Vandana Shiva: cuidar do solo “é o maior seguro contra as alterações climáticas”

A activista e investigadora Vandana Shiva esteve em Serralves para falar sobre transição alimentar e ambiental. Em entrevista ao Azul, sublinha que a alimentação não pode ser esquecida nas cidades.

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Vandana Shiva, filósofa, física, ecofeminista e activista ambiental indiana Tiago Bernardo Lopes
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Foi perante um auditório cheio na Fundação de Serralves que a investigadora e activista indiana Vandana Shiva começou a sua intervenção, já ia escuro o céu do final da tarde de segunda-feira, para falar sobre “porque é que precisamos de ouvir a Natureza”.

Oradora principal da conferência organizada pela Universidade Católica Portuguesa dedicada ao tema Transição Alimentar e Ambiental: Tempo de Ouvir a Natureza, Vandana Shiva fez afirmações arrojadas como “a alimentação é a moeda de troca da vida”, “nunca tivemos fome à escala dos dias de hoje porque está imbuído no sistema” ou “o preço real dos alimentos só se verifica nas economias que estão sob o controlo das pessoas”. Na plateia, o efeito era hipnótico, não fosse Vandana Shiva uma espécie de guru académico nas áreas da sustentabilidade, soberania alimentar, biodiversidade, justiça social e ecofeminismo.

O sistema vigente, diagnostica a activista, “vê a natureza como matéria-prima para exploração, a comida como uma mercadoria em vez do nutriente da vida”. Vandana Shiva alerta a plateia: esta tentativa de “domínio da Humanidade sobre a natureza, em vez de uma parceria com a Terra”, conduz a uma “ilusão de separação”. “Nunca estamos separados. E certamente não somos superiores às outras espécies.”

Em entrevista ao Azul, apertada entre o fim da conferência e um jantar reservado a convidados no restaurante de Serralves, Vandana Shiva fala sobre a falta de ligação entre as cidades e as suas fontes de alimentação, a transição para sistemas mais sustentáveis (que também trará mais saúde para as pessoas) e é também impetuosa na crítica à União Europeia e à atribuição dos subsídios da Política Agrícola Comum (PAC) às grandes empresas “que destroem a terra” em vez de apoiar os agricultores – aqueles que trabalham, efectivamente, o solo – e ajudar os jovens a juntarem-se a um verdadeiro movimento regenerativo.

A tendência para o “reducionismo do carbono” – reduzir tudo às respectivas emissões de gases com efeito de estufa –, alerta, pode estar a cegar-nos em relação a outras tendências que Vandana Shiva considera perigosas. Entre elas, a “nova colonização” relacionada com os chamados mercados voluntários de carbono, através dos quais os “poluidores e bilionários que nos causaram o problema” estão a “apoderar-se da terra das pessoas para criar sumidouros” e compensar “a poluição que eles próprios criaram”. “Estou totalmente contra a apropriação dos recursos de outros povos, a nova colonização do carbono, porque temos soluções reais trabalhando com a Terra.”

Há uma espécie de dissonância entre o que a ouvimos falar sobre o mundo rural, a agricultura e o solo, e a forma como as pessoas das cidades respondem a essas questões. Parece que já não sabemos nada sobre a comida e como é produzida. Também tem essa percepção?
O grande facto é que o lobby do grande agro-negócio tem sido poderoso a fazer parecer que o comércio de longa distância e mais produtos químicos nos alimentos são o que produz os alimentos. Isso não é verdade. O comércio é apenas comércio, apenas move os alimentos de um lado para o outro. E quanto maior for a distância percorrida, maiores serão as emissões e maior será a degradação da qualidade dos alimentos, porque não há nada fresco, nada perto de casa. Já disse isto a muitos autarcas quando aconselhei o C40, eles planeiam a água para as suas cidades, planeiam a bacia hidrográfica. Mas a alimentação é o metabolismo básico da cidade. Toda a gente come na cidade, mas não se planeia a distribuição de alimentos [foodshed]. E permite-se que estas forças anónimas tragam todo o lixo do mundo até nós. É isso que está a criar todo o desperdício, porque a comida local não é desperdiçada na mesma medida.

