Polémico abate de sobreiros em Sines é (mais) um “sacrifício” pela transição energética

Corte de sobreiros para instalação de parque eólico em Sines tem sido controverso. Visitámos o local com partes distintas: a EDP, que instalará o parque; e ambientalistas, que contestam o processo.

RG Rui Gaudêncio - 20 Outubro 2023 - Trabalho sobre abate de sobreiros junto à Barragem de Morgavel para construção de um parque eólico da EDP. Bobreiros marcados a branco serão abatidos. Sines. Portugal. Público
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Ao longo dos caminhos, há sobreiros já marcados para corte Rui Gaudêncio
RG Rui Gaudêncio - 20 Outubro 2023 - Trabalho sobre abate de sobreiros junto à Barragem de Morgavel para construção de um parque eólico da EDP. Sines. Portugal. Público
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RG Rui Gaudêncio - 20 Outubro 2023 - Trabalho sobre abate de sobreiros junto à Barragem de Morgavel para construção de um parque eólico da EDP. Sines. Portugal. Público Rui Gaudêncio
RG Rui Gaudêncio - 20 Outubro 2023 - Trabalho sobre abate de sobreiros junto à Barragem de Morgavel para construção de um parque eólico da EDP. Paulo Pimenta e Castro (engenheiro silvicultor e membro das associações ambientalistas Iris e Acréscimo) e Domingos Patacho (Quercus) Sines. Portugal. Público
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RG Rui Gaudêncio - 20 Outubro 2023 - Trabalho sobre abate de sobreiros junto à Barragem de Morgavel para construção de um parque eólico da EDP. Paulo Pimenta e Castro (engenheiro silvicultor e membro das associações ambientalistas Iris e Acréscimo) e Domingos Patacho (Quercus) Sines. Portugal. Público Rui Gaudêncio
RG Rui Gaudêncio - 20 Outubro 2023 - Trabalho sobre abate de sobreiros junto à Barragem de Morgavel para construção de um parque eólico da EDP. Sines. Portugal. Público
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RG Rui Gaudêncio - 20 Outubro 2023 - Trabalho sobre abate de sobreiros junto à Barragem de Morgavel para construção de um parque eólico da EDP. Sines. Portugal. Público Rui Gaudêncio
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Saímos de Sines e, nem chegou bem a 20 minutos, de carro, e chegámos à barragem de Morgavel. Pouca gente se viu pelo caminho e a calma sente-se no local. A chuva vai caindo, sem grande sobressalto, e, num montinho ao longe, vê-se o ninho da esquiva e ameaçada águia-pesqueira. Mas a acalmia na barragem não faz antever a “ventania” em torno do planeado abate de sobreiros para a instalação de um parque eólico ali nas proximidades.

Dentro do carro, esperamos para que nos mostrem os sobreiros que serão abatidos. Os caminhos anunciam-se sinuosos e teremos de fazer a visita guiada ao local numa carrinha todo-o-terreno – aliás, em duas carrinhas. Afinal, uma das visitas será feita com a EDP, que vai instalar o parque; a outra far-se-á com ambientalistas, que têm vindo a contestar o abate das árvores.

O guião é o mesmo em ambas: a polémica estalou no Verão. A 1 de Agosto, é publicado em Diário da República um despacho do ministro do Ambiente e da Acção Climática, Duarte Cordeiro, que declara a “imprescindível utilidade pública” do futuro Parque Eólico de Morgavel. Com essa declaração é assim autorizado o abate de 1821 sobreiros numa área de 32,22 hectares, nos concelhos de Sines e Santiago do Cacém, onde ficará o parque.

Como o sobreiro é uma árvore protegida por lei em Portugal, o seu abate apenas pode realizar-se através desta declaração de “imprescindível utilidade pública”. Contudo, esta deve apenas existir quando não há outra alternativa e depois de um processo que envolva um estudo de impacte ambiental ou um plano de acompanhamento ambiental da obra.

