Água de colónia
Ele ficou parado a olhar para ela, como costumava olhar para um incêndio, em silêncio, com os punhos cerrados: achou-a bonita, gostou do sorriso, gostou da voz, gostou dos cabelos castanhos.
Estavam sempre juntas, a São e a Rosário, e aos domingos à tarde acontecia com frequência serem visitadas pelo Moisés, que nunca dizia ao Urso, agora também a viver em Lisboa, aonde ia. Um dia, o Urso, acossado pela curiosidade, decidiu segui-lo. Viu o amigo entrar num prédio da Baixa. O Moisés levava flores, um ramo sem imponência, sacado a um canteiro qualquer de um jardim qualquer. Vai todo janota, pensou o Urso, parece que vai a um baptizado, deve ter arranjado uma amante, deve ser isso, todo penteadinho com cuspo no cabelo, até engraxou os sapatos, só pode ser isso, tem uma amante, anda na rua com ramos de flores, nem parece ele, que vergonha, ela já lhe deve ter avariado a cabeça. Agora que penso nisso, acho que já lhe senti um cheiro estranho, devia ser água de colónia ou lá o que é, devia ter visto logo a coisa toda, um homem vai pôr colónia para quê, se não for por um rabo-de-saia, se não for porque uma mulher lhe deu um pontapé na cachimónia e o destrambelhou todo? E, ao entrar no prédio, limpou os sapatos, sacudiu a camisola. Estava a sacudir o quê? Caspa? Mas porque não me disse nada, porque não me disse que tinha arranjado mulher? Somos amigos ou quê? O Urso acendeu um cigarro encostado a uma parede de esquina, debaixo de um plátano. Como será ela?, interrogou-se, deve ser uma galdéria toda torta, cara de arenque, nariz de porco, se calhar foi por isso que ele não me disse nada, a rapariga é tão feia que ele tem vergonha, fico à espera, quando o Moisés sair vou ter com ele para ver o que me vai dizer, somos amigos ou quê? estás aí com segredinhos porquê?
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