Américo Aguiar de cardeal a Papa? “Todas as possibilidades são reais”
Novo bispo de Setúbal promete seguir as pisadas de Manuel Martins, conhecido como “o bispo vermelho” de Setúbal, e fala sobre o seu futuro enquanto prelado.
O cardeal Américo Aguiar toma esta quinta-feira posse como bispo de Setúbal, a terceira maior diocese de Portugal e cujo lugar estava vago há mais de um ano. Depois de ter presidido à Fundação Jornada Mundial da Juventude, que prestará contas no fim do ano, Américo Aguiar, de 49 anos, confessa, em entrevista ao PÚBLICO e Rádio Renascença, que o que mais lhe faz “tremer as pernas” é o dia em que entrará para a Capela Sistina para participar na escolha do sucessor do Papa Francisco. Pode ouvir esta entrevista na íntegra esta quinta-feira pelas 23h.
Pode dizer-se que aceitou ir para a diocese que ninguém queria? Há mais de um ano que a diocese de Setúbal estava vacante.
Que ninguém queria não posso validar isso. Daqui a 100 anos, quando se fizer a história e se tiver acesso aos documentos, podem ir lá ver se isso é verdade ou não.
Para mim foi corresponder a um pedido do Papa Francisco e da Igreja e aqui vou eu todo contente e feliz numa chave de leitura que para mim é particularmente emotiva, pois tem que ver com Dom Manuel Martins, o primeiro bispo de Setúbal, meu conterrâneo e que me levou nestas semanas a viajar no tempo, a reencontrar-me com ele.
D. Manuel Martins ficou conhecido como “o bispo vermelho” por denunciar situações de pobreza extrema na península de Setúbal e pressionar o Governo na altura. D. Américo será o bispo ou o cardeal “vermelho”?
Dizia há dias a brincar que não há bispo mais vermelho do que um cardeal, até pelas suas vestes cardinalícias. Mas, sim, sem dúvida nenhuma que estarei particularmente atento e tentarei fazer caminho com todos, todos, todos.
Vai à Bela Vista e ao Bairro do Segundo Torrão? Já começou a pensar por onde é que vai começar a visita a Setúbal?
Na sexta-feira e no sábado vou tentar logo fazer algumas visitas institucionais para ficar imediatamente liberto para outro território. Conheço de nome os bairros que citou, da comunicação social, nunca lá fui. Vou tentar até ao Natal. É uma diocese que tem de tudo – tem pessoas com vidas folgadas, com capacidade material, tem pessoas que vivem situações muito difíceis, tem muito potencial.
Até ao Natal pretende exactamente fazer o quê?
Conhecer, acima de tudo, todas estas situações para poder depois dar um apoio, uma opinião ou fazer caminho com essas situações diversas no território.
Vai reunir-se em breve com a comissão diocesana de Protecção de Menores e Adultos de Setúbal?
Está agendado no sábado o primeiro encontro para tomar conhecimento daquilo que foi o trabalho feito, qual é o ponto de situação e o que é que temos em mãos para dar continuidade.
E depois disso vai contactar as vítimas?
Não podia ser de outra forma!
Porque é que esta diocese esteve tanto tempo sem bispo, sendo a terceira maior do país?
Não deve acontecer. Aliás, tivemos nos últimos tempos três situações muito desconfortáveis: as dioceses dos Açores, Bragança e Setúbal. Não pode acontecer. Temos de fazer caminho. Aliás, muitos dos dossiers que o Papa Francisco tem em mãos têm que ver com as metodologias de maneira a que os processos de substituição sejam feitos em menor tempo.
Que respostas terá, por exemplo, para pessoas vulneráveis a viver em Setúbal que precisam de uma casa e não conseguem? A diocese pode dar apoio?
Vou ver como é que isso pode acontecer. Eu fui várias vezes a Setúbal no tempo do D. Manuel Martins, como seminarista. Estamos a falar de início da década de 90. O pior que pode acontecer é estarmos em 2023 e eu ir encontrar os mesmos problemas. Significa que, passados 30 anos, continuamos a viver os mesmos problemas.
Não é expectável, por exemplo, uma situação tremendista como a que se passou nos anos 80 do século passado, de bandeiras da fome em Setúbal?