No despacho, a declaração é justificada pelo relevante “interesse público, económico e social” do projecto, bem como pelo cumprimento do plano energético e da redução de emissões de gases com efeito de estufa do Estado português. Para que o corte de sobreiros avance, terão de ser plantadas, como compensação, mais árvores num outro local.

A partir daqui, desenrola-se uma contestação em torno do abate dos sobreiros em Sines. Cidadãos, empresários, cientistas e organizações ambientalistas criticam o processo e mostram-se preocupados. O Bloco de Esquerda questiona o Governo. E é organizada uma manifestação contra o corte das árvores. No PÚBLICO, dá-se início a um debate de opiniões sobre o processo e começa a questionar-se se é assim tão chocante cortar os sobreiros, sendo muitos deles jovens e uma grande parte estando numa condição débil.

A polémica vai crescendo e as questões também. Afinal, que sobreiros são estes? Em que áreas serão cortados? Que impacto terá no local o seu abate? E não havia outra alternativa para a instalação do parque eólico?

A visita com a EDP...

É com essas questões que damos início à primeira visita guiada ao local, com responsáveis da EDP. Nos bancos da frente, na carrinha, guiam-nos Timóteo Monteiro (responsável ambiental da EDP Renováveis) e Hugo Costa (responsável da EDP Renováveis em Portugal). “Vamos mostrar-vos o trajecto do projecto”, anunciam. Ou parte dele.

Poucos minutos após o arranque, ainda numa estrada de alcatrão, a carrinha pára. “O transporte das turbinas é feito nesta direcção”, indica Timóteo Monteiro, a apontar para um caminho de terra ladeado de árvores. Aqui, já estão alguns dos sobreiros que serão abatidos. Neste caso, esse corte será feito para alargar acessos e se conseguir chegar com as turbinas ao sítio. “Temos de conseguir chegar com várias componentes ao local. Muitos dos sobreiros identificados para abate ficam junto às estradas”, descreve Hugo Costa.

O responsável da EDP Renováveis em Portugal explica que o Parque Eólico de Morgavel terá 12 turbinas – menos três do que na versão anterior do projecto – que ficarão separadas por cerca de 500 metros. “Aqui será um dos acessos de turbinas que ficarão até no meio de um eucaliptal”, aponta Hugo Costa.

O processo de atribuição do projecto recua a 2008 e transitou de Torre de Moncorvo para Sines. Hugo Costa informa que foi a Direcção-Geral de Energia que atribuiu capacidade de injecção de energia eléctrica na rede, inicialmente, em Torre de Moncorvo. Mais tarde, transferiu-se essa autorização para Sines. No fundo, considerou-se que a área tem capacidade para ter um parque eólico e uma linha eléctrica a 400kV de interligação à subestação de Sines – uma instalação eléctrica que existe no concelho.

Oficialmente, a EDP ainda não é a “dona” do projecto, que pertence ao grupo Island Renewables e ao CJR. Em Fevereiro, a Autoridade da Concorrência autorizou a EDP Renováveis a comprar o projecto.

Avançamos. Num outro caminho, já de terra batida, há sobreiros de um lado e do outro, separados por uma estrada recta. Não são sobreiros imponentes, mas parecem estar em bom estado: são adultos e ainda dão cortiça. Muitos dos que estão junto às vedações, de um lado e do outro, têm uma marca branca à volta – é o sinal de que serão abatidos.

Mas nem todos. “Vamos conseguir deixar de abater muitos deles”, assinala Hugo Costa, a apontar para alguns sobreiros mais afastados da vedação. Num tablet, os responsáveis da EDP mostram-nos um mapa do terreno com pintas vermelhas – com os sobreiros a cortar – e com pintas verdes – com as árvores que seriam abatidas e vão ser poupadas.