Há definitivamente uma dissonância, uma dissonância que faz parecer que a cidade não come [risos]. Uma dissonância que nos faz esquecer que mesmo na cidade podemos estar a produzir alimentos. Novos dados mostram que onde existe planeamento das cidades, 30 a 40% dos legumes podem vir de dentro da cidade. E a maioria dos alimentos pode vir de um raio que cada um pode fixar: se for uma cidade pequena, pode ser 150 quilómetros; se for uma cidade maior, pode ser 800 quilómetros. Essa zona de distribuição de alimentos deve fazer parte do planeamento de qualquer cidade. A alimentação tem de ser a transição tanto para a sustentabilidade da terra como para a saúde das pessoas.

Quando falamos dessas soluções, há sempre desculpas. Não podemos abandonar os produtos químicos porque é preciso alimentar 8000 milhões de pessoas. Não podemos depender só dos pequenos agricultores das redondezas porque podem não produzir o suficiente. Quando o sistema diz que não vai funcionar, como é que responde?
Eu acabei por passar 40 anos da minha vida não só a pôr em prática os sistemas que produzem mais alimentos sem destruir a terra, mas que de facto regeneram a terra enquanto aumentam a nutrição. Foi por isso que mudei as minhas medidas de rendimento por hectare, que mede as mercadorias, para saúde por hectare e nutrição por hectare. É claro que é possível alimentar oito mil milhões de pessoas. Mas não por uma única entidade.

Todos os microrganismos do solo já nos estão a alimentar, temos de o reconhecer. É por isso que ouvir a natureza é importante. Um terço dos alimentos que comemos provém de polinizadores, fizemos experiências com isto. Precisamos de os proteger, e por isso é preciso acabar com os pesticidas. A estratégia Do Prado ao Prato deveria ser sobre isso, mas os lobbies poderosos impedem-na de se tornar real. O meu próprio trabalho, que começou com a conservação de sementes e a protecção da biodiversidade, mostrou que quanto mais biodiversidade houver, mais a terra se regenera e mais nutrição se produz, sem venenos. Podíamos alimentar duas vezes mais pessoas regenerando a terra.

No entanto, cada vez mais agricultores estão a ser desenraizados, porque a política do Banco Mundial e outras agências tem como objectivo retirar os agricultores da terra. É por isso que as cidades estão a crescer. Não se trata de um fenómeno natural, mas sim pelo tipo de políticas. Na Índia, durante muito tempo, assegurámos que os agricultores tivessem justiça e é por isso que as nossas aldeias não se esvaziaram e as nossas cidades não cresceram de forma anormal. Com a globalização, é claro que agora estão a explodir, mas as cidades estão a crescer porque tornamos inviável a subsistência nas zonas rurais.

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Vandana Shiva, filósofa, física, ecofeminista e activista ambiental indiana Tiago Bernardo Lopes

Para corrigir esta desproporção, é preciso criar trabalho nas zonas rurais, e os jovens querem muito poder fazer esse trabalho com a terra. Como sociedades, temos a obrigação de pôr o dinheiro dos nossos impostos nisso. Sabe que quase metade dos apoios na Europa vai para subsídios ao agro-negócio através da PAC? Esses 50% podiam ser aplicados perguntando aos jovens de que é que precisam. Talvez uma quinta comunitária? Ou um jardim? Talvez mudanças na formação, estágios com agricultores? Há tantas formas criativas de o fazer. Aquela metade do dinheiro dos impostos europeus deveria ser canalizada para ajudar os jovens a regenerar a terra, em vez de subsidiar as grandes empresas que destroem a terra.

É interessante como o debate sobre essas questões nem sempre é claro: fala-se de apoios aos agricultores, mas, na prática, são apoios a grandes empresas agrícolas. Como é que isto pode ser invertido?
Na Índia, lutei contra a legislação e as políticas que tentavam equiparar a agro-indústria aos agricultores. Os agricultores são aqueles que trabalham a terra, é essa a definição de agricultor, está estabelecida no sistema das Nações Unidas. Um agricultor é alguém que trabalha a terra. Não é o proprietário da terra, não é definitivamente quem controla o sistema alimentar. Precisamos de ser mais honestos e precisamos de mais democracia na sociedade.

