Sobreiros abatidos e a abater: que justificação?

Em vez de múltiplas autorizações de abate de árvores protegidas, o que se esperava dos poderes públicos era que articulassem as necessidades energéticas com uma rigorosa salvaguarda dos ecossistemas.

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Zona de sobreiros junto à Barragem de Morgavel, em Sines, onde será construído um parque eólico da EDP Rui Gaudêncio
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Assistimos à autorização, cada vez mais frequente, do abate de sobreiros. O motivo evocado para o justificar – já que o sobreiro é uma árvore protegida cujo corte é por isso em princípio proibido – é uma suposta "imprescindível utilidade pública" dos empreendimentos a construir nos locais dos abates.

Desde 2011, os sucessivos governos aprovaram o corte de 40 mil sobreiros, dos quais 35 mil terão já sido cortados. Sistematicamente, tais decisões são justificadas como de "imprescindível utilidade pública" sem que qualquer entidade, de facto independente, seja chamada a pronunciar-se.

Além de muitos outros casos idênticos, recorde-se:

– o corte de 1079 sobreiros no concelho de Gavião (Portalegre) para a instalação de uma central fotovoltaica, numa área com cerca de 15 hectares;

o abate de 33 sobreiros no concelho do Porto para construir uma residência universitária de luxo; apesar de nem o próprio município ter sido ouvido, a posteriori, dois vereadores tiveram a iniciativa de negociar com o empresário a diminuição do número de árvores a abater;

o corte de mais de 100 sobreiros no concelho de Santa Maria da Feira para construção de mais um supermercado onde já existem vários;

no mesmo concelho, o Governo autorizou o abate de 191 sobreiros para a construção de ainda mais um supermercado, de vários armazéns e de um posto de abastecimento de combustível, tendo influído na decisão a criação de emprego;

São João de Ver, também em Santa Maria da Feira, no Mato do Conde, autorizou a realização de cortes em 471 sobreiros adultos e 1772 jovens, em cerca de 20 hectares destinados à construção de uma central fotovoltaica;

entre o concelho do Cartaxo e Santarém, foram abatidos 200 sobreiros para a implantação do projecto do Parque Solar Escalabis, numa área cuja inclusão não tinha sido autorizada na sequência do Estudo de Impacte Ambiental;

a destruição de vastas áreas de montado, com o abate de mais de 30 mil sobreiros e azinheiras, a que acresce a afectação de sítios arqueológicos, para a construção da Barragem do Pisão e de uma central solar;

em Morgavel, concelho de Sines, foi recentemente autorizado o abate de mais 1800 sobreiros para a construção de um parque eólico.

Neste último caso, da leitura do EIA – Estudo de Impacte Ambiental, elaborado por imposição legal registamos que a área de intervenção fica situada em zona onde "predominam as florestas de sobreiro acompanhadas por matos dominados por estevas. [...] Nas encostas com declives mais acentuados é ainda possível observar algumas manchas bem preservadas de florestas de sobreiro, com estrato arbustivo denso dominado por medronheiros". Algumas destas áreas serão afectadas com a construção de uma linha eléctrica de alta e média tensão, bem como com novos acessos ou beneficiação de existentes.

As medidas de mitigação preconizadas no EIA mostram que o impacto será real e significativo. Para além do abate de um número significativo de sobreiros, a um quilómetro do parque proposto, encontra-se um casal nidificante de águia-de-bonelli (espécie classificada como em perigo de extinção), e a curta distância da zona húmida, que a Barragem de Morgavel ainda constitui, importante para as aves aquáticas (incluindo a garça-vermelha, espécie em perigo).

A economia e o emprego exigem o abate de sobreiros?

Desde 2018, foram já emitidas 44 declarações de "imprescindível utilidade pública", que originaram o abate de 13.163 sobreiros e de 72.433 azinheiras (também protegidas, por fazerem parte do ecossistema montado), em 27 concelhos de 15 distritos.