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Junto às vedações, vão ser abatidos sobreiros. Em ajustes ao projecto, neste local, conseguiu-se poupar alguns dos mais de 1800 que estavam planeados vir a ser cortados Rui Gaudêncio

Através de um levantamento no terreno e de ajustes ao projecto, a EDP refere que serão abatidos menos sobreiros do que aqueles que estavam previstos na declaração de “imprescindível utilidade pública”. Por agora, serão 1517 as árvores a ser cortadas.

Também de acordo com a empresa, 96 são adultas e saudáveis; 245 são adultas e doentes; e 29 são adultas e já estão mortas. Mas a maioria é jovem – o que quer dizer que essas árvores ainda não estão totalmente desenvolvidas e não produzem cortiça: 576 são sobreiros jovens saudáveis; 514 são jovens e doentes; e 57 são jovens, mas já estão mortos. “Sabemos exactamente o estado de todos eles”, ressalva Timóteo Monteiro.

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Saímos da estrada recta e seguimos por caminhos cada vez mais sinuosos. À medida que avançamos, vão-se observando sobreiros num estado mais débil. Alguns já não têm copa. Outros estão caídos no chão. “Quanto mais subimos, pior é o panorama. O montado aqui nesta zona está com muitos problemas”, avisa Timóteo Monteiro. Ao seu lado, Hugo Costa evidencia: “Aquele ali está morto e conta como sobreiro para abate.”

Para compensar este abate, a EDP vai plantar árvores num outro local. Esta é uma medida definida por lei, que impõe que se compense a área em que as árvores são abatidas multiplicando, no mínimo, por 1,25. No caso do Parque Eólico de Morgavel, o valor foi de 1,5 a multiplicar pela área do corte (os tais 32,22 hectares), o que resulta numa plantação em 50,07 hectares. Normalmente, nessa compensação, costuma existir um aumento substancial do número de árvores por hectare, que ronda as 500 e as 600 por hectare, de acordo com o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). No caso de Morgavel, a EDP plantará 42.000 árvores – 30.000 sobreiros e 12.000 medronheiros – e terá de fazer um acompanhamento durante 20 anos.

A área da plantação foi definida pelo ICNF e fica no Perímetro Florestal da Conceição da Tavira. Ao PÚBLICO, o instituto referiu que o projecto de compensação deverá “iniciar-se no próximo ano” e que fica numa área afectada pelo incêndio rural que ocorreu em Agosto de 2021 no sítio da Pernadeira.

Hugo Costa considera que existe até “uma desproporção” entre o número de sobreiros abatidos e os que serão plantados. O responsável da EDP Renováveis refere-o porque o abate de sobreiros em Sines será, sobretudo, ao longo de acessos, no local onde ficarão plataformas e onde se instalará uma estação que injectará energia na actual subestação de Sines – e não em hectares de povoamentos de sobreiros muito densos. “Estamos a falar de [passar] 2000 para 42.000 árvores”, nota.

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Hugo Costa, responsável da EDP Renováveis em Portugal Rui Gaudêncio

Para mostrar como o parque eólico compensará, Hugo Costa menciona valores da captura de CO2 pelos sobreiros e os que a futura infra-estrutura evitará. “Assumindo que os 1800 sobreiros fossem adultos e saudáveis, seriam [capturadas] 42 toneladas de CO2 [por ano]”, estima. Estas contas são feitas com base em dados da Agência Europeia do Ambiente, que refere que uma árvore captura, em média, 22 quilos de CO2 por ano – o que resulta nas tais 42 toneladas de CO2. Ainda assim, a EDP assinala que esses valores são calculados em excesso, pois os sobreiros a abater estão distribuídos por uma área extensa.

Para contrapor estes valores, Hugo Costa compara-os com as emissões de CO2 que o parque eólico pode evitar. “Vai permitir poupar em termos de combustíveis fósseis cerca de 42.000 toneladas de CO2 por ano”, diz o responsável da EDP. Estas emissões evitadas calculam-se tendo em conta a produção do parque eólico durante o seu tempo de vida útil e a substituição que está a ser feita no que se refere a combustíveis fósseis. Os valores usados são baseados nas estimativas de produção anual do Parque Eólico de Morgavel e nos da Direcção-Geral de Energia e Geologia, que indica que cada gigawatt-hora (GWh) produzido poderá evitar cerca de 250 toneladas de CO2.