Em Portugal, com a seca, vemos mais claramente que os solos não são suficientemente resilientes, estão esgotados. Como é que damos a volta a isto? Como é que mais democracia, como refere, pode ser uma solução?
Para mim, democracia é estar consciente de que estamos interligados com outras espécies. Cuidar da Terra e das outras espécies não é apenas o nosso papel na vida, mas é o melhor sistema de produção. É o que permite que a produção aconteça. A nossa investigação na Navdanya mostrou que, quanto mais matéria orgânica houver no solo – ela é necessária para cuidar do solo, porque alimenta os organismos do solo que nos alimentam –, mais água haverá no solo, e é assim que se evita a seca. Ou seja, 1% de matéria orgânica pode ajudar a reter 160 mil litros de água por hectare. Nenhuma barragem consegue dar-nos esse tipo de água, nenhuma barragem. O solo é o maior reservatório, e é a matéria orgânica no solo que permite que ele seja um reservatório, que seja como uma esponja, que tenha mais húmus.

No ano passado, tivemos uma onda de calor muito forte e, no pico da onda de calor, fizemos estudos na nossa quinta e nas quintas vizinhas. As quintas vizinhas utilizam produtos químicos, enquanto nós temos muitas árvores e praticamos agricultura biológica. A diferença de temperatura no solo entre a nossa quinta e as quintas vizinhas era de 25 graus Celsius — 25 graus. E a percentagem de humidade, a diferença era de 15%. Quando se cuida do solo, está-se a resolver a crise da água e a crise da seca. E é o maior seguro contra as alterações climáticas. É a única forma de construir resiliência.

Nos últimos anos, quando se fala de ambiente e clima, parece que só nos preocupamos com carbono e com emissões, há pouca disponibilidade para agir em relação a outras questões. Também sente isto?
Como cientista, sou contra qualquer reducionismo. A tabela periódica tem muitos elementos, não se pode reduzir tudo ao carbono. Mas, pior, não se pode olhar para o carbono fossilizado morto, que são os combustíveis fósseis e é o problema criado ao longo de 100 anos de petróleo e 200 anos de carvão, e equipará-lo à vida na Terra, que é o carbono vivo. Quando a fotossíntese transforma o dióxido de carbono em hidratos de carbono, isso é vida, é uma molécula de vida. Portanto, equiparar o carbono morto ao carbono vivo é errado. Apelar à descarbonização, só assim, é o mesmo que acabar com a vida na Terra.

Pior ainda, a maioria dos poluidores e bilionários que nos causaram o problema, porque mesmo agora 1% causa 50% das emissões, estão agora a pedir mercados de carbono e querem apoderar-se da terra das pessoas para criar sumidouros para compensar a poluição que eles próprios criaram. Como diz Bill Gates, não temos de acabar com a nossa poluição, só temos de encontrar sumidouros. O reducionismo do carbono está errado. A falsa equivalência entre o carbono vivo e o carbono morto é incorrecta. Estou totalmente contra a apropriação dos recursos de outros povos, a nova colonização do carbono, porque temos soluções reais trabalhando com a Terra.

Quando começou o seu trabalho as suas ideias eram vistas como mais marginais, mas hoje temo-la aqui, como oradora de um evento de uma universidade conservadora em Portugal. As coisas realmente mudaram? Sente que estas ideias estão a ser tidas em conta ou são apenas mais uma ideia “fora da caixa” no “mercado das ideias”? O sistema às vezes tem o condão de neutralizar as ideias transformadoras...
Eu nunca trabalhei para o mercado ou para o mercado das ideias. Para mim, a vida é procurar a verdade. Quando compreendi que o patriarcado capitalista é uma estrutura diferente da forma como a natureza funciona e da forma como as mulheres criam e produzem, e comecei a articular esses sistemas – tanto o poder destrutivo do patriarcado capitalista como o poder generativo das mulheres que trabalham em parceria com a natureza –, sim, na altura foi considerado estranho, mas para mim era central na altura, e é central hoje. Outros podem estar a despertar mais para isto pela simples razão de que a destruição acelerou muito rapidamente. As forças de destruição são agora identificáveis.