No Vale do Sado, o arroz é um produto nobre

A zona histórica de produção de arroz vê-se perante a desvalorização do produto pelo consumidor. Mas há quem insista. Afinal, o arroz não é todo igual. Ronaldo, teti e euro estão aí para prová-lo.

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Arroz do Sado, no laboratório da Aparroz (Alcácer do Sal) Marisa Cardoso
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Arroz do Vale do Sado, no laboratório da Aparroz (Alcácer do Sal) Marisa Cardoso
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Arrozal no Vale do Sado (Alcácer do Sal) Marisa Cardoso
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João Reis Mendes e Nuno Nascimento, no laboratório da Aparroz (Alcácer do Sal) Marisa Cardoso
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Arroz de lingueirão no restaurante Retiro Sadino, na Comporta (Alcácer do Sal) Marisa Cardoso
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Sem noção do perigo, os lagostins são aventureiros, cruzam a estrada que leva ao Torrão. No meio do arrozal, confirma-se a sua curiosidade: sobem os muros que dividem os canteiros e aproximam-se dos intrusos para ficarem de pinças levantadas, mãos ao ar. São o bicho mais evidente desta paisagem, não se vêem tanto as rãs, os répteis ou as garças-reais que rasam por vezes, para caçar isto tudo. “É um ecossistema irrepetível e acho que também é por isso que não acaba”, diz José Mota Capitão, produtor de arroz da Herdade do Portocarro, no Vale do Sado.

A região do arroz, como era conhecida na primeira metade do século XX, quer hoje mostrar que vale a pena escolher arroz de qualidade e que as variedades do Vale do Sado tanto produzem pratos criativos como nos levam à raiz da tradição. Mas há desafios grandes: os altos custos de produção, a indústria que define preços e mistura arroz nacional e internacional nas mesmas embalagens para o vender sob os tipos genéricos carolino ou agulha. Finalmente, o consumidor final: compra muito, mas não se preocupa com a qualidade.

“É preciso deixar de tratar o arroz como um acompanhamento indiferenciado que, no limite, acaba na tigela do cão”, diz José Mota Capitão. Aos 28 anos arrendou a Herdade do Portocarro e pouco depois comprou-a. “Quando aqui cheguei [1990] ainda se fazia a sementeira à mão.” O campo de 88 retalhos pequenos, que impedia a passagem de máquinas, passou a dividir-se em cinco canteiros que se vêem do cimo da colina onde, mais tarde, plantou vinha. Os vinhos frescos e com poucos taninos são a garantia de que não depende financeiramente do arroz — e assim pode correr o risco de valorizá-lo.

Desde 2015 vende as suas 20 toneladas anuais com marca própria Loverice. “Até aí fui um produtor como outro qualquer, com margens a diminuir a cada ano”, recorda. Esta cultura é subsidiada pelo Estado, mas os produtores continuam dependentes do preço que a indústria – uma mão-cheia de marcas bem conhecidas – lhes dá pelo arroz. O custo de um sistema de transformação, com a maquinaria para secar, descascar e polir, é insuportável para um pequeno produtor, sobretudo com o progressivo aumento dos custos fixos, como a energia, por exemplo.

Nesse ano de 2015, Mota Capitão mudou de estratégia. Puxou dos conhecimentos do negócio do vinho. “Deixei de lado as características agronómicas [o desempenho agrícola] e olhei para as organolépticas [sabores, aromas, texturas]. Comecei a pensar no cliente que queria atingir e percebi que tem de valorizar a qualidade do produto e a origem.”

Esta não é uma boa descrição do consumidor português, o maior per capita da Europa – 16 quilos anuais – relutante a pagar pela qualidade. “Ter uma marca pequena e vender o arroz a 1,20 euros [por quilo] é impossível e por isso as pessoas não têm acesso a um produto nobre.” O arroz da Loverice é vendido a 4 euros.

