Ucrânia tem ajuda para levar a Rússia a responder por crimes ambientais na guerra

Os danos contra o ambiente são vítimas silenciosas das guerras. A ex-governante sueca Margot Wallström lidera um grupo que está a aconselhar o Governo ucraniano para obter indemnizações da Rússia.

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Sapadores ucranianos procuram minas na região de Chernihiv Gleb Garanich/REUTERS
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A barragem de Kakhovka, no Sul da Ucrânia, tinha o maior reservatório, em volume, na Europa, com 18 km3. A 6 de Junho de 2023, foi destruído e água inundou 620 km2 de território, diz o Governo ucraniano, numa avaliação divulgada em Outubro. O colapso foi classificado pelo Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, como “uma bomba ambiental de destruição maciça”. Este caso pode vir a ser o primeiro dos crimes de guerra ambientais pelos quais a Ucrânia quer responsabilizar a Rússia, e obter uma compensação monetária.

“A destruição da barragem de Kakhovka teve um grande impacto em todos os seres vivos e na natureza da região”, disse ao PÚBLICO Margot Wallström, ex-ministra dos Negócios Estrangeiros sueca, numa conversa por videoconferência. Wallström lidera o grupo de trabalho internacional United for Justice, que vai aconselhar a Ucrânia sobre a melhor forma de conduzir uma avaliação dos danos ambientais provocados pela guerra, e como elaborar processos judiciais para responsabilizar a Rússia.

Um sumário, de forma alguma exaustivo, dos danos provocados pela destruição da barragem, feito pela organização não-governamental britânica Observatório de Conflito e Ambiente, em Julho, dá-nos uma ideia do que é este desastre, cuja origem é atribuída aos militares russos.

A água chegou a pelo menos 88 depósitos de resíduos perigosos, e quantidades significativas de combustíveis e outros poluentes foram libertadas, o que representa uma ameaça para os organismos aquáticos e para as águas subterrâneas. Aterros sanitários, instalações agrícolas, bombas de gasolina foram inundados. Os edifícios podem ser também uma fonte de poluição importante – por exemplo, amianto. A agricultura pode tornar-se inviável em várias zonas.

Isto para não falar nas seis áreas naturais classificadas que foram afectadas e a descarga de sedimentos e uma grande quantidade de água doce no mar Negro, capazes de alterar a sua salinidade e afectar as correntes marinhas e os seres vivos.

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Margot Wallström diz que a tarefa imediata para a Ucrânia é recolher provas dos crimes ambientais russos Annika AF Klercker/REUTERS

Quebrar o silêncio e reconstruir melhor

Os danos ambientais têm sido designados como as vítimas silenciosas das guerras, sublinhou Margot Wallström. “O nosso objectivo é que deixe de ser essa vítima sem voz. Mas, para isso, temos de compreender de forma clara quais os estragos que a natureza está a sofrer por causa da guerra”, adiantou.

É difícil chegar a um valor dos prejuízos ambientais. “E também é arriscado tentar medir tudo em termos de dinheiro. Há coisas nas quais não se pode pôr um preço. O valor pode estar também na beleza de um local. Ainda assim, chegamos a valores astronómicos”, adianta Wallström.

O Ministério do Ambiente ucraniano montou um site onde tenta fazer essas contas. O valor a que chegou para os prejuízos totais da destruição da barragem de Kakhovka, por exemplo, é de 146.400 milhões de grívnias, na moeda ucraniana, ou 3808 milhões de euros.

O grupo que Wallström lidera, juntamente com Andrii Iermak, chefe de gabinete do Presidente da Ucrânia, tem três linhas de trabalho. A primeira é reflectir sobre a melhor forma de fazer a avaliação dos estragos no ambiente causados pelo conflito. “Não há um padrão internacional para medir o impacto ambiental da guerra”, explicou.

A segunda linha de análise tem a ver com a atribuição de responsabilidade por estes estragos. “Os ucranianos querem ter a certeza de que a Rússia pagará pelos crimes de guerra que está a cometer”, afirma. Em terceiro lugar, está-se a fazer uma reflexão sobre como fazer a reconstrução depois da guerra: "Reconstruir melhor e de forma mais ecológica na Ucrânia.”

O grupo está a analisar vários relatórios já produzidos por instituições como o Banco Mundial ou a União Europeia, e deve emitir no fim do ano uma série de recomendações para acção do Governo ucraniano.

Há várias camadas de complexidade, factores diferentes a considerar. Por exemplo, na desminagem: “O método mais rápido e eficaz é simplesmente remover a camada superior do solo, com grandes máquinas. Mas do ponto de vista ambiental, isto não é nada recomendável”, explica Margot Wallström. “Portanto, se queremos que os solos recuperem, provavelmente a desminagem vai ser mais cara e exigir métodos mais sofisticados.”

“É preciso ver esta questão em diferentes perspectivas temporais: a tarefa imediata é recolher provas”, sublinhou Margot Wallström. O facto de esta guerra ser ao mesmo tempo muito arcaica e a mais moderna que conhecemos é uma ajuda, defende.Parece que vemos cenas da II Guerra Mundial no campo de batalha, com aqueles velhos tanques, e as trincheiras, toda a violência e brutalidade. Mas é moderna porque, ao mesmo tempo, são usados drones, e podemos ter imagens directamente do campo de batalha, podemos acompanhar a guerra em tempo real. E documentar os crimes de guerra como nunca foi possível até agora”, salienta a ex-ministra sueca.

Definir o ecocídio

“Não será já amanhã que [o Presidente russo] Vladimir Putin vai ser posto atrás das grades e a liderança russa responsabilizada. Mas esse é o objectivo geral. Para isso, é preciso determinar de forma clara que foram cometidos estes crimes”, salienta a ex-governante sueca.

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Uma imagem de satélite mostra a barragem de Kakhovka em Junho, no dia em que rebentou PLANET LABS PBC/REUTERS

A legislação ucraniana tem uma definição legal de ecocídio, ou crime contra a natureza, e estão a ser instruídos vários processos com base nessa lei. Mas a Ucrânia juntou-se ao grupo de países e activistas que há vários anos lutam para que o ecocídio seja adicionado ao leque de quatro crimes graves reconhecidos pelo Estatuto de Roma, o tratado internacional que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional (TPI): genocídio, crimes contra a humanidade, agressão e crimes de guerra. Estados como Vanuatu e Fiji têm defendido a inclusão de um quinto, crime contra a natureza.

A Rússia assinou o tratado em 2000, mas não o ratificou, e anunciou em 2016 que retiraria a sua assinatura, um dia depois da publicação de um relatório pelo TPI em que classificava a situação na península da Crimeia como uma “ocupação”.

De qualquer forma, a Ucrânia, “com a ajuda de procuradores internacionais”, está a tentar constituir processos por crimes de guerra contra o ambiente que possam ser julgados no país.

Kiev espera conseguir ter uma indemnização por esses crimes se tiver acesso a alguns dos fundos russos no estrangeiro que foram confiscados por causa da invasão da Ucrânia. Há mais de 200 mil milhões russos congelados na União Europeia. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, confirmou no fim de Outubro que, em coordenação com o G7, está a ser estudado usar os activos congelados do Banco Central russo para financiar o esforço de reconstrução da Ucrânia.

Esses fundos poderiam ainda servir para constituir um fundo, a exemplo do que aconteceu em 2003 com os activos do Governo iraquiano de Saddam Hussein. Uma resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas canalizou-os para o Fundo de Desenvolvimento para o Iraque.