Humanidade caminha para riscos humanos “irreversíveis”: seis ameaças que podem ser catastróficas

Da disponibilidade de água subterrânea até ao lixo espacial, relatório da Universidade das Nações Unidas aponta seis temas cuja evolução pode causar impactos catastróficos se não houver mudanças.

Foto
Relatório conclui que perderemos também as nossas ferramentas e opções para lidar com o risco de desastres futuros GettyImages,GettyImages
Ouça este artigo
00:00
08:47

A humanidade está a caminho de vários pontos de viragem do risco relativos a sistemas socioecológicos que estão interligados e podem dificultar o quotidiano das sociedades com “impactos irreversíveis, catastróficos”, adianta um novo relatório da Universidade das Nações Unidas, publicado nesta quarta-feira.

O documento defende que é necessário a transformação e a acção das pessoas para se construírem estratégias que evitem a possibilidade de se atingir aqueles pontos de viragem, que podem ter efeitos desastrosos em questões tão distantes como o acesso à água subterrânea para a agricultura, a extinção de espécies e o lixo espacial.

“À medida que extraímos indiscriminadamente os nossos recursos de água, danificamos a natureza e a biodiversidade, e poluímos tanto a Terra como o espaço, estamos a aproximar-nos perigosamente do limiar de vários pontos de viragem do risco que poderão destruir os sistemas dos quais a nossa vida depende”, diz Zita Sebesvari, líder do relatório Riscos de Desastre Interligados e directora do Instituto para o Ambiente e Segurança Humana da Universidade das Nações Unidas (IASH-UNU).

“Além disso, perderemos também as nossas ferramentas e opções para lidar com o risco de desastres futuros”, acrescentou a responsável, citada num comunicado da UNU.

O ponto de viragem do risco

Os seis pontos de viragem do risco reunidos no relatório são relacionados com a disponibilidade de água subterrânea para as actividades humanas, a aceleração das extinções de espécies fundamentais para o equilíbrio dos ecossistemas, o derretimento dos glaciares de montanha cuja água serve as populações humanas, o lixo espacial, o calor insuportável causado pelo aquecimento global e a possibilidade de, no futuro, os seguros não suportarem os danos causados pelas catástrofes naturais.

O ponto de viragem do risco é “o momento em que um dado sistema socioecológico não consegue mais aplacar os riscos [existentes] e deixa de providenciar as funções esperadas, sendo que a partir daí o risco de impactos catastróficos nesses sistemas aumentam substancialmente”, explica-se no relatório.

Estes riscos não são teóricos. O documento dá o exemplo do que aconteceu nos últimos anos na Arábia Saudita em relação à disponibilidade de água subterrânea. Depois de explorar extensamente os aquíferos do seu país, tornando-se o sexto maior exportador de trigo — chegando na década de 1990 a extrair 19 biliões (milhão de milhão) de litros de água por ano —, o Governo da Arábia Saudita pôs fim à exploração de trigo em 2016 porque não tinha mais água para a produção. “Agora, para alimentar um país com mais de 30 milhões de pessoas, a Arábia Saudita tem de depender de colheitas importadas de outros países”, lê-se no documento.

Uma distinção importante do conceito de “pontos de viragem do risco” definido no relatório é o facto de esta viragem estar completamente ligada à actividade e às necessidades humanas. O ponto de viragem, ou ponto de não retorno, é muito falado em relação a fenómenos físicos ou ecológicos, como a possibilidade de o derretimento da Antárctida ocidental não ser reversível ou a hipótese de a floresta tropical da Amazónia tornar-se uma savana a partir do momento em que uma determinada área for desmatada.

Porém, o novo conceito refere-se a sistemas que “não são necessariamente sistemas da Terra”, mas “estão dependentes do seu funcionamento”, lê-se no relatório. “Pode haver um limite biofísico quando a depleção de um aquífero faz com que o sistema hidrológico atinja um ponto de viragem. No entanto, quando se discute neste relatório o ponto de viragem do risco de depleção de água subterrânea, o sistema que atinge o ponto é o sistema socioecológico que depende dos recursos de água subterrânea”, explica-se no relatório. No caso da Arábia Saudita é o sistema agrícola que está dependente da água armazenada nos aquíferos.

“Cada sistema com que os humanos interagem tem vulnerabilidades produzidas pelas nossas acções e escolhas, que são frequentemente insustentáveis e, por isso, enfrentam algum elemento de risco”, explica por sua vez ao PÚBLICO Jack O’Connor, que é o outro autor que liderou a escrita do relatório e também pertence à IASH-UNU.

O caso do lixo espacial

Apesar de haver inúmeros sistemas com que as sociedades interagem, a selecção daqueles seis temas “foi baseada na diversidade entre os casos para mostrar exemplos interessantes de interligação, cada um tem uma importância para questões-chave diferentes, enfrentadas por países em todo o mundo”, alega o investigador.

Dos seis tipos de risco identificados, o caso do lixo espacial talvez seja o menos óbvio. Neste momento, existem cerca de 8000 aparelhos em órbita da Terra e muitos mais pedaços e pedacinhos de lixo espacial que viajam a grandes velocidades, com capacidade de provocar danos nos satélites caso haja colisões. Até 2030 estima-se que sejam colocados mais 100.000 aparelhos em órbita, de acordo com o relatório.