Quem tem fome, quem sofre merece uma resposta imediata. O D. António Francisco, bispo do Porto, dizia: “Os pobres não podem esperar.” E nós podemos dizer isso de quem tem fome, de quem está doente, de quem está só, de quem está abandonado. Não pode esperar, não há tempo. Não é possível colocar uma fila de espera para quem tem gritos que definem o seu ser e a sua sobrevivência até.
O que é que nós vamos fazer? Prometer tudo a todos e sempre? Acho que isso já acabou. Setúbal ao longo das últimas décadas foi prejudicada pelo facto de estar associada aos níveis de riqueza e de atribuição de fundos comunitários por parte de Lisboa. Agora, em 2027, vai ser separada. Já se perdeu muito a oportunidade de fazer diferente. 2027 está aí à porta, mas é preciso fazer um caminho e é preciso fazê-lo acertadamente, com a prioridade das pessoas.
Quando foi tornado cardeal em Roma, teve como convidados vários dirigentes do PS, o presidente do partido, o secretário-geral adjunto, a ministra adjunta do primeiro-ministro. Em tempos, foi militante da JS. Não receia que o seu nome seja associado a esta maioria absoluta do PS e que as pessoas olhem para si como um bispo que vai ter menos vontade ou capacidade reivindicativa junto do Governo por ser próximo deles?
Sou muito amigo das pessoas que diz, como também sou muito amigo de Luís Montenegro, Carlos Moedas, Anacoreta Correia, Bernardino Soares.
Que perfil podemos esperar? Que seja um bispo, como Manuel Martins, que não tinha receio de pôr o dedo na ferida e ser incisivo?
Não tenham dúvidas nenhumas quanto a isso. Se somos amigos, dizemos a verdade. A amizade implica obrigatoriamente dizermos a verdade.
Não vai ficar inibido para reivindicar?
Absolutamente. Pelo contrário.
Quando foi tornado cardeal, falou-se muito da possibilidade de ficar em Roma. Chegou a ser convidado para algum cargo no Vaticano ou preferiu a diocese de Setúbal?
Eu sabia que, terminada a Jornada Mundial da Juventude, outras missões e outras circunstâncias iriam aparecer. Depois fui surpreendido com o 9 de Julho, com a criação do cardeal, que é muito associada à possibilidade de poder desempenhar funções nos serviços de Roma. Naquilo que foram as minhas conversas com o Papa, sempre disse: “Aquilo que o Santo Padre quiser, precisar e sempre.”
Mas deu-lhe alternativas? Preferiu Setúbal ou recusou convites?
Não, não vou responder. Posso dizer-vos que esta nobre missão é muito querida do Papa Francisco.
O Papa quis que o cardeal estivesse mais próximo do terreno? É isso?
O Papa Francisco tem provocado a Igreja a entender, primeiro, que se acabaram os cardeais como príncipes da Igreja. Depois, também já acabou e bem a inerência de um cardeal que está numa redoma com os seus vermelhos e as suas penas.
Já pensou em si como “papável”? O facto de ser relativamente jovem é impedimento?
Isto é um bocadinho confrangedor. Primeiro, continuo a dizer que me estou a habituar, porque a imagem que os portugueses têm de um cardeal não é esta, não bate neste currículo nem neste perfil, bate numa pessoa mais velha. Mas a eleição e a criação de cardeais é da única e exclusiva responsabilidade do Papa. O que me causa mais transpirar das mãos e tremer das pernas é um dia estar fechado na Capela Sistina, quando o homem disser extra omnes e fecham-se as portas. O eu estar do lado de lá do fumo.
Fazer parte do colégio eleitoral ou o mesmo de um dos nomes?
O Espírito Santo não é domesticável. A partir do momento em que se fecham as portas, o Espírito Santo começa a trabalhar.
E qualquer um pode sair de lá Papa?
E a pomba do Espírito Santo pode fazer isso a qualquer um. Ao próprio acho que não é bonito achar que sim ou achar que não. Agora, sempre que a Igreja nos pede uma missão, a não ser que tenhamos uma razão muito, muito grave para dizer que não, digamos sempre que sim.
Então, se fizer parte daquela curta lista de nomes elegíveis, nunca dirá não, obrigada, nem pensem nisso?
