Em 2023, a Terra entrou em “território desconhecido”: é preciso tirar aos ricos para dar aos pobres?

Recordes deste Verão de 2023 mostram que a Terra entrou em “território desconhecido”. Cientistas defendem economia que suporte as necessidades básicas de todos, em vez do consumo excessivo de alguns.

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Os subsídios aos combustíveis fósseis mais do que duplicou em 2022 GONZALO FUENTES/Reuters
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Um relatório sobre o clima publicado nesta terça-feira defende que os desastres naturais e os extremos climáticos vividos nos últimos meses levaram o mundo para um “território desconhecido” em relação às alterações climáticas. Para combatê-las, o documento defende uma mudança do paradigma económico, para que passe a suportar as necessidades básicas de toda a população do planeta e não a possibilidade de um consumo em excesso pela minoria rica, como tem acontecido.

“Necessitamos de políticas que tenham como alvo as questões subjacentes de sobrecarga ecológica onde a procura humana pelos recursos da Terra resulta numa sobreexploração do nosso planeta e num declínio da biodiversidade”, lê-se no Relatório do estado do clima de 2023: entrando em território desconhecido, publicado na revista BioScience.

“Enquanto a humanidade continuar a exercer uma pressão extrema na Terra, qualquer tentativa de solução centrada no clima vai apenas redistribuir essa pressão”, adianta o documento escrito por William J. Ripple e Christopher Wolf, da Universidade Estadual do Oregon, nos Estados Unidos, e mais dez investigadores de instituições da Alemanha, Austrália, Bangladesh, Brasil, China, Estados Unidos da América, Países Baixos e Reino Unido.

Desde 2019 que William J. Ripple e Christopher Wolf, acompanhados por outros investigadores, têm publicado anualmente pequenos relatórios sobre a informação mais recente acerca do clima com o objectivo de “educar o público em geral e os legisladores sobre a severidade da crise climática e de inspirar acções em grande escala” que lidem com o problema, explica ao PÚBLICO William J. Ripple, por correio electrónico.

A cada ano, o relatório apresenta informações actualizadas sobre a evolução de dezenas de sinais vitais do planeta nas últimas décadas, tais como a concentração de dióxido de carbono (CO2) e de outros gases presentes na atmosfera que contribuem para o efeito de estufa, a temperatura à superfície do planeta, a acidez dos oceanos, a cobertura florestal, a variação da massa de gelo na Gronelândia, a variação de calor acumulado nos oceanos, a população humana e a população de gado ruminante no mundo, entre outros sinais.

Aumento de subsídios para combustíveis fósseis

Em 2019, os dois investigadores mais um conjunto de 11.000 cientistas (número que, entretanto, subiu para 15.000) declararam o estado de emergência climática. Na altura, o relatório sublinhava as tendências “perturbantes” da situação planetária. Mas depois de um Verão particularmente quente e com muitos recordes climáticos, o novo documento conclui que a Terra está a entrar numa nova fase.

“Estamos a entrar num domínio que não é familiar em relação à crise climática, uma situação que ninguém testemunhou em primeira mão na história da Humanidade”, lê-se no documento. Porquê? “Muitos sinais vitais planetários como a concentração de gases com efeito de estufa continuaram a piorar de forma estável desde que publicámos o primeiro relatório em 2019. No entanto, vimos recentemente um número de recordes relacionados com o clima a serem ultrapassados por uma margem enorme, especialmente aqueles relacionados com as temperaturas dos oceanos, as temperaturas em geral e a extensão do gelo [na Antárctida]”, alerta o cientista.

Ao longo dos meses do Verão de 2023, o mundo foi assistindo a recordes de temperatura mensais a serem batidos todos os meses, com dezenas de dias em que a temperatura média global à superfície foi 1,5 graus Celsius superior à temperatura média pré-industrial. “Estas são uma causa maior de preocupação porque estamos a deixar para trás as condições associadas com a civilização humana”, sublinha o William J. Ripple.

No final do século XXI poderá haver entre três e seis mil milhões de pessoas na Terra – a população mundial é de mais de oito mil milhões – a viver num contexto onde as condições existentes deixem de suportar a vida humana, adianta o documento, quer por uma questão de temperaturas altas, escassez de alimentos ou por outras razões associadas às alterações climáticas. “Por isso, temos de mudar a nossa perspectiva acerca da emergência climática de ser uma questão ambiental isolada para uma ameaça sistémica e existencial”, segundo o relatório.