Cuidado com as comparações

Mas será válido comparar o CO2 capturado por sobreiros e o evitado por um parque eólico? A cientista Júlia Seixas considera que o argumento de que novos parques podem compensar a destruição da captura dos sobreiros “não é sério nem correcto”. A professora da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova explica que não está apenas em causa a captura de CO2 das árvores. Quando se retiram essas árvores, destrói-se o ecossistema, que tem um ciclo anual de matéria orgânica que é incorporada no solo e representa outra forma de captura de CO2.

Além disso, a cientista faz ainda questão de corrigir um valor: quando o Parque Eólico de Morgavel começar a funcionar, já não vai evitar 42.000 toneladas de CO2 por ano – serão menos. Ora, os cálculos que levaram às 42.000 toneladas foram feitos com base em valores de 2021, e ainda estava em funcionamento a central a carvão do Pego. “Quanto mais se avança no tempo, mais renováveis produzem electricidade, e o factor da emissão é sucessivamente mais baixo”, esclarece.

Sobreiros que vão ser abatidos para o projecto do Parque Eólico de Morgavel Rui Gaudêncio
Há sobreiros mortos ou doentes que serão abatidos Rui Gaudêncio
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Sobreiros que vão ser abatidos para o projecto do Parque Eólico de Morgavel Rui Gaudêncio

“Abater ecossistemas não deve ser opção para instalação de projectos de produção de electricidade renovável”, defende Júlia Seixas. “A compensação de CO2 que estes projectos podem evitar fica muito aquém da função natural.” Há ainda aspectos da regulação do ciclo de água e da biodiversidade que podem ser importantes.

Mesmo assim, já no final da visita com a EDP, Timóteo Monteiro realça que, durante a construção do parque eólico, a terra vegetal será recuperada e voltará a ter as suas características originais. “A recuperação do estrato herbáceo acontece de um ano para o outro”, diz, referindo que se readquire a capacidade de captura de CO2 do ecossistema.

Em resposta às críticas ao projecto, Hugo Costa salienta que a EDP “percebe a preocupação com o abate de árvores, em particular dos sobreiros, que são árvores protegidas”. Contudo, além do lado ambiental, salienta que o projecto “tem de ser minimamente produtivo” e tem de ser assegurada a sua viabilidade, assim como a localização das turbinas. “Um dos critérios que temos claros é tentar conciliar ao máximo os interesses ambientais com os da transição energética”, nota. “É um projecto, entre vários, que se pretende instalar no país em que se promoverá a substituição dos combustíveis fósseis por energias limpas. Este trajecto faz-se, naturalmente, com algum sacrifício. O que temos de assegurar é que a dimensão do sacrifício justifica a transição.”

Quanto aos próximos passos, neste momento, esperam-se os desenvolvimentos da providência cautelar que o Grupo de Acção e Intervenção Ambiental entregou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja para anular o despacho do ministro do Ambiente. “É preciso perceber o caminho que será seguido e os impactos que a providência cautelar poderá ter”, indica Hugo Costa.

Nós também seguimos caminho.

... e a visita com os ambientalistas

Há ainda outra visita a fazer: percorrer os trilhos dos sobreiros com ambientalistas. Nos bancos da frente, na carrinha, está Domingos Patacho (do grupo das florestas da Quercus) e Paulo Pimenta de Castro (engenheiro silvicultor e presidente da direcção nacional da associação ambiental Iris). “O terreno é uma coisa gigantesca, tem dezenas de quilómetros. É uma área linear”, anunciam. Passamos apenas por uma pequena parte.

