadamente ao nível de acções de emergência, para tentar salvar ninhos e crias, e também com uma medida agro-ambiental destinada a proteger o habitat desta espécie, que nidifica no solo. “A medida está publicada, mas a adesão foi residual. Está bem desenhada mas é pouco atractiva, por pagar muito pouco ao agricultor. E, claro, num ano de seca e de aumento generalizado de custos de produção, ainda menos atractiva se torna, pelo que é urgente ser melhorada. Neste momento são tão poucos os ninhos em áreas agrícolas que me parece absurdo não preverem ajudas competitivas, pois o valor total a investir nesta agro-ambiental será sempre muito pequena e o ganho será potencialmente grande”, diz-nos o coordenador científico do Censo.

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Águia-cacadeira, há crias em cativeiro e outras selvagens cujos ninhos sao protegidos, para evitar predadores. A missão é salvar a espécie Adriano Miranda

Tendo em conta que a presença da águia-caçadeira no país está muito mais concentrada (há uma contracção da sua distribuição de 78,3% quando comparado com o Atlas das Aves de 1999-2005, e de 44% face à distribuição de 2015-2021), que o seu declínio é “corrente, contínuo e, actualmente, sem medidas eficazes de reversão comprovadas”, os autores do censo defendem que o estado de conservação da espécie em Portugal passe de "em perigo" para "criticamente em perigo". “A SPEA está a actualizar o Livro Vermelho das Aves e o que estamos a propor, seguindo os critérios da IUCN [sigla inglesa para a União Internacional para a Conservação da Natureza], é que a águia-caçadeira seja considerada como 'criticamente em perigo', porque a espécie está a roçar dois limites dos parâmetros ali definidos e acreditamos que, se fizéssemos este censo no próximo ano, teríamos ainda menos indivíduos e estaríamos totalmente dentro desses parâmetros”, diz João Gameiro.