Arroz do Vale do Sado antes de ser descascado, na sede da Aparroz (Alcácer do Sal) Marisa Cardoso
Processamento de arroz do Vale do Sado para testagem, no laboratório da Aparroz (Alcácer do Sal) Marisa Cardoso
Processamento de arroz do Vale do Sado para testagem, no laboratório da Aparroz (Alcácer do Sal) Marisa Cardoso
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Arroz do Vale do Sado antes de ser descascado, na sede da Aparroz (Alcácer do Sal) Marisa Cardoso

Mais do que simplesmente carolino

O que distingue o produto nobre? Em primeiro lugar, saber o que se tem nas mãos. Dentro dos carolinos e dos agulhas há variedades que se comportam de maneiras diferentes no tacho. O ronaldo (um dos produzidos pela Herdade do Portocarro) é do tipo japónica (dito carolino), solta muita goma, absorve muito bem os caldos e, mesmo que passe do ponto, é capaz de se manter íntegro. É bom para risotos, mas também para os caldosos portugueses.

O arroz euro e o teti lançam menos goma, têm tempos de cozedura mais curtos e são mais vítreos, sem os pontos brancos opacos que em Portugal se deprecia. Somem-se a estas as variedades da categoria índica, a que comummente se chama agulha, como o corimbo ou o delfo. O caso dos agulha ajuda perceber o consumidor português: quando no início dos 2000 uma das grandes marcas prometeu um arroz fácil e rápido de cozinhar, os portugueses enterraram o malandro, rico e saboroso, nas memórias da casa da avó. Hoje o agulha é o mais distribuído no país, responsável pela elevada importação e pelo flagelo dos arrozes de caldo aguado. Enquanto isto, os carolinos do Vale do Sado são exportados.

“Somos o único país que tem o conceito de arroz de qualquer coisa e estamos em risco de perder esse traço gastronómico”, diz Ana Sofia Almeida, investigadora do Programa Português de Melhoramento Genético do Arroz, que quer fixar variedades geneticamente portuguesas. Nos próximos anos podem chegar ao mercado os carolinos portugueses caravela e ceres – este último, “o verdadeiro carolino”, afirma Ana Sofia; “um dos melhores arrozes que provei na vida”, diz José Mota Capitão. Vendê-los em embalagens monovarietais será uma decisão da indústria: nos supermercados, um só pacote misturar variedades (sob designação carolino ou agulha) e também origens. Portugal importa cerca de 97 toneladas anualmente.

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“É preciso deixar de tratar o arroz como um acompanhamento indiferenciado”, diz José Mota Capitão, que, além de vinhos, também produz arroz na Herdade do Portocarro (Torrão, Alcácer do Sal). Marisa Cardoso

De Alvalade do Sado a Águas de Moura

A ausência de trinca, arroz partido durante a transformação, é outro factor de qualidade. Legalmente, o arroz comercializado pode ter até 4% ou 16% de trinca, consoante seja vendido como “extra” ou “comum”. A trinca altera o cozinhado: coze mais rápido e pode ficar uma papa antes mesmo de os bagos inteiros estarem tenros. Por isso o arroz que parte mais é mais mal pago ao produtor.

“Normalmente os que crescem junto ao rio partem menos porque passam por amplitudes térmicas menores”, explica Nuno Nascimento, responsável pelo laboratório e parte industrial do Agrupamento de Produtores de Arroz do Vale do Sado (Aparroz). A organização representa os produtores da região na negociação com a indústria e dá apoio nos campos. Recentemente criou a Rice Crafters, marca própria que vende pacotes monovarietais com o arroz dos seus 25 agricultores, de Alvalade do Sado a Águas de Moura.

“Esta é uma zona histórica de arroz. Crafters vem daí, conhecemos todo o processo, é controlado por nós, sabemos dizer que o arroz carnaroli [um arroz tipo médio, muito utilizado em risotos] veio da seara do Senhor Tal”, explica João Reis Mendes, director da Aparroz.

Isto levou alguns produtores a olharem pela primeira vez para a qualidade, em vez da rentabilidade. O bomba, o clássico das paellas, é um bom exemplo: apreciado por ficar meloso mantendo a forma, é um arroz antigo e, portanto, pouco rentável no campo. “Produz metade, mas é muito bem pago e os nossos sócios estão a aderir”, diz João Reis Mendes.

O Vale do Sado é a única das três áreas portuguesas de arroz que produz bomba. José Mota Capitão, que também o cultiva e embala no Portocarro, atribui isto às características únicas da zona. “O Vale do Sado é extraordinariamente mais quente, podemos fazer arrozes de rápida maturação”, diz. Ana Sofia Almeida resume, comparando com o vale do Mondego ou o do Sorraia: “Planta-se em Maio e apanha-se em Outubro: faz-se arroz em menos tempo.”