Vamos por esses caminhos lineares e paramos no mais linear de todos: a estrada recta que já tínhamos visitado com a EDP. De um lado e do outro, perto da vedação, encontramos sobreiros adultos marcados para abate. “Vê?! Estes são produtivos”, aponta Paulo Pimenta de Castro.

Para o engenheiro silvicultor, há aspectos que não foram devidamente avaliados no projecto – um deles é a biodiversidade. Andamos pela estrada e vamos ouvindo aves a cantar. “Está a ouvir estas aves? Quer dizer que em termos europeus é uma prioridade máxima de conservação, por causa da Directiva Aves”, indica Domingos Patacho. “Estão aqui porque é aqui que está o seu habitat, o montado.” Além da questão do habitat, Paulo Pimenta de Castro acrescenta que há a questão das pás das turbinas eólicas, em que as aves poderão colidir.

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Os ambientalistas Paulo Pimenta de Castro e Domingos Patacho Rui Gaudêncio

Continuamos a caminhar e saímos da estrada recta. Chegamos a uma área com menos densidade de árvores e onde estão os tais sobreiros jovens. Há alguns que chegam à cintura, outros ficam-se pela zona dos joelhos. Muitos não chegam a um metro.

“Estes são os tais que falam que são realmente pequenos”, realça Domingos Patacho, com um deles pela cintura. “São árvores que nasceram aqui e que fazem parte da regeneração natural.” Ao seu lado, Paulo Pimenta de Castro complementa: “Os argumentos de que são árvores jovens e, portanto, são desprezíveis não faz sentido. Nem que estejam mortos!”

Seguimos por outros caminhos, cada vez mais tortuosos e difíceis de atravessar, para chegar a um lugar que os ambientalistas descrevem como “uma relíquia”. É um sobreiral – que se diferencia do montado por ter uma grande densidade de arvoredo e não ter uma componente agrícola. Numa encosta, vêem-se sobreiros, medronheiros e plantas herbáceas. E, de repente, há um alerta lançado por Domingos Patacho: “Olhem, está ali uma águia-de-bonelli.” Depressa vai buscar a máquina fotográfica para a registar. “Está a passar precisamente onde vão pôr linhas eléctricas”, ressalva.

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Ambientalistas dizem que há locais na área onde será instalado o parque eólico que são “uma relíquia” Rui Gaudêncio

A EDP diz que existe apenas um pequeno troço de acesso no projecto em que a área poderá ser considerada uma zona de bosque ou de floresta de sobreiro, mas que espera fazer reajustes nessa parte do projecto, para que praticamente não sejam abatidas árvores adultas e saudáveis. A empresa refere ainda que não será abatida nenhuma árvore numa área protegida.

Tanto Domingos Patacho como Paulo Pimenta de Castro fazem questão de dizer que não são contra o parque eólico em si. “A ideia que se dá é que quer a pressão do solar quer a pressão do eólico estão, neste momento, a ser feitas à custa de território”, alerta Paulo Pimenta de Castro, referindo que há muitas formas de produzir energia renovável. Aquilo que dizem ser, de facto, contra é quanto “à aparente ausência de critérios por parte do Governo e das entidades administrativas sobre a forma como estes projectos se podem instalar”. Ambos consideram que se deveria ter procurado outras alternativas para a instalação do parque noutra área.

Domingos Patacho ressalva que é a favor das energias renováveis, mas não a favor “de se pôr aerogeradores em todo o lado”. O ambientalista considera que o tal “sacrífico” em nome da transição energética pode ser evitado ou minimizado com um melhor planeamento do território. “Na prática, somos contra o projecto como está a ser desenhado”, nota.

Não havia alternativas?

A questão das alternativas e se a “imprescindível utilidade pública” deveria ter sido declarada continua a ser alvo de discussão. Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero, considera que, aparentemente, não houve alternativa. “Não digo que não pudesse ser feito ainda mais trabalho para se reduzir o corte de sobreiros, mas achamos que foi feito um esforço bastante intenso para se reduzir o número de sobreiros a serem cortados”, diz o também professor na Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa.

