Ciência e medicina: perdidas na translação

O vale da morte: assim se denominou há muito o abismo que separa o conhecimento fundamental da sua aplicação prática, sob a forma de produtos comerciais. Aí terminam muitas potenciais inovações.

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A evolução dos cuidados em saúde depende da transferência do conhecimento científico adquirido na investigação biomédica para a aplicação clínica. Em via oposta, as necessidades sentidas na prática clínica e as suas observações são informações essenciais para identificar tópicos prementes e dirigir as abordagens implementadas na investigação básica. O desenvolvimento de novas ferramentas laboratoriais para o diagnóstico, prognóstico e monitorização de doenças depende da articulação entre estas vias, enquadrando-se no conceito de medicina de translação.

Na prática, investigação fundamental e clínica decorrem de forma divergente, encontrando-se em projetos demasiado raros e evidenciando-se a distância que as separa em reuniões de cariz científico.

A melhoria dos cuidados prestados em saúde requer soluções inovadoras e custo-eficazes. O setor da indústria dedicado ao desenvolvimento e comercialização de testes diagnóstico in vitro depara-se atualmente com a necessidade de demonstrar o desempenho clínico dos seus produtos, face ao regulamento (UE) 2017/746. Esperamos que tal conjuntura possa representar uma oportunidade para a promoção de sinergias técnico-científicas entre este setor, académicos e clínicos. Concretamente, que a utilidade de potenciais novos biomarcadores propostos pelo setor académico possa ser testada de forma mais célere em amostras humanas, em estudos de elevada qualidade.

A investigação fundamental permite hoje o estudo simultâneo de uma multiplicidade enorme de parâmetros, podendo identificar padrões moleculares de doença. Tal possibilita uma melhor classificação diagnóstica e prognóstica dos doentes e identificar potenciais alvos mais eficazes de tratamento, no caminho da tão anunciada medicina personalizada. Uma seleção dos mais promissores biomarcadores deve ser estudada em amostras humanas para determinar a sua utilidade. De acordo com o seu desempenho e interesse comercial, este processo permite concretizar a transferência do conhecimento da bancada do laboratório para a clínica: bench to bedside.

Apesar de amplamente reconhecido o interesse do investimento em investigação biomédica, os seus frutos não se têm refletido em ganhos comparáveis em saúde nas últimas décadas. O vale da morte: assim se denominou há muito o abismo que separa o conhecimento fundamental da sua aplicação prática, sob a forma de produtos comerciais. Aí terminam muitas potenciais inovações, cingidas à publicação em revistas científicas, de resultados obtidos apenas em sistemas biológicos in vitro ou modelos animais.

São vários os constrangimentos que atrasam ou impossibilitam a disponibilização de novas soluções para a prática clínica. A dinâmica do financiamento em investigação biomédica baseia-se sobretudo na qualidade das publicações científicas produzidas, e não nos avanços refletidos em medicina. Também a atualização dos médicos relativamente à literatura científica fundamental se vê fortemente limitada, seja pelo tempo que lhe podem dedicar, como pela sua complexidade crescente.

O envolvimento dos clínicos em investigação é um esforço extraordinário, geralmente apenas recompensado pelo reconhecimento dos seus pares. Apesar da abertura dos centros de investigação a colaborações com médicos, esta conjuntura é preponderante e a transferência de conhecimentos em ambos os sentidos muito limitada. Neste contexto, poderão ter os Centros Académicos Clínicos (CAC) ou os recentemente criados Laboratórios Colaborativos (CoLAB) um papel ativo? Dispondo-se a intermediar a discussão de problemas e fomentar parcerias, criando condições de trabalho, apoiando e atraindo investimento para a investigação de translação?

Acelerar e otimizar o processo de translação é o objectivo do European Advanced Translational Research Infrastructure in Medicine (EATRIS), um consórcio europeu em que, desde 2019, participam várias instituições de investigação em Portugal coordenadas pelo Infarmed. De acordo com informação disponibilizada no seu site, menos de 2% dos biomarcadores identificados como úteis no estudo das doenças e na resposta a tratamentos são convertidos em testes aplicáveis na clínica.

A colaboração com os centros hospitalares deve ser intensificada e a investigação para a validação de resultados em amostras humanas agilizada. A translação de conhecimento é um ambiente árido, sendo necessário apoio institucional para que os interessados possam compreender questões regulatórias que permitam o posterior desenvolvimento industrial e comercialização de testes inovadores.

Que a população em geral usufrua dos desenvolvimentos científicos no seu máximo potencial parece-nos ser motivo suficiente para incentivar a comunicação entre as partes: colocando este tema complexo no centro de discussões entre diversos stakeholders e no programa de encontros científicos de índole médica.

No contexto de doenças complexas, é primordial reunir amostras de um número elevado de indivíduos, de modo a obter resultados cientificamente robustos, sendo comum a avaliação de potenciais biomarcadores decorrer num determinado laboratório ou num grupo limitado de laboratórios apenas. Reconhecer a necessidade de estudos multicêntricos internacionais e promover as condições que aprovem, em tempo útil, a mobilidade de amostras entre instituições e a partilha de dados clínicos relevantes, anonimizados, é fundamental.

Este processo está sujeito a pareceres éticos e relativos à proteção de dados que, sendo relevantes, originam atrasos desproporcionados ou inviabilizam até a concretização de estudos. Alternativamente, os biobancos permitem ultrapassar alguns destes obstáculos, mas a sua existência em Portugal é muito limitada. Trata-se de investimentos consideráveis, a largo prazo, mas cujo retorno deve ser seriamente valorizado, face aos custos da morbilidade e mortalidade, sobretudo, das doenças crónicas cuja abordagem clínica padece da falta de melhores ferramentas laboratoriais e terapêuticas.

O investimento na ciência biomédica deve gerar resultados com impacto valorizável na saúde humana. Para que novos conhecimentos se traduzam em soluções que concretizem a promessa que a ciência ambiciona, um esforço multidisciplinar é seguramente necessário: investigadores, médicos, laboratórios clínicos, indústria, experts das áreas da ética e proteção de dados, consórcios dedicados à otimização da translação de conhecimento, podem em conjunto construir pontes para que o vale da morte seja um dia totalmente atravessado.

As autoras escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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