Glifosato: herbicida aprovado por mais uma década na União Europeia

Comissão Europeia dá luz verde à renovação da licença para o uso agrícola do glifosato, uma vez que os Estados-membros não chegaram a um consenso sobre a polémica substância usada em herbicidas.

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Roundup, uma marca de herbicida (detida agora pela Bayer) que inclui como ingrediente activo o glifosato YVES HERMAN/REUTERS
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A Comissão Europeia vai aprovar, por mais uma década, a utilização agrícola do glifosato – o ingrediente activo de um dos herbicidas mais usados em Portugal. Esta decisão surge na sequência de uma votação realizada esta quinta-feira, em Bruxelas, na qual os Estados-membros da União Europeia não chegaram a um consenso sobre a renovação da licença desta substância química.

Um consenso é alcançado quando pelo menos 15 dos 27 países da União Europeia votam contra ou a favor, permitindo assim a formação de uma “maioria qualificada” capaz de fazer avançar ou travar uma proposta. Esta quinta-feira, pela segunda vez consecutiva, a votação não alcançou a maioria necessária (que corresponde a pelo menos 65% da população do bloco europeu).

Não havendo uma “maioria qualificada” nesta segunda votação, cabe agora à Comissão Europeia deliberar sobre a renovação da licença do glifosato antes de 15 de Dezembro de 2023 (data em que expira a actual licença para o uso agrícola desta substância química). E a decisão já era previsível, tendo em conta as avaliações de risco emitidas por duas entidades europeias: Bruxelas vai dar luz verde ao glifosato por mais uma década.

“Com base em avaliações de segurança abrangentes realizadas pela Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (EFSA) e pela Agência Europeia dos Produtos Químicos (ECHA), juntamente com os Estados-membros, [a Comissão Europeia] irá agora proceder à renovação da aprovação do glifosato por um período de dez anos, sujeito a certas novas condições e restrições”, refere um comunicado divulgado esta quinta-feira.

Entre as restrições previstas na nova licença estão não só o uso do glifosato como dessecante (ou seja, produto capaz de remover a humidade) antes da colheita, mas também a adopção de medidas para proteger organismos que, apesar de não serem ervas “daninhas”, acabam por ser afectados pela substância química.

O PÚBLICO apurou que todos os países mantiveram o sentido de voto manifestado na votação de 13 de Outubro. A maioria dos países votou a favor da proposta, incluindo Portugal. Três Estados-membros votaram contra: Áustria, Croácia e Luxemburgo. Alemanha, Bélgica, Bulgária, França, Holanda e Malta abstiveram-se.

Reacções à renovação da licença

A associação ambientalista Zero considera que esta decisão é uma oportunidade perdida e lamenta que a Comissão Europeia não formule outra proposta.

A renovação da substância activa glifosato para mais uma década, perante preocupações substanciadas, constitui uma oportunidade perdida. Uma outra proposta da Comissão seria necessária, para promover um caminho para diminuir a dependência desta substância com efeito herbicida (a vasta maioria dos herbicidas usado na União Europeia é à base de glifosato) e diminuir os riscos associados ao uso alargado que se verifica, afirma ao PÚBLICO Pedro Horta, responsável da Zero para a área de sistemas agrícolas.

Pedro Horta frisa ainda que a decisão contraria a regulação do uso de herbicidas e a obrigatoriedade de adopção de boas práticas fitossanitárias, preconizadas pela estratégia europeia Do Prado ao Prato e pelo Pacto Ecológico Europeu.

A Aliança para o Ambiente e a Saúde (HEAL, na sigla em inglês), uma organização europeia sem fins lucrativos, também lamenta este desfecho. “Este novo fracasso em obter consenso dos Estados-membros a favor de uma renovação do glifosato por dez anos mostra que se tornou politicamente impossível continuar a ignorar a ciência”, afirma Natacha Cingotti, líder para o programa de saúde e substâncias químicas da HEAL.

Natacha Cingotti considera inaceitável que a Comissão ainda planeie avançar com a proposta, considerando não só a quantidade de provas científicas dos impactos da substância na saúde humana, mas também todo o sofrimento envolvido.

Embora não possamos desfazer as décadas de exposição, a Comissão Europeia ainda pode aproveitar esta oportunidade para deixar cair a proposta e fazer uma inversão de marcha, apostando em práticas agrícolas mais sustentáveis, diz a responsável num comunicado da HEAL.

Associação entre glifosato e cancro

O uso do glifosato gera polémica há quase uma década. Em 2015, a agência da Organização Mundial de Saúde dedicada ao cancro afirmou que a substância era provavelmente cancerígena para os seres humanos. Ao anúncio seguiram-se relatórios que não indicavam razões para alarme mas, ao mesmo tempo, que reconheciam não haver informação suficiente.

Uma avaliação de risco, conduzida e divulgada pela EFSA em Julho deste ano, afirmava não haver “nenhuma área crítica de preocupação” relativamente à utilização agrícola do glifosato. O documento mencionava, no entanto, múltiplas lacunas nos dados hoje disponíveis.

A eurodeputada luxemburguesa Tilly Metz, que também é membro da Comissão da Agricultura e do Desenvolvimento Rural, garante que o uso do glifosato não é seguro e pede à Comissão para ouvir a ciência e banir este composto químico de uma vez por todas.

Tilly Metz recorda que um estudo recente, noticiado pelo PÚBLICO, atribuía a subida da mortalidade devido a um cancro pediátrico à provável contaminação dos sistemas de abastecimento de água por pesticidas no Brasil.

“Na semana passada foi publicado um estudo que mostra uma ligação clara entre leucemia e glifosato. Nos últimos meses e anos, temos visto cada vez mais relatórios que confirmam os perigos do glifosato e a Comissão Europeia deve ter isto em conta ao decidir sobre o futuro da utilização destes herbicidas perigosos, afirma a eurodeputada luxemburguesa, citada numa nota de imprensa divulgada pelos Verdes esta quinta-feira.

Indústria química aplaude decisão

O pedido de renovação da licença partiu de um colectivo de empresas que se auto-denomina Grupo de Renovação do Glifosato (GRG), e reúne gigantes da indústria química como a Bayer, a Nufarm e a Syngenta. Num comunicado divulgado esta quinta-feira, o GRG aplaude a decisão da Comissão Europeia, sublinhando as vantagens agrícolas e ambientais da substância química.

É essencial manter a caixa de ferramentas dos agricultores bem equipada com instrumentos eficazes e seguros para controlar as ervas daninhas, contribuindo não só para a segurança alimentar europeia, mas também para facilitar a conservação e sistemas agrícolas regenerativos (quando [o glifosato] é combinado com uma série de novas soluções agrícolas), refere o comunicado.

A Corporate Europe Observatory, uma organização não-governamental que monitoriza a actividade de lobbying empresarial em Bruxelas, sugere que houve pressão por parte do GRG e lamenta que a Comissão Europeia tome esta decisão sem mandato ou legitimidade.

Apesar de o sistema de aprovação europeu de pesticidas trabalhar largamente a favor da indústria, e apesar dos esforços do GRG (em particular da Bayer), a votação de hoje [quinta-feira] não obteve maioria qualificada entre os Estados-membros. Ainda assim, a Comissão vai forçar uma extensão de dez anos, continuando a envenenar agricultores e cidadãos, refere o activista português João Carmargo, investigador no Corporate Europe Observatory, na rede social X (antigo Twitter).

Notícia actualizada às 18h45: foi acrescentado o sentido de voto dos Estados-membros.