Foto
Autores do relatório destacam o papel dos governos, mas também a importância da mudança de comportamento de todos nós GettyImages

Neste caso, o ponto de viragem do risco atinge-se quando o número de aparelhos em órbita for tão grande que passa a ser possível haver colisões em cadeia sem fim à vista. Ou seja, dois satélites colidem entre si (algo que já aconteceu no passado e torna-se cada vez mais provável com o aumento de aparelhos em órbita) e os fragmentos que produzem vão colidindo com outros satélites, produzindo mais fragmentos que multiplicam as colisões, numa cascata de eventos interminável. Se esse cenário se tornar uma realidade, a humanidade corre o risco de ficar sem satélites de comunicações, satélites meteorológicos, entre outros. E, principalmente, sem acesso ao espaço.

Além disso, os satélites meteorológicos são instrumentos importantíssimos para se medir as condições físicas e meteorológicas na Terra, como tempestades, a diminuição de glaciares, entre muitas outras. Sem eles, a humanidade terá mais dificuldade em aferir a evolução dos glaciares de montanha de uma região ou o impacto dos furacões, que vão erodindo a capacidade das empresas de seguros de responderem aos prejuízos causados por aquelas catástrofes. Este é um dos exemplos de como os seis temas estão interligados entre si.

Adiar ou evitar o risco?

Para Jack O’Connor, o relatório pode ajudar a compreender os riscos que a humanidade tem pela frente e o que fazer para evitar aqueles pontos de não retorno. O documento conclui que as medidas que estão a ser aplicadas actualmente vão mais no sentido de adiar o momento do ponto de viragem do risco do que propriamente de evitá-lo.

Um exemplo é o caso da instalação nos edifícios de aparelhos de ar condicionado em regiões cada vez mais vulneráveis às ondas de calor extremas, que podem ser insuportáveis para os humanos — no caso de pessoas saudáveis, quando a temperatura do ar atinge os 35 graus Celsius e vem acompanhada por um nível tão grande de humidade que se torna impossível arrefecer naturalmente o corpo através da transpiração.

Embora o ar condicionado impeça este ambiente fatal, pode potencialmente sobrecarregar a rede eléctrica de uma região, não sendo por isso completamente seguro. Por outro lado, a população mais pobre poderá não ter meios para adquirir um ar condicionado, estando muito mais vulnerável à situação. Por fim, se a electricidade usada para alimentar o ar condicionado tiver sido produzida à base de combustíveis fósseis, então vai estar a alimentar o aquecimento global, que está na base do problema.

O caso do ar condicionado cai na categoria de soluções de adaptação e adiamento do problema, de acordo com o relatório. Os autores esquematizaram quatro tipos de solução sustentadas em duas oposições: evitar o problema ou adaptar ao problema, por um lado, e, por outro, adiar o problema ou transformá-lo.

“As acções que adiam [o problema] estão dentro do funcionamento do sistema existente e têm como objectivo travar a progressão em direcção ao ponto de viragem do risco ou dos piores impactos. Mas a acção ideal é transformar, que envolve voltar a imaginar o sistema tornando-o em algo mais forte e mais sustentável do que era anteriormente”, lê-se no comunicado. Desse ponto de vista, reduzir as emissões de gases com efeito de estufa é mudar o paradigma que provocou as alterações climáticas.

Para essa mudança, os autores defendem a necessidade de se compreender a raiz dos problemas e o que levou a que os sistemas tenham evoluído como evoluíram. “Olhar para a raiz das causas é sublinhar que são os nossos comportamentos pessoais e colectivos que estão na base do risco em vários sistemas”, argumenta Jack O’Connor. “As nossas atitudes em relação ao uso de materiais, à forma como deitamos fora o nosso lixo, a forma como pensamos sobre as emissões pessoais de carbono, quais os políticos que votamos para as eleições, todas estas coisas estão ligadas a questões maiores.”

O documento enuncia ainda cinco linhas orientadoras que poderão ajudar-nos a sair deste contexto de exploração da Terra e de inconsequência que está a trazer tantas dificuldades em tantas regiões do mundo: criar um mundo sem lixo; voltar a integrar o humano com a natureza; cultivar uma vizinhança global, já que a maioria dos problemas são a uma escala planetária; ser um bom antepassado, ou seja, pensar no impacto das acções nas gerações futuras; e criar uma economia pensada no bem-estar das populações e não no crescimento infinito.

Há também, em todo o documento, um apelo há mudança individual como um passo importante, catalisador de uma mudança maior, do entorno, da comunidade. “Isto não é para apontar o dedo às pessoas, mas para sublinhar que se estamos conectados às causas [dos problemas], então mesmo ao nível local poderemos contribuir para soluções se mudarmos aqueles comportamentos”, defende o investigador. “As pessoas gostam de pôr a responsabilidade da mudança nos políticos. Mas eles também são pessoas, tal como nós. Todos nós precisamos de começar a mudar a maneira de pensar.”