Há um princípio que Francisco Ferreira realça que deve ser considerado em primeiro lugar em qualquer processo: tem de se evitar o abate de espécies autóctones, como os sobreiros. “Só devo cortar povoamentos de espécies autóctones se não tiver uma alternativa melhor”, considera. Foi o que acha que aconteceu neste caso.

Primeiro, o local onde será instalado o parque reúne condições: tem uma subestação próxima, para se ligar o parque, e há vento. Depois, tem de se perceber se será, de facto, afectado um povoamento de sobreiros. E, neste caso, a maioria das árvores que serão cortadas está junto a caminhos ou por onde passará a linha eléctrica, numa área dispersa. “Nesta situação justifica-se ter uma autorização de utilidade pública para permitir o corte de sobreiros? Se não encontrei alternativa, se estou a precisar de fontes de energia renovável e os cortes forem limitados o mais possível, diria que sim”, reflecte.

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Estima-se que nos anos 80 existissem 1.200.000 hectares de montado em Portugal. Desde 1990então, tem-se vindo a perder 5000 de hectares por ano Rui Gaudêncio

Também o presidente da União da Floresta Mediterrânica – UNAC destaca que não se vai abater propriamente um montado. “Estão em causa caminhos de acesso”, assinala António Gonçalves Ferreira, realçando que não lhe parece que essa tenha sido a informação que tem sido transmitida. “Aquilo que realmente importa é que haja um empenho da sociedade para que haja maior apoio à espécie. Se se começar a agora a investir nela, só daqui a 40 anos é que há resultados.”

Mas a discussão não é assim tão linear. A investigadora Teresa Pinto Correia continua a perguntar: “Porque é que se tem de instalar aquela unidade de produção ali e não pode ser instalada mais longe e num sítio sem árvores?” Para a cientista, teria de ser feito um estudo ainda mais rigoroso e que justificasse, realmente, ali a localização da infra-estrutura.

Os jovens, débeis e mortos

Os argumentos que têm sido dados sobre os sobreiros jovens, débeis ou mesmo mortos não a convencem. “As árvores jovens são a promessa do montado. Essas árvores vão desenvolver-se e crescer”, argumenta a investigadora do MED – Instituto Mediterrâneo para Agricultura, Ambiente e Desenvolvimento da Universidade de Évora. Quanto aos sobreiros doentes e já mortos, defende: “Se só se abaterem árvores doentes, é menos grave do que se forem árvores grandes muito saudáveis, mas mesmo as árvores doentes podem ter um papel a ajudar as jovens a crescer.”

Quanto às árvores mortas e velhas, o solo onde houve árvores é melhor em termos de captação de carbono e tem um efeito de protecção no ecossistema. Ao se tirarem essas árvores mesmo mortas, está-se a tirar essa capacidade de captação. “Retirando as árvores, não vai perder-se só as árvores em si, mas também os benefícios das árvores no solo ou a fixação da água.”

Outra das grandes preocupações de Teresa Pinto Correia é o declínio do montado no país. Estima-se que nos anos 1980 existissem 1.200.000 hectares de montado em Portugal. Desde 1990, tem-se vindo a perder 5000 hectares por ano devido a doenças ou à degradação do solo.

Já os sobreiros que têm vindo a ser plantados pouco vingam. “Mesmo que as árvores não morram, crescem muito pouco”, diz a cientista. A taxa de sucesso de novas plantações é de cerca de 10% ou menos – de 1000 árvores podem apenas sobreviver 100 ou 70.

As alterações climáticas já se sentem e são cada vez mais duras: chove menos e as temperaturas estão mais elevadas. “Actualmente, plantar novas árvores não é a mesma coisa do que plantar novas árvores há 20 anos”, assinala. “Se ainda vamos cortar as que existem, vamos aumentar esse declínio. Temos de ter uma hierarquia clara daquilo que é realmente importante preservar.”

