Aves na América vão deixar de ter nome de pessoas para eliminar epónimos racistas
Sociedade de ornitologia nos EUA decidiu que vai dar novas designações às aves com nomes de pessoas. Algumas delas são homenagens a pessoas com passados racistas. Mas subsistem nos nomes científicos.
Há um pequeno pássaro nos céus americanos que se reproduz nos Estados Unidos e Canadá, passa os invernos no México e na América Central; e come besouros e moscas, abelhas e mosquitos, borboletas e mariposas. Em português, chama-se papa-mosquitos-dos-abetos — porque come mosquitos e vive naquelas árvores. Mas é o nome inglês que está a ser alvo de polémica.
É que o Hammond’s flycatcher foi assim chamado em homenagem a William Alexander Hammond, um cirurgião geral norte-americano (principal referência de saúde pública no Governo do país) que, durante a Guerra Civil, descreveu os escravos como " um conjunto de negros miseráveis pouco mais elevados em capacidades mentais e físicas que um organ grinder's monkey" — uma expressão em inglês utilizada para referir alguém que, não tendo qualquer poder, é muito próximo de uma pessoa que tem.
É por causa de exemplos como este que a Sociedade Ornitológica Americana, responsável por catalogar as aves no continente americano, decidiu mudar as designações de todos os pássaros com nomes de pessoas. Num comunicado publicado esta quarta-feira, noticiado pelo The New York Times, a instituição anunciou que vai criar um comité de especialistas em ciências sociais, comunicações, ornitologia e taxonomia para "alterar todos os nomes de aves em língua inglesa, dentro da sua jurisdição geográfica, que tenham nomes de pessoas (epónimos), juntamente com outros nomes considerados ofensivos e excludentes". O ponto de partida, aponta ainda, serão as espécies presentes principalmente nos Estados Unidos e no Canadá.
Este era um apelo antigo de iniciativas como a "Bird Names for Birds", que identificou 150 pássaros na América do Norte cujos nomes em inglês vinham de epónimos — alguns deles polémicos. A pardela-de-asa-larga chama-se, em inglês, Audubon’s shearwater em referência a um naturalista (John James Audubon) que desenhava aves e era um fervoroso defensor da escravatura. O tico-tico-dos-pinhais foi nomeado, em inglês, "Bachman's sparrow" em homenagem a John Bachman — um zoólogo que contribuiu para o desenvolvimento da Teoria da Evolução, mas que disse que o humano negro "permanecerá como é, a menos que a sua forma seja alterada por uma amálgama, o que nos é revoltante", com um intelecto "subestimado" mas "muito inferior ao do caucasiano".
Colleen Handel, presidente da Sociedade Ornitológica Americana, admitiu que alguns nomes ingleses de aves são "excludentes e prejudiciais actualmente". "Precisamos de um processo científico muito mais inclusivo e envolvente que centre a atenção nas características únicas e na beleza das próprias aves", defendeu. Judith Scarl, directora executiva da instituição, também considerou que os cientistas "trabalham para eliminar preconceitos na ciência" — e que, por isso mesmo, "as convenções de atribuição de nomes excludentes desenvolvidas no século XIX, envoltas em racismo e misoginia, não funcionam para nós hoje em dia". "Chegou a altura de transformarmos este processo e redireccionarmos a atenção para as aves, que é onde ela deve estar", defendeu.
A medida surge mais de dois anos depois de a Sociedade Ornitológica Americana ter criado um comité para gizar recomendações e orientações sobre como identificar e alterar "nomes nocivos de aves inglesas". Entretanto, o nome de algumas aves já foi alterado à margem deste processo: o escrevedeira-bicuda costumava chamar-se McCown's longspur em inglês, em homenagem ao militar John P. McCown, que lutou pela Exército dos Estados Confederados — fortemente associada à preservação da escravatura nos Estados Unidos — durante a Guerra Civil. Agora, esta ave chama-se Thick-billed longspur. O nome científico, no entanto, continua a ser Rhynchophanes mccownii. E o papa-mosquitos-dos-abetos, mesmo quando já não se chamar Hammond’s flycatcher, continuará a ser Empidonax hammondii para a ciência.