As dietas sem cereais são melhores ou piores para os cães?

A resposta é complexa, mas podemos começar por dizer que o glúten não os deixa doentes. A dieta “natural” dos cães também contém cereais e o amido é um dos hidratos necessários.

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A dieta “natural” dos cães também contém cereais e o amido é um dos hidratos necessários Cottonbro studio/Pexels
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Se há uma questão que tem dominado a vida dos amantes de cães nos últimos anos é a dos cereais na alimentação destes animais, nomeadamente, os ingredientes que compõem as rações.

As críticas são várias: há quem diga que provocam inchaço, obesidade, diabetes por intolerância ao glúten e que estão repletos de micotoxinas (toxinas produzidas por fungos microscópicos).

Ainda assim, os fabricantes de alimentos secos para cães demoraram apenas alguns anos para se adaptarem a estes receios. Muitos dizem ter retirado os cereais das rações que produzem e mostram os méritos das rações sem glúten. Mas será que os cereais são mesmo prejudiciais para os nossos cães?

Os presumíveis culpados: os cereais

Por detrás da palavra "cereal", há uma série de termos que são muitas vezes confusos para os consumidores, como é o caso dos hidratos de carbono, glúten e micotoxinas.

Um cereal é uma planta herbácea cultivada sobretudo pelo valor nutritivo dos grãos. A maioria pertence à família poaceae, mais conhecida como gramíneas. O trigo, o milho, o arroz e a cevada são os mais conhecidos e mais cultivados no mundo. Em média, um grão de trigo contém 70% de amido, um hidrato de carbono complexo. O glúten, por outro lado, é um conjunto de proteínas presentes nas sementes dos cereais do grupo poaceae.

Acusação n.º 1: não respeitam a dieta "natural" dos cães

A primeira acusação feita às rações que contêm cereais é a de não respeitarem a dieta "natural" dos cães. Para descobrirem qual é, os cientistas podem escolher entre examinar cães pré-históricos ou selvagens, que definimos como espécies domesticadas que dependem pouco ou mesmo nada dos humanos.

A análise das ossadas de cães em campas de vários locais do nordeste da Península Ibérica, datados da Idade do Bronze (finais do 3.º ao 2.º milénio a.C.), revelou que a dieta destes animais era bastante semelhante à dos humanos, e que, em alguns casos, continha cereais. A dieta dos cães selvagens, também se baseava essencialmente em restos deixados pelos humanos, na grande maioria cereais e fezes.

Assim, é possível concluir que, desde os tempos pré-históricos, a dieta destes animais consistiu em desperdícios de alimentos humanos que, onde se incluem os cereais. A descoberta difere muito das impressões que temos acerca da dieta "natural" do cão — muitas vezes representada na nossa imaginação como caça, associando o cão a um lobo na natureza.

Acusação n.º 2: os cães não conseguem digerir o amido

Ao contrário da opinião popular, os cães desenvolveram, ao longo da sua evolução, alguma alfa amilase salivar — enzima responsável por iniciar o processo de decomposição do amido — e podem, por isso, digerir uma quantidade moderada deste hidrato.

Durante o processo de domesticação, foram seleccionados certos genes que desempenham um papel essencial na digestão do amido. Ao longo do tempo e, através da selecção associada à criação de raças, o número de cópias do gene que codifica a produção de enzimas que digerem o amido aumentou em função dos hábitos alimentares dos animais. Isto significa que, apesar de nem todas as raças serem iguais, os cães são capazes de digerir o amido.

Na verdade, podem sobreviver sem o terem presente na alimentação, mas é uma fécula que continua a ser necessária em determinadas condições fisiológicas, como a gestação e a lactação.

Acusação n.º 3: o glúten deixa os cães doentes

O consumo de produtos que contêm glúten pode provocar reacções adversas de três tipos conhecidos: alérgicas, auto-imunes e diversas. Nos cães, a relação entre o glúten e a doença intestinal tem sido estudada no setter irlandês há cerca de 20 anos sem que os investigadores tenham ainda estabelecido qualquer causalidade. Nos border terriers, por outro lado, foi detectada uma associação entre esta proteína e a discinesia paroxística (tremores involuntários episódicos).

Contudo, estes são os dois únicos relatos de patologias que podem estar associadas à presença de glúten e uma das soluções seria evitar este alimento para testar a sensibilidade do cão.

Acusação n.º 4: as micotoxinas dos cereais podem envenenar os cães

As micotoxinas são toxinas produzidas por fungos microscópicos durante o crescimento, armazenamento, transporte ou processamento das plantas e podem estar presentes em vários órgãos das plantas, incluindo cereais, frutos e tubérculos.

A mais comum nos alimentos para animais é a alfatoxina B1, presente sobretudo nos grãos de trigo. Nos humanos e animais, as micotoxinas podem causar vários problemas de saúde, entre os quais a toxicidade hepática ou renal. No entanto, há métodos de controlo que são aplicados na altura da colheita.

A par disto, a indústria alimentar também recorre a métodos de desintoxicação. Normalmente, os bolores não se desenvolvem em alimentos devidamente secos e conservados, pelo que uma secagem eficaz e armazenamento correcto são medidas eficazes contra este fungo e produção de micotoxinas.

Quando comparadas com as rações "premium", o teor total de aflatoxinas é habitualmente maior nas rações mais baratas. A diferença pode ser parcialmente explicada pela utilização de produtos de baixo custo com condições de armazenamento menos controladas ou uma fonte de nutrientes de origem animal.

Então, as rações sem cereais são mais saudáveis?

As rações sem cereais nem sempre estão isentas de amido, mas as plantas ricas em proteínas, como as ervilhas, lentilhas e feijão, têm níveis de hidratos de carbono mais baixos do que os cereais — é por isso que têm interesse para a indústria de produção de alimentos para animais de companhia. Por exemplo, as sementes de ervilha contêm 21% de proteínas e 45% de amido.

O amido nos alimentos para cães com baixo teor de hidratos de carbono é frequentemente substituído por gordura. Isto pode não ser adaptado à situação do animal, especialmente se tem excesso de peso, é obeso ou problemas renais. Além disso, analisados os ingredientes, uma dieta sem cereais não é necessariamente menos rica em hidratos de carbono.

Por último, investigações recentes detectaram casos de doença cardíaca (cardiomiopatia dilatada) em cães que consumiam alimentos sem cereais ricos em leguminosas, incluindo em raças que não estão predispostas a sofrer desta patologia. Apesar de a associação entre alimentação sem cereais e cardiomiopatia dilatada ainda não seja clara, é necessário ter cuidado, sobretudo no caso das rações à base de ervilhas.

Veredicto: é complicado

As acusações feitas aos cereais presentes nas rações para cães não são tão claras como podem parecer. Por terem comido cereais desde que foram domesticados há dezenas de milhares de anos, os cães desenvolveram as enzimas necessárias para digerir o amido. Por outro lado, as investigações científicas descobriram que o glúten só constitui um problema para alguns cães de raças pouco comuns. Apesar de as micotoxinas estarem presentes em todos os alimentos para cães, a quantidade é altamente regulada pela indústria.

Em resumo, neste momento, não existe qualquer justificação científica para os donos escolherem uma ração sem cereais para cães saudáveis e sem problemas de saúde conhecidos.


Exclusivo P3/The Conversation
Sara Hoummady é professora em Etologia e Nutrição Animal na universidade UniLaSalle, em França

Guillemette Garry é professora e investigadora na áreas de biologia e fitopatologia, na mesma instituição

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