Ao longo da última semana, à medida que eram conhecidas informações da Operação Influencer, ouviu-se a mesma história contada sob o ponto de vista de diferentes arguidos no inquérito aberto ao processo de aprovação e construção, pela empresa Start Campus, de um enorme centro de dados de Sines. Ficou, contudo, por fazer a autópsia sob o ponto de vista dos habitats protegidos que desapareceram ou estão em risco devido a um processo de construção do data center que, suspeita o Ministério Público (MP), envolve crimes de tráfico de influências.
A investigação do MP mostrou que o terreno onde a Start Campus pretende construir o seu “Sines 4.0” — um gigantesco data center alimentado a “energia 100% renovável”, com um investimento previsto de até 3,5 mil milhões de euros e que poderia criar entre 700 e 1200 postos de trabalho directos — incluía três charcos temporários mediterrânicos, habitats ricos em biodiversidade que são protegidos pela legislação europeia. Mas as informações que agora se conhecem sobre as negociações do projecto mostram que tudo isto terá sido ignorado ou contornado pela empresa, com o apoio do então secretário de Estado da Energia, João Galamba.
A fase de construção do primeiro edifício (identificado como NEST-New & Emerging Sustainable Technologies), iniciada em Abril 2022 e concluída em Setembro deste ano, foi isenta de avaliação de impacte ambiental pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA), por não se localizar numa zona de protecção classificada. Um dos três charcos temporários ficava nessa parte do terreno fora da zona de conservação, tendo sido terraplenado para a construção do primeiro edifício. Além da investigação ao processo de aprovação das outras fases do projecto, o MP suspeita que também possam ter ocorrido ilícitos nesta primeira fase.
O Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) responde ao PÚBLICO que, “aquando da avaliação do ICNF, não foi detectada qualquer destruição de habitats prioritários na zona do data center de Sines”. “Tendo, posteriormente, havido essa suspeita, o ICNF decidiu avançar com uma acção de fiscalização coordenada entre as direcções regionais do Algarve e do Alentejo deste instituto, tendo em vista a verificação de eventuais irregularidades”, acrescenta a entidade, avançando que “a investigação está em curso desde esta semana”.
“Qualquer prática ilícita detectada seguirá os trâmites previstos na legislação”, garante ainda o ICNF.
Os outros dois lagos temporários, já em estado de degradação, serão destruídos nas próximas fases de construção — fica por saber o que é que será possível preservar das espécies que vivem nestes habitats, contando-se que sejam cumpridas as medidas de compensação que constam da declaração de impacte ambiental.
Isenções
As últimas décadas foram marcadas por esforços a nível europeu e nacional de preservação de biodiversidade, incluindo no território industrializado de Sines, até que estes habitats se cruzaram com um novo conjunto de actores: Afonso Salema e Rui Oliveira Neves, administradores da Start Campus. Em Setembro de 2020, a empresa responsável pelo projecto contratou Diogo Lacerda Machado, conhecido por ser o “melhor amigo” de António Costa, para ajudar a agilizar o andamento do Start Campus, que acabaria por ser reconhecido como de potencial interesse nacional (PIN), em Março de 2021, pela comissão permanente de apoio ao investidor da AICEP.
Em Agosto de 2021, a AICEP Global Parques propôs a criação de um loteamento abrangendo apenas a área fora da Zona Especial de Conservação, ZEC, lote este que foi aprovado pela Câmara de Sines em Novembro desse ano. Apesar de estar fora da área classificada, esta parcela do terreno mantinha habitats prioritários, os tais charcos temporários e também matos de urze. Mas mesmo assim, em Dezembro de 2021, a APA emitiu um parecer em que dispensava o “NEST” da avaliação de impacto ambiental, considerando que o projecto não era susceptível de provocar impactos significativos no ambiente, embora pusesse algumas condições para a construção do edifício.
De acordo com o Ministério Público, o presidente da APA, Nuno Lacasta (que também é arguido na investigação), ligou a 22 de Dezembro a Rui Oliveira Neves, da Start Campus, para o informar directamente sobre a decisão.