O que o Papa Francisco fez nos últimos anos, ao diversificar o Colégio Cardinalício é que já não há lista. Estávamos habituados há poucos anos a ter uma short list de três, quatro, cinco nomes. Quanto mais tempo passa, quanto mais novos cardeais o Papa coloca no Colégio Cardinalício, mais isso fica diluído. Há hoje ausências de peso [no Colégio Cardinalício]: Veneza, Milão, Paris. Quanto ao sucessor do Papa Francisco, estou convencido de que o conclave vai durar mais tempo do que o costume, porque nós não nos conhecemos, e, portanto, vai haver aquela coisa de uma primeira votação para ver a sensibilidade, e de uma segunda e por aí fora. O Espírito Santo vai ter mais trabalho.
Disse que era um “danoninho”, quando foi tornado cardeal. Se o escolhido for Américo Aguiar, passará a ser um iogurte bem gordo?
No âmbito de uma conversa de amigos, podemos sempre equacionar todas as possibilidades, porque elas são reais. Todos os cardeais que entram no conclave têm essa possibilidade. Também temos aquela velha máxima de que quem entra papabille sai cardeal. Não é motivo de preocupação. Quando vemos a história, poucos são aqueles que quando lá entraram tinham a perspectiva de saírem lá papas.
Esteve há relativamente pouco tempo antes da Jornada Mundial da Juventude em Jerusalém e contactou quer com palestinianos, quer com judeus. Encontrou nessa altura um ambiente que antecipasse este conflito que vemos nestes dias?
Absolutamente, absolutamente.
Gostaria de ser emissário do Papa para mediar de alguma maneira este conflito?
Este não digo, porque o cardeal Pizzaballa é uma pessoa respeitadíssima no contexto.
Sobre a Jornada Mundial da Juventude sempre disse que a Igreja não ia ficar com um tostão. Houve lucro? Como é que estão as contas?
Estamos a terminar esse processo, mas correu bem e deu lucro. Acabámos por ultrapassar o número mágico das 400 mil inscrições.
E esse dinheiro onde é que vai ser aplicado?
A solução será acordada entre o Governo, a Câmara Municipal de Loures e a Câmara Municipal de Lisboa e a Fundação JMJ.
A frase da jornada que disse já aqui foi “Todos, todos, todos”. Já a viu aplicada desde então no terreno, ou ainda está tudo a assimilar a mensagem?
Olhe que não, olhe que não. A Igreja em Portugal é um puzzle. São 21 dioceses. As velocidades e a capacidade de resposta no terreno são diferenciadas.
Pegando nessa frase “Todos, todos, todos” da JMJ e adaptando à proposta de Orçamento do Estado, são “todos, todos, todos” abrangidos ou há falta ali alguma coisa para alguns?
Falta sempre. Não tenho memória de um orçamento que tenha agradado a toda a gente.
Este é destinado à classe média?
Não tive disponibilidade ainda de ler. Aquilo de que eu tenho conhecimento é muito intermediado pelos media. A mim agrada-me que estejamos num caminho das famosas contas certas.
Há uma medida deste Orçamento que tem estado a ser muito discutida que é o aumento do IUC para automóveis anteriores a 2007. Como é que vê este esse aumento?
Eu sou um perigoso activista ambiental. Mas já agora: quero dizer que não concordo com este novo estilo de intervenção e tenho medo que isto acabe mal. Tenho medo que um dia destes não seja tinta, que seja uma coisa com consequências graves e apelo a estes jovens que não deixem de intervir, não deixem de chamar a atenção, mas não danifiquem a propriedade e não agridam as pessoas, porque isto pode acabar muito mal. Condeno totalmente este gesto e peço que encontrem outra maneira de chamar a atenção, de aproveitar mediaticamente, que é esse o objectivo.
Em relação ao imposto, se me disserem assim “Vamos pressionar o cidadão para que ele não tenha carros tão poluentes”, eu aceito. Mas quando dizem: “Tenho um carro poluente não porque me apetece, mas porque tenho falta de meios materiais para o substituir”... Mas há centenas de milhares de proprietários de carros com matrícula anterior a 2007. Ouvi a ministra Vieira da Silva a dizer que o Parlamento agora tem de fazer o seu caminho, tem de fazer o seu trabalho.
Viu nisso uma abertura para mudanças?
Se conseguirmos sensibilizar os proprietários que têm essas viaturas e têm capacidade material para alterá-las e, ao mesmo tempo, permitir que os que têm essas viaturas possam ter condições de mudar de viatura, acho que era o melhor dos dois mundos.