Uma compensação insuficiente

Por tudo isto, Francisco Ferreira refere que a plantação de 30.000 sobreiros como compensação ao abate, e que é definida por lei, é “pouco exigente”. “A legislação é muito pobre do ponto de vista da compensação”, aponta. Mais: também não garante que o terreno ainda esteja a ser ocupado por sobreiros daqui a mais de 20 anos. “Se cortar um sobreiro adulto, só vou voltar a ter essa árvore daqui a muitas dezenas de anos.”

Para avaliar estas medidas de compensação, o Ministério do Ambiente e da Acção Climática criou um grupo de trabalho. Nesse grupo, além da Zero, do MED e da UNAC, está o ICNF, a Associação Portuguesa de Cortiça e um representante do Gabinete do Secretário de Estado da Conservação da Natureza e Florestas. Espera-se que até Dezembro o grupo faça uma declaração sobre essas medidas.

Teresa Pinto Correia, que faz parte do grupo, assinala que plantar novas árvores não substitui um ecossistema. Um conjunto de árvores pode ser importante num determinado local para a nidificação das aves ou para a prevenção da erosão, e noutro local já não ter o mesmo impacto. Por tudo isto, considera que as medidas de compensação deveriam ser pensadas de uma forma muito mais completa, desde a localização, o seguimento da replantação e a constituição de todo o ecossistema. “A plantação das árvores não chega como medida compensatória.”

O caso deste polémico abate de árvores em Sines não se restringe apenas a este território e às medidas de compensação. Este é um exemplo entre os muitos que surgirão – e outros que já aconteceram – de um conflito entre a transição energética que está a ocorrer e a floresta que tem de se preservar.

“Vamos ter muitos conflitos... É o caso de Morgavel, mas ainda temos muita potência eléctrica para instalar de renováveis e muitos destes conflitos vão surgir”, antevê Francisco Ferreira. “Morgavel é algo pequeno em comparação com os gigawatts que temos de implementar.” Para nos prepararmos, o presidente da Zero diz que precisamos de encontrar melhores áreas para essa instalação e ter a certeza de que estamos a reduzir ao máximo os danos que vão sendo criados.

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Investigadores prevêem que mais conflitos entre a floresta e a transição energética venham a acontecer Rui Gaudêncio

Também Teresa Pinto Correia prevê que mais conflitos venham a acontecer, até porque os governos, incluindo o português, têm metas a nível da redução das emissões dos gases com efeito de estufa e das energias renováveis – em Espanha ou Itália tem havido disputas do mesmo género. Mas não concorda que os conflitos sejam inevitáveis. “O objectivo da transição climática é muito necessário, mas a preservação destes ecossistemas também é – os dois deveriam andar lado a lado”, defende.

A investigadora argumenta que estes conflitos se apaziguariam com um adequado planeamento do território. Para si, deveria ser feito um estudo mais aprofundado sobre as áreas em que podem ser instalados projectos de electricidade renovável e aquelas em que se deve proteger os ecossistemas.

Alguns passos têm sido dados nesse sentido. Este ano, uma investigação desenvolvida pelo Laboratório Nacional de Energia e Geologia mapeou 12% da área de Portugal continental como potencialmente apta para instalar projectos de electricidade renovável, podendo salvaguardar-se o ambiente. O futuro Parque Eólico de Morgavel não estará nas áreas que foram identificadas como de menor sensibilidade ambiental e patrimonial, o que não invalida que possa ser instalado, caso cumpra os licenciamentos, realçam os autores do estudo.

“Há espaço para tudo”, considera Teresa Pinto Correia. “Temos espaços suficientes no Sul da Europa onde se poderiam instalar centrais [de energia] e que não entrariam em conflito com outros usos do território.”

Há razões para perguntar: a transição energética tem mesmo de ser um “sacrifício”?