O número de mortes relacionadas com o calor extremo podem mais do que quadruplicar (aumento estimado de 370%) até meados deste século, prevê o relatório Lancet Countdown, uma publicação científica anual dedicada à saúde humana e à crise climática. “Não há desculpa para a nossa inércia colectiva”, comenta o secretário-geral da ONU, António Guterres.
A oitava edição do documento, divulgada esta terça-feira, calcula ainda que mais 525 milhões de pessoas deverão enfrentar insegurança alimentar moderada ou severa nesse intervalo, também num contexto de aumento global da temperatura média de 2 graus Celsius em comparação ao período pré-industrial.
“A mensagem mais importante deste relatório é que a inacção climática está hoje a custar vidas – e são aqueles que menos contribuíram para as emissões globais que estão a ser mais duramente atingidos. O documento também mostra que as crescentes ameaças à saúde são um sinal precoce dos perigos que o futuro poderá trazer, a menos que combatamos urgentemente as alterações climáticas”, afirma ao PÚBLICO o co-autor Niheer Dasandi, professor da Universidade de Birmingham, no Reino Unido.
O documento identifica “poucos sinais de progresso” desde o ano passado. E denuncia a “negligência” de governos, empresas e bancos que continuam a investir em petróleo e gás, mesmo sabendo que a inacção climática está a custar vidas humanas e meios de subsistência.
“A inacção acarreta um enorme custo humano e não podemos permitir este nível de desligamento – estamos a pagar em vidas. Cada momento que adiamos torna o caminho para um futuro habitável mais difícil e a adaptação cada vez mais cara e desafiadora”, afirma a cientista Marina Romanello, que coordenou a elaboração do relatório na University College London, citada no comunicado.
Da fome às doenças infecciosas
Da insegurança alimentar à propagação da dengue, o relatório traça cenários pouco auspiciosos para a Humanidade, se mantivermos a trajectória actual de emissões de gases com efeito de estufa – um caminho que nos levaria a uma subida da temperatura média de 2,7 graus Celsius em relação ao período pré-industrial. O Acordo de Paris, assinado em 2015, preconizava um esforço internacional para limitar o aquecimento global a 1,5 graus Celsius.
“Não há desculpa para a nossa inércia colectiva. Só uma acção poderosa e imediata poderá limitar o aumento da temperatura global a 1,5 graus Celsius e evitar o pior das alterações climáticas”, afirma António Guterres, secretário-geral das Nações Unidos, num comentário ao relatório, citado no mesmo documento.
“A evidência é inequívoca: uma transição justa e equitativa dos combustíveis fósseis para as energias renováveis, juntamente com um aumento global no investimento em adaptação, salvará milhões de vidas e ajudará a proteger a saúde de todas as pessoas na Terra”, acrescenta Guterres.
Portugal citado como exemplo
O relatório enumera riscos e falhanços, mas também indica oportunidades. À medida que a saúde ganha mais proeminência nas negociações climáticas – a Cimeira do Clima (COP28) começa já no próximo dia 30, no Dubai –, o Lancet Countdown destaca novas oportunidades para combater a crise do clima e, ao mesmo tempo, proteger a saúde humana. Um exemplo: menos emissões também significam menos partículas de poluição suspensas no ar e, como consequência, menos mortes.
“Com 1337 toneladas de dióxido de carbono ainda emitidas a cada segundo, não estamos a reduzir as emissões com rapidez suficiente para manter os riscos climáticos dentro dos níveis que os nossos sistemas de saúde possam suportar”, alerta Marina Romanello.
O relatório destaca o facto de um número crescente de países terem promulgado leis sobre mitigação com referências directas aos impactos da crise do clima na saúde, incluindo o Equador e Nauru. A Lei de Bases do Clima de 2021 de Portugal é citada como um exemplo dessa tendência positiva.
A legislação nacional estabelece que o Governo deve apoiar a “avaliação dos riscos globais e nacionais e a preparação de planos de acção, prevenção e contingência face a situações extremas fenómenos climáticos, o surgimento de novas doenças ou o agravamento da incidência de doenças como resultado das mudanças climáticas”.