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Incêndio em Agosto na Grécia DIMITRIS ALEXOUDIS/EPA/Lusa

O documento destaca ainda fenómenos específicos como os enormes incêndios ocorridos no Canadá que, a 13 de Setembro, já tinham consumido 166.000 quilómetros quadrados daquele território (Portugal tem 92.000 quilómetros quadrados), resultando em mais de uma gigatonelada de CO2 emitido, um valor superior às emissões de 2021 do Canadá de 0,67 gigatoneladas. “Há um risco real da crescente severidade dos incêndios produzir uma perda de carbono irrecuperável num futuro cada vez mais quente”, argumenta o relatório.

Ao mesmo tempo, os autores não deixam de reflectir sobre as atitudes globais perante o consumo de combustíveis fósseis, apontando que a emissão dos gases com efeito de estufa continua a aumentar, o que torna evidente que a esperança de um futuro verde no mundo pós-pandemia ficou por cumprir. Ao mesmo tempo, não esquecem o impacto da guerra na Ucrânia na sede pelos combustíveis fósseis.

“Este conflito contribuiu para um aumento significativo de 107% dos subsídios de combustíveis fósseis, passando de 498 mil milhões de euros em 2021 para 1028,82 mil milhões de euros em 2022 por causa do aumento dos preços da energia”, de acordo com o relatório.

Taxar os mais ricos

Perante este cenário, o relatório defende a eliminação das emissões de gases com efeito de estufa, o aumento de sequestro de carbono através de soluções baseadas na natureza e investigar formas comprovadas que permitam retirar mais carbono da natureza. Nesse sentido, os cientistas apoiam os tratados internacionais de não-proliferação do combustível fóssil.

No entanto, para o grupo de cientistas, o combate pelo clima não pode ser feito sem uma mudança do paradigma económico. “Desafiamos a noção prevalecente do crescimento ilimitado e do excesso de consumo feito pelas nações e pelos indivíduos ricos como sendo insustentável e injusto”, lê-se no documento, onde se argumenta que é muito difícil “separar o crescimento económico do impacto nefasto no ambiente”.

Segundo os dados de 2019, os dez por cento mais ricos foram responsáveis por 48%, quase metade, das emissões totais de gases com efeito de estufa, enquanto os 50% menos ricos foram responsáveis por apenas 12% das emissões. “Precisamos, por isso, de alterar a nossa economia para um sistema que dê o suporte para se alcançar as necessidades básicas de todas as pessoas em vez do consumo excessivo dos ricos”, defende-se no documento.

Como é que isso é possível? “Acreditamos que isso pode ser abordado através de políticas socialmente justas que assegurem que os indivíduos mais ricos sejam taxados razoavelmente”, responde William J. Ripple. “Adicionalmente, empresas dos combustíveis fósseis e de outras indústrias destrutivas ao nível do clima deverão ser responsabilizadas pelas suas emissões nocivas. Por exemplo, uma taxa de carbono global poderia ser um instrumento político eficaz para restringir o consumo excessivo.”

Os investigadores defendem ainda uma justiça climática que beneficie as populações mais vulneráveis e que dê prioridade a uma distribuição equitativa dos recursos. Ao mesmo tempo, tendo em conta que o excesso populacional sobrecarrega a Terra, o relatório defende a aposta na educação das raparigas e mulheres, que está associada a uma diminuição da fertilidade e, além disso, beneficia a igualdade entre géneros e está associado ao aumento do nível de vida das comunidades.

Segundo os autores, estas terão de ser políticas a curto, médio e longo prazo. “A verdade é que estamos chocados com a fúria dos fenómenos extremos de 2023”, admitem os cientistas no documento, avisando que as condições se poderão tornar muito piores no decorrer dos anos, se não se fizer nada.

“Esperamos que o aumento recente de desastres relacionados com o clima vá ajudar as pessoas e os legisladores a juntarem-se para lidar com esta ameaça séria”, refere William J. Ripple. “As pessoas nos países democráticos podem ter uma influência poderosa na política do clima, ao apoiar líderes que reconheçam que as alterações climáticas são tanto uma ameaça imediata como um desafio de longo prazo que a humanidade tem de enfrentar para assegurar que os humanos e o resto da vida na Terra possam prosperar.”