Esperança confusa

Não percebia o que estava a fazer de errado. Raramente era criticada e, quando era, havia alguma candura nos reparos.

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Nos primeiros anos do casamento, a Esperança não percebia o que estava a fazer de errado. Raramente era criticada e, quando era, havia alguma candura nos reparos. O marido nunca lhe batia e se ela reclamava de alguma coisa, falta sabão, falta pão, faltam lençóis, ele respondia com uma gentileza que a arranhava, prontificando-se a tomar as medidas necessárias para corrigir as deficiências apontadas. O que se passa com ele?, interrogava-se a Esperança. Se ela deitasse um saleiro inteiro na sopa, ele era capaz de comentar que a sopa estava um pouco salgada, não a comia, e era tudo. Eu não importo para nada, pensava então a Esperança, nem se dá ao trabalho de corrigir os meus defeitos, se não lhe tenho medo, não pode haver amor verdadeiro, amor a sério, como o do meu pai pela minha mãe. A Esperança sentia-se confusa. Quando ele se debruçava sobre ela, a Esperança nem pestanejava. O marido acariciava-a com ternura. Como se poderia amar um homem daqueles, que não se porta como um homem, fala baixinho e é gentil? A mãe sempre fora alvo de atenção do pai, que lhe batia quando era preciso, quase todos os dias. A Esperança lembrou-se então de quando a mãe era apanhada a ler um livro, como isso fazia o pai perder a cabeça e imediatamente a espancar. Pensou que, se fizesse o mesmo, talvez irritasse o marido como a mãe irritava o pai. Olhou para os livros das estantes lá de casa e apercebeu-se serem diferentes dos que a mãe lia: não tinham capas bonitas e coloridas, tinham capas duras, verdes ou castanhas, e letras douradas. Decidiu comprar um dos outros, dos bonitos, num quiosque: pegou em vários e olhou para as capas, maioritariamente românticas, umas mais dramáticas, outras mais idílicas, escolhendo aquele cuja imagem lhe pareceu mais interessante: uma mulher estava caída no chão, as pernas dobradas, meia de lado, vestido rasgado, havendo um homem em primeiro plano, de chapéu de feltro. Quando o marido chegou a casa, a Esperança pegou no livro como se estivesse a ler. Ficou à espera da reacção. O marido pendurou o chapéu no bengaleiro, despiu a gabardina. Ao vê-la com o livro, franziu o sobrolho e aproximou-se. É agora, pensou a Esperança.

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