Niheer Dasandi explica que a legislação portuguesa é “particularmente importante”, por duas grandes razões: primeiro, porque compromete o Governo com uma série de acções que podem ajudar a mitigar os efeitos da crise climática e do aumento das temperaturas na saúde das pessoas; segundo, por a lei enfatizar ainda mais a relação próxima entre clima e saúde – e, portanto, a necessidade de os diferentes intervenientes na sociedade reduzirem as emissões.
“[Isto] aumenta a consciencialização das pessoas. Sabemos que os profissionais de saúde (como médicos e enfermeiros) são frequentemente vistos como os membros mais confiáveis da sociedade”, refere o investigador que contribuiu para a elaboração do Lancet Countdown.
Embora Portugal tenha sido um dos primeiros países a avançar com um diploma que prevê metas de redução de emissões, vinculando assim o Governo a medidas de acção climática (com consequências positivas para a saúde), uma parte significativa da lei ainda não saiu do papel. Há aspectos bem-sucedidos, segundo os ambientalistas, como o orçamento verde e as políticas climáticas locais. Mas também há muito por fazer.
Um “fracasso” evidente até agora
Os autores falam num “fracasso” da acção climática até agora, algo que ficou mais do que “evidente” este ano. Testemunhamos em 2023 as temperaturas globais mais elevadas dos últimos 100 mil anos, com recordes de temperatura registados em todos os continentes.
As mortes relacionadas com o calor em pessoas com mais de 65 anos aumentaram 85% entre 2013 e 2022 (em comparação com a década de 1991-2000). Sem uma subida da temperatura média global de 1,14 graus Celsius nesse período, estimava-se uma subida de 38% tendo em conta apenas as alterações demográficas – ou seja, menos de metade do que se verificou com o aquecimento global.
Há fenómenos climáticos extremos súbitos, como ciclones e tempestades, que abalam paisagens, populações e ecossistemas. Mas há também episódios lentos, como a subida do nível médio do mar ou a seca hidrológica, que ameaçam a disponibilidade de água para consumo humano e o cultivo de alimentos, aumentando os casos de desnutrição, migração forçada e doenças infecciosas.
O relatório oferece como exemplo o facto de o aquecimento do oceano favorecer, nas águas junto à costa, a propagação de bactérias do género Vibrio, que podem causar doenças e morte em seres humanos.
Todos os anos, desde 1982, mais 329 quilómetros de litoral tornam-se propícias à multiplicação, o que coloca “um número recorde de 1,4 mil milhões de pessoas em risco de doenças diarreicas, infecções graves de feridas e septicemia”, refere o comunicado. A publicação refere ainda que esta ameaça é “particularmente elevada na Europa, onde as águas costeiras adequadas ao Vibrio aumentaram 142 quilómetros todos os anos”.
Clima e saúde de mãos dadas
Os impactos da crise climática não são iguais para todos. A oitava edição do relatório tem uma abordagem regional, mostrando como as experiências podem ser distintas consoante a geografia. Há quem já esteja a beneficiar de medidas de adaptação – abrigos de calor ou sistemas de aviso precoce, por exemplo – e, por extensão, dos co-benefícios para a saúde. E há também quem tenha ficado para trás. Daí que os autores sublinhem que uma transição energética justa constitui agora uma oportunidade para não só combater desigualdades, mas também melhorar a saúde global.
Os autores defendem “uma acção climática urgente centrada na saúde”. E esta aposta dupla implica não só reduzir drasticamente as emissões de carbono para a atmosfera, mas também garantir às populações acesso a um ar mais limpo, por exemplo, ou a dietas e estilos de vida mais saudáveis.
O relatório apresenta 47 indicadores incluindo medições mais precisas sobre a poluição atmosférica doméstica, o financiamento de combustíveis fósseis e o envolvimento de organizações internacionais numa acção climática centrada na saúde.
O Lancet Countdown resulta do trabalho conjunto de 114 especialistas de 52 instituições científicas e agências da ONU, incluindo a Organização Mundial de Saúde e a Organização Meteorológica Mundial, que se dedicam às ligações entre a saúde e crise climática.