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Além de produzir vinho, a Herdade do Portocarro, no Torrão (Alcácer do Sal), é também produtora de arroz, sob a marca Love Rice. Marisa Cardoso

Dar uma oportunidade à trinca

O laboratório da Aparroz, perto do centro de Alcácer do Sal, é uma fábrica de arroz em miniatura: uma espécie de descascadora de brincar tira as películas aos grãos e uma pequena máquina de polir fá-los brancos. Finalmente vão à peneira e, depois de pesagens e regras de três simples, Nuno Nascimento sabe quanto arroz partiu nesta viagem, ou seja, qual a percentagem de trinca. Assim descobre o valor do lote.

Com tanta aversão à trinca, compreende-se a reacção dos responsáveis da Aparroz ao prato de arroz tostado e partido de Tiago Maio. “Quando viram, a malta do Rice Crafters até se passou. Depois gostaram”, resume o chef dos restaurantes do resort Sublime Comporta. Inspirou-se no xerém para esta receita em que os bagos são propositadamente partidos (sem se tornarem farinha). É servida com plâncton, lima, espargos, gamba-violeta e papada de porco e em breve esta experiência junta-se à carta do Sem Porta, um dos restaurantes do hotel.

“Está na nossa filosofia usar produtos de proximidade e temos muito mais escolha, o que nos dá a possibilidade de testar novos pratos”, diz o chef, referindo-se às oito variedades que a Rice Crafters tem no mercado. A experimentação resultou numa canja seca de cogumelos, inspirada no congi chinês e que leva o arroz ronaldo aos limites da cozedura, até ficar numa sopa espessa. Já o bomba português faz uma aproximação sadina à paella: arroz de carabineiro, servido com uma redução de beterraba.

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DR/Ricardo Santos
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O histórico malandro de coração duro

Espanhol, chinês ou malandrinho, era obrigatório tê-lo na carta. Foi a partir da Comporta que no início do século XX se revolucionou a orizicultura nacional. A Herdade da Comporta chegou a ser uma das maiores propriedades do país e o investimento agrícola impulsionou a urbanização de Carrasqueira, Torre e Cadaval.

Em meados do século XX, no concelho de Alcácer, no pico do trabalho, vinham 10 mil assalariados agrícolas de todo o país: aos do sul chamavam-lhes algarvios e aos do norte, ratinhos, beirões, caramelos ou homens da malta. Ricardo Carraça, filho da terra, de 49 anos, tem ideia de ver estes ranchos chegarem. Por essa altura, o avô tinha uma taberna na Rua Direita, o Retiro Sadino – que é hoje um restaurante na Avenida João Soares Branco, onde Ricardo se assume “um entusiasta dos produtos de Alcácer”, mantendo na montra sacos da Rice Crafters, pinhão, mel e azeite de produtores próximos.

“Achei estranho não termos um arroz de Alcácer e fui eu que os procurei.” Recorda uma altura anterior à marca, quando os pacotes diziam apenas Aparroz. Ricardo experimentou todas as variedades e chegou à conclusão de que o ronaldo era o celebrado arroz doce da sua casa, pouco açucarado e muito cremoso, depois de 40 minutos em lume baixo a ser constantemente mexido.

Era obrigatório um arroz de lingueirão, que no Retiro Sadino se faz enriquecido de amêijoas e camarões, de Maio a Setembro. Nos restantes meses, quando o lingueirão desaparece, substitui-se por choco. O que não falha é o euro para fazer um arroz malandro e de coração duro. Quando se fala de arroz, isto são elogios.

Arroz de lingueirão, feito com a variedade de carolino euro, no Restaurante Retiro Sadino, na Comporta (Alcácer do Sal) Marisa Cardoso
Restaurante Retiro Sadino, na Comporta (Alcácer do Sal) Marisa Cardoso
Arroz doce, feito com a variedade de carolino ronaldo, no Restaurante Retiro Sadino, na Comporta (Alcácer do Sal) Marisa Cardoso
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Arroz de lingueirão, feito com a variedade de carolino euro, no Restaurante Retiro Sadino, na Comporta (Alcácer do Sal) Marisa Cardoso

Este artigo foi publicado no n.º 6 da revista Solo.

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