O velho da tv
Já vira aquilo acontecer à vizinha, o mesmo esgar, a mesma cara torta, devia chamar os bombeiros, mas ficou parado.
Havia apenas uma casa na aldeia cujo proprietário tinha televisão. O Severo passava as tardes de domingo sentado na cadeira de rodas, na sala do “velho da tv”, como lhe chamavam na aldeia. O Urso costumava ir buscá-lo para jantar, ao final da tarde ou início da noite. Numa dessas ocasiões, o pai parecia mais concentrado no ecrã do que era costume, um pouco inclinado para a frente. O Urso cumprimentou-o, mas o pai não disse nada. Olhou em volta, onde está o velho da tv?, perguntou. Como não obteve resposta, repetiu a pergunta. Saiu, foi comprar vinho, disse o Severo, fazendo um gesto com o braço para que o filho se afastasse, não és transparente, sai da frente, e o Carlos saiu da frente, voltando-se para a televisão para ver o que tanto interessava ao pai. Vamos embora, disse o Urso, que se faz tarde, começando a empurrar a cadeira em direção à porta da rua. O Severo tentou impedi-lo agarrando-lhe as mãos, espera espera espera, mas em vão, esbracejava e gritava, tentou morder o filho, quando de repente se agarrou à cabeça, o rosto contorceu-se numa assimetria macabra, a boca torta, o olho direito parecia que escorregava pela cara como se fosse cera a derreter, o pai balbuciou qualquer palavra ininteligível, enquanto o Carlos observava, relativamente confuso e hesitante. Era uma trombose, pensou o Urso, vai dar-lhe o badagaio, já vira aquilo acontecer à vizinha, o mesmo esgar, a mesma cara torta, devia chamar os bombeiros, mas ficou parado. O Severo começou a vomitar, o Urso parecia que segurava a faca da cozinha, imóvel, as pernas entreabertas, a testa perlada de suor, a janela da sala a bater com o vento, o som da televisão, o locutor do noticiário a despedir-se, boa noite, até amanhã, o Urso imóvel, o pai a escorregar da cadeira de rodas para o chão, um braço estendido na direção do filho, um anúncio a cerveja na televisão, mais uns segundos de absoluta passividade até que lentamente o Carlos se voltou e foi chamar os bombeiros.
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