Há mais abutres-pretos a nidificar em Portugal, mas o caminho para a estabilidade ainda é longo
Sucesso reprodutor ainda é considerado relativamente baixo e é um aspecto que tem de ser melhorado para garantir que o regresso da espécie a Portugal se consolida.
Se pensarmos que estamos a falar de uma ave que na década de 1970 se extinguira enquanto espécie reprodutora em Portugal, não há como não ficar contente e Milene Matos, coordenadora do projecto LIFE Aegypius Return diz-nos isso mesmo: “Os dados são animadores, dão-nos esperança de que a espécie esteja a recuperar”. E os dados dizem-nos que existem entre 78 e 81 casais de abutre-preto (Aegypius monachus), porque é dele que estamos a falar, a nidificar por cá. É animador, mas não chega para retirá-los do estatuto Criticamente em Perigo em território nacional com que está classificado.
Primeiro, as boas notícias. É verdade que há mais casais a nidificar por cá, mesmo que sete dos que entram nas contas do projecto tenham os seus ninhos instalados já do outro lado da fronteira, em Espanha. Confuso? Nem por isso. “Em rigor, estes casais já têm o ninho em território espanhol, mas pertencem ao grupo que vive em Portugal. Temos quatro colónias e todos eles são das colónias portuguesas”, explica a coordenadora do projecto.
Por isso, mesmo que no Parque Natural do Tejo Internacional (PNTI), cinco dos entre 44 a 46 casais que ali nidificam tenham escolhido o outro lado do rio para instalar o ninho, ou que dois dos entre 17 e 18 casais da colónia da Herdade da Contenda tenham feito o mesmo, todos eles entram nas contas do balanço do primeiro ano do projecto LIFE, que vai andar pelo terreno até 2027. Os outros que contam para os números nacionais estão na Serra da Malcata (14 casais) e no Parque Natural do Douro Internacional (três casais).
As cautelas começam quando se percebe que o aumento de casais registado este ano pode ser, em grande parte, fruto da uma maior e melhor monitorização e acompanhamento no terreno da espécie, graças a uma estratégia nacional, garantida pelo apoio de diversas entidades (como a SPEA - Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves, a Palombar ou a Liga para a Protecção da Natureza), sob a coordenação da VCF – Vulture Conservation Fundation (Fundação para a Conservação do Abutre).
Milene Matos confirma que muito do trabalho realizado neste primeiro ano do projecto foi montar toda essa rede de parceiros e garantir a uniformidade de metodologias a nível nacional. E que esses novos procedimentos podem ter contribuído para o aumento de casais detectados (em 2022 foram apenas 40), não deixando “quaisquer dúvidas” sobre os dados recolhidos. Mas também tem a certeza que há “um aumento efectivo” dos casais reprodutores em território nacional, desde que, em 2010, foi encontrado o primeiro ninho que marcava o regresso do abutre-preto enquanto reprodutor ao país, no PNTI.
No Douro, por exemplo, onde a espécie é monitorizada de forma muito apertada desde 2012, quando regressou à região, houve este ano um novo casal a nidificar por ali. Apesar de ser a colónia mais “isolada e frágil”, há por lá agora três casais, em vez de dois. E na serra da Malcata, de 2022 para este ano, deu-se o maior salto na presença de casais nidificantes: passou-se de dois para 14. Aqui, diz o projecto LIFE e em comunicado, é particularmente visível “a importância de coordenação de esforços de monitorização”, ou seja, o mais provável é que alguns destes casais já estivessem por lá nos anos anteriores, mas sem terem sido ainda detectados.
Mas se há, de facto, um crescimento efectivo, onde está então o problema? O maior deles tem que ver com o sucesso reprodutor, que ainda é considerado baixo. Os abutres-pretos só começam a reproduzir-se cinco a seis anos após o nascimento e cada casal só produz um ovo por ano. Este ano, das 50 crias que nasceram, apenas entre 35 a 37 foi “recrutada para a população”, ou seja, sobreviveu aos primeiros meses de vida e tornou-se uma ave voadora. Esta percentagem é ainda “relativamente baixa”, fazendo com que o aumento do êxito reprodutor se torne um dos principais objectivos para os próximos anos.
Deixar carcaças ao ar livre
Para isso, o projecto vai apostar numa melhor gestão florestal nas áreas de nidificação (cinco hectares vão ser em breve intervencionados), em intervenções que tornem os ninhos naturais mais seguros (impedindo que caiam, por exemplo, durante uma tempestade, o que pode levar à morte da cria) ou no estabelecimento de mais ninhos artificiais. O aumento de disponibilidade de alimento é outro factor que vai avançar, com a instalação de mais dois campos de alimentação e 66 áreas mais pequenas e fáceis de operacionalizar.
Desde o surto de BSE (encefalopatia espongiforme bovina), conhecida como a “doença das vacas loucas” que deixou de ser possível deixar ao ar livre as carcaças do gado morto, o que se tornou um problema na disponibilidade de alimento para o abutre-preto. A medida, que por cá continua em vigor, já foi revertida em Espanha, e a diferença é enorme.
“A fauna silvestre que morre e está disponível não é suficiente, eles dependem bastante deste gado em regime extensivo para se alimentarem. Por cá, os proprietários de gado são obrigados a reportar qualquer morte de gado e o cadáver tem de ser recolhido, ou para enterrar ou incinerar. Em Espanha estas condições foram revertidas mais cedo e é por isso que eles têm tantas aves necrófagas e Portugal não. Há como que uma barreira invisível por causa disto”, explica a coordenador do projecto dedicado à maior ave de rapina do continente europeu.
Garantir a disponibilidade de alimento é, por isso, essencial para atrair mais casais. E impedir que sejam mortos com venenos ou tiros que não lhes eram dirigidos é outra forma de trabalhar para a conservação da espécie, e que o LIFE também está a desenvolver, em colaboração com a GNR, produtores e caçadores.
Crias com GPS
Com quatro anos de trabalho ainda pela frente e as metodologias de trabalho definidas, os próximos dados devem ser de mais informação fiável sobre a realidade da espécie em Portugal. E para ajudar a perceber como essa evolução ocorre, 15 das crias que nasceram este ano receberam emissores GPS, o que permitirá o seu seguimento e a análise de “padrões de movimento e dispersão”, refere-se no comunicado do projecto. “A informação recebida permite ainda detectar situações anómalas e, em caso de necessidade, intervir atempadamente”, acrescenta-se.
Amostras biológicas também recolhidas em 18 crias vão ajudar a conhecer melhor a espécie e ajudar a estabelecer medidas que contribuam para a sua conservação. Tudo para que o abutre-preto deixe de lhe ter colado à espécie o estatuto de conservação de “criticamente em perigo”. O objectivo é que, para já, se consiga saltar para o menos dramático degrau do “em perigo”. “Os dados dizem-nos que há condições para termos esta espécie. Dão-nos esperança que acções que temos no nosso plano vão ter mais sucesso para consolidar o seu regresso ao nosso país”, diz Milena Matos. Daqui a um ano já se deve saber se essa esperança continua a crescer.