Questionada sobre a razão para isentar de avaliação de impacte ambiental a construção da primeira fase do projecto, quando já existia a informação de que naquele terreno havia habitats prioritários, a APA não deu resposta ao PÚBLICO até ao fecho desta edição. Em declarações à RTP, a agência coloca a responsabilidade pela informação que sustentou a decisão no ICNF e na Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Alentejo. Contudo, a APA também sublinha que a isenção de Avaliação de Impacte Ambiental não significou a ausência total de cuidados, tendo sido exigido aos promotores do projecto uma medida de conservação dos matos de urze e toro.
Também o ICNF responde que, “depois de avaliados os possíveis impactes na flora, fauna e habitats, os pareceres, apesar de favoráveis, foram condicionados à apresentação de diversos planos de minimização, compensação e monitorização, de que é exemplo transferir de local os habitats, garantindo a sua protecção”.
Surpresas
“Quando a Start Campus nos contactou no sentido de fazer uma avaliação dos valores naturais, a dispensa de avaliação de impacte ambiental para o primeiro edifício já estava concedida”, explica a bióloga Carla Pinto Cruz, do Laboratório de Botânica do Med – Instituto Mediterrâneo para a Agricultura, Ambiente e Desenvolvimento. Docente da Universidade de Évora, é especialista em charcos temporários mediterrânicos, tendo sido também coordenadora científica do projecto Life Charcos.
Quando a equipa foi para o terreno, procurando formas de salvaguardar o habitat e cumprir as condições da APA, a preparação da construção do NEST no terreno fora da área da Rede Natura já estava em andamento.
Perante a iminente destruição de habitats prioritários, a reacção da equipa da Universidade de Évora foi tentar salvar o máximo possível, elaborando então um “plano de translocação”.
A equipa constatou que os charcos temporários já se tinham degradado. Além dos períodos de seca prolongada que ameaçam estes habitats no Sul do país em geral, a região de Sines tinha ainda um outro factor de risco: um canal de drenagem que tem limitado a capacidade destes solos de cumprir os períodos de encharcamento anuais que os caracterizam.
Mas se, por um lado, os charcos tinham desaparecido, em seu lugar foram registados matos de urze e tojo, outros habitats protegidos nos solos húmidos do local — informação que foi comunicada pela equipa de Évora aos responsáveis da Start Campus.
Pressões
À medida que as obras do primeiro edifício avançavam — mesmo sem luz verde para o resto do projecto —, os intervenientes da Start Campus inquietavam-se com a falta de garantias.
Em Dezembro de 2022, a pedido de Diogo Lacerda Machado, o então chefe de gabinete de António Costa, Vítor Escária, reúne-se com o lobbyista e com Afonso Salema e assegura que a avaliação de impacto ambiental à expansão do centro de dados terá decisão favorável. Até então, o presidente do ICNF, Nuno Banza, defendia que o parecer a apresentar pela entidade que tutelava deveria ser desfavorável.
O ex-chefe de gabinete de António Costa terá também prometido contactar o presidente da Câmara de Sines para garantir que não haveria atrasos nos licenciamentos camarários.
Futuro do projecto
Em Agosto de 2023, foi emitida uma declaração de impacte ambiental (DIA) favorável condicionada para as fases seguintes do projecto (Rest), que exige que seja elaborado um plano aprovado pelo ICNF para uma relocalização dos charcos. É ainda uma incógnita se a DIA poderá ser impugnada em consequência das investigações do Ministério Público sobre tráfico de influência na sua aprovação.
A APA não esclareceu o PÚBLICO sobre as penalizações para o eventual incumprimento das exigências da agência na DIA favorável condicionada, mas em resposta à RTP a agência recorda que este documento não é a etapa final do processo: só após o cumprimento das exigências e da entrega do Relatório de Conformidade Ambiental do Projecto de Execução, que é novamente analisado pela APA, é que o projecto poderá ser licenciado ou autorizado.
Sobre as ilações que se podem tirar deste caso talvez se possa regressar à cerimónia de apresentação do “Sines 4.0”, em Abril de 2021, quando o então ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, falou na necessidade de assegurar licenciamentos céleres para este tipo de projectos. “É necessário organizarmo-nos para assegurar que as decisões públicas e privadas acontecem depressa.”
O apelo lançado por ambientalistas e cientistas é um pouco diferente: que haja também um compromisso para assegurar a protecção dos habitats. Para a bióloga Carla Pinto Cruz, da Universidade de Évora, seria útil uma visão mais global do ordenamento do território: falta um real compromisso para hierarquizar zonas “mais prioritárias”, respeitando os valores naturais.