Pela variedade de dimensão e de impacto, e na impossibilidade de referirmos todos os casos de abates autorizados desde 2011 no cômputo de um conjunto de 40 mil sobreiros, a impressão resultante é de que tudo é de interesse público. Entre tantas decisões de excepção à lei, só a conservação de sobreiros e de azinheiras, árvores legalmente protegidas, é considerada sem interesse público. Mas não foi por interesse público que se proibiu o seu corte, e se elegeu o sobreiro como árvore nacional?

Isto passa-se em relação aos sobreiros e azinheiras. Mas a ligeireza da aplicação ou da derrogação à lei manifesta-se noutros domínios: (i) habitat dunar no estuário do Sado dos melhores preservados no âmbito europeu, zona protegida pela sua elevada proporção de endemismos que se pretende converter em aldeia turística; (ii) zonas húmidas no Algarve, para as quais existe legislação de protecção, são pervertidas em centros comerciais ou hotéis de luxo.

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Sobreiros junto à Barragem de Morgavel onde será construído um parque eólico da EDP Rui Gaudêncio

Política incoerente e de autodestruição

Hoje, no quadro europeu, se é certo que se favorece a produção de electricidade proveniente de energias renováveis, propõe-se também restaurar os ecossistemas degradados e regenerar a natureza, como etapa essencial para evitar o colapso de ecossistemas. Em vez de multiplicar as autorizações de abate de árvores protegidas e de elevado valor económico, o que se deveria esperar dos poderes públicos seria que articulassem a resposta às necessidades energéticas com uma rigorosa salvaguarda e com o restauro de ecossistemas.

Nas últimas décadas, pelo menos, os sucessivos governos abdicaram de qualquer coerência e firmeza na aplicação de legislação de protecção do ambiente e da natureza. O recente Simplex Ambiental evidencia o desinteresse cada vez mais acentuado do Estado – numa altura em que a pressão sobre os ecossistemas é maior do que nunca, e quando a necessidade de preservar o que ainda existe é cada vez mais imperiosa.

Para não falar do incumprimento, são tantas as derrogações onde nem se deveria colocar a hipótese de algum empreendimento, que a derrogação, de tão banalizada, torna-se lei, sendo vista apenas como "algo que há que contornar" por "imprescindível utilidade pública".

Se queremos restaurar os ecossistemas em perigo como se recomenda na Europa, em concordância com a assinatura do Acordo Global para a Biodiversidade assinado em 2022 (Acordo Kunming-Montreal), precisamos, no nosso país, de um controlo muito mais eficaz e, especialmente, de estratégia política direccionada à conservação da biodiversidade. Esse controlo poderia ser realizado sob diferentes formas, mas terá de passar sempre por uma avaliação mais isenta, por menor discrição e arbitrariedade. Seria também necessário que a lei balizasse, de uma forma tão objectiva quanto possível, as situações susceptíveis de configurar interesse público, hoje uma figura em que tudo pode entrar, sem clareza e sem precisão.

Se queremos agir na questão climática sem agravar a situação dos solos e da biodiversidade, mas entendendo que são duas questões indissociáveis e de igual prioridade, os signatários consideram indispensável que se responda às necessidades energéticas e a outras políticas territoriais com uma rigorosa salvaguarda e/ou restauro dos ecossistemas. Não podemos é fazer dos habitats, dos solos, do coberto arbóreo e vegetal em geral, das bacias hídricas, ou seja, da biodiversidade, uma vítima do combate, ainda que teoricamente bem-intencionado, da luta pelo clima. Urge compreender que não se conseguem minimizar as alterações globais que afectam o planeta, única e exclusivamente, através de uma transição energética. Sem transição ecológica nada poderá ser possível e essa tarda em ser compreendia.

Fernando Santos Pessoa, silvicultor e arquitecto paisagista

Jorge Paiva, biólogo

José Carlos Costa Marques, tradutor e editor

Maria Amélia Martins Loução, bióloga, investigadora sénior no cE3c-Ciências, Universidade de Lisboa

Nuno Quental, engenheiro do ambiente, gestor de projecto