Isto não é uma guerra entre o Hamas e Israel

Neste momento não se está a testemunhar uma guerra entre o Hamas e Israel, mas sim uma segunda Nakba – o genocídio e planeado extermínio total do povo palestiniano.

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Megafone P3: O povo palestiniano tem o direito de se defender Reuters/IBRAHEEM ABU MUSTAFA
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As notícias que chegam da Palestina são, do ponto de vista humanitário, assim como humanista, desesperantes. Não me refiro com isto só a Gaza, mas a todo o território palestiniano ocupado, incluindo Jerusalém e mesmo as cidades e aldeias palestinianas que hoje fazem parte do Estado de Israel.

Tem-se observado um interesse excepcional, não pela causa palestiniana e pela situação do povo palestiniano em si, mas pelo Hamas. É mesmo triste que, fora em momentos como este, de escalação desmesurada do conflito, ninguém se interesse pela situação no terreno, nem pelo destino dos palestinianos, abandonados a um poder militar, com a potência e com a perversidade sádica de um estado colonialista como o de Israel.

Interessante é observar que o povo palestiniano, quando é abordado nos media, o que só acontece em momentos como este, é sempre sendo descrito como terrorista. Mas o Hamas não é o povo palestiniano.

Porque é que o Movimento de Libertação Islâmico, que é o Hamas na sua base, e o seu braço militar – as Al-Qassam Brigades – são usados para representar todo o povo palestiniano?

Há ainda que compreender o contexto do aparecimento e da fundação dos partidos políticos na Palestina. Todos os partidos actuais da arena política palestiniana surgiram após a Nakba – a catástrofe palestiniana, em que cerca de 800 mil palestinianos foram feitos refugiados pelas milícias armadas judias Irgun e Hagana – e sendo assim, também na pós-criação do Estado de Israel em 1948.

Neste contexto, todos os partidos políticos são “Movimentos de Libertação do Povo Palestiniano” e todos eles têm braços armados, independentemente da afiliação religiosa e da ideologia política.

Há um leque de partidos, da direita à esquerda, religiosos e seculares, todos eles comprometidos com a “Libertação do Povo Palestiniano”. Aqui se encontram o conhecido Fatah de Arafat e Abbas, assim como o Hamas, o Islamic Jihad e o PFLP, um partido secular de esquerda.

Sim, porque também existem partidos seculares e de esquerda na Palestina. O Fatah tem como braço armado as Al-Aqsa Brigades, o Islamic Jihad tem as Al-Quds Brigades, o PFLP tem as Abu Ali Mustafa Brigades. Quer isto dizer que todos os partidos políticos têm uma ideologia e agenda política (exactamente como no resto do mundo), que cobre todos os espectros da arena política palestiniana. Os braços armados estão ligados aos partidos na ideologia, mas actuam de certa forma independente, tendo uma outra agenda.

Neste momento não se está a testemunhar uma guerra entre o Hamas e Israel, mas sim uma segunda Nakba – o genocídio e planeado extermínio total do povo palestiniano.

A retórica de que o Estado de Israel tem o direito de se defender é enganadora. Foi o Estado de Israel que colonizou e tem mantido ocupado todo um povo há mais de 75 anos, sem cumprir os direitos humanos básicos – parte da declaração universal da ONU.

O Estado de Israel actua como um bandido, de forma criminosa, e tem mesmo que se perguntar onde está o verdadeiro terrorismo neste conflito. Há dez anos que se espera que uma terceira Intifada possa irromper, dada a precariedade da situação e das condições de vida, e nos últimos dois anos esta situação tem piorado gravemente e a olhos vistos.

Isso pode verificar-se na documentação da OCHA-oPT, um órgão de monitorização da ONU, que claramente constata um aumento assustador de presos, feridos e mortos. Não mortos de causa natural, mas sim assassinados, a tiro, à paulada, queimados vivos e torturados.

Os ataques de colonos armados aos palestinianos têm aumentado excessivamente, usufruindo os colonos da total protecção do exército israelita. Nos últimos anos também se têm dado ataques violentíssimos a devotos na mesquita de al-Aqsa durante o mês do Ramadão.

Neste preciso momento, enquanto o mundo, de repente, se lembrou de que em Gaza se passa algo e está fixado naquilo que cegamente acredita lá se passar, o exército israelita aumenta a violência na Cisjordânia.

Nas barbas do mundo, e sem ninguém tomar notícia e nem prestar atenção, fazem-se diariamente rusgas nocturnas, em que aldeias inteiras são invadidas e civis, incluindo crianças, são presas e mortas. O castigo colectivo que se verifica em Gaza é alargado à Cisjordânia, sendo cortadas a luz e a água, e os cerca de 600 checkpoints fechados, de forma às pessoas ficarem presas e sucumbirem.

Terrorismo e o assassinato propositado de civis nunca é um acto desculpável nem justificável, que se possa em momento algum defender. O extermínio lento e calculado de um povo, ao longo de mais de 75 anos, tampouco. Ver a família, os amigos, toda uma sociedade a morrer a fogo lento é deprimente e desesperante e rouba a qualquer pessoa a perspectiva de vida e a esperança.

Quando a esperança morre, tudo perde o valor. Mesmo a própria vida. O povo palestiniano tem passado por muito e tem sido testado ao máximo. Sem perspectiva. A comunidade internacional nada faz desde o Plano de Partição em 1917. Nada fez em 1948 e até hoje mantém-se sem nada fazer.

A comunidade internacional come pipocas enquanto assiste ao genocídio calculado de todo um povo e ainda se solidariza com o estado de Israel, afirmando que este tem o direito de se defender. Defender-se do povo que colonizou e ainda ocupa? É deveras paradoxo. Era como Portugal ter o direito de se defender dos povos indígenas dos países que colonizou. Países ocidentais brancos colonizadores entre si. Numa era pós-colonialismo, a alma dos colonizadores ocidentais ainda se mantém a mesma e alguns deles caem mesmo em saudosismo. Talvez fosse agora o momento, para também Israel se retirar dos territórios ocupados e acabar com a ocupação da Palestina e do povo palestiniano. Mas todos sabemos que isso não irá acontecer. Há muito em jogo para o Ocidente.

Muito regularmente se ouve a questão de como o Holocausto poderá ter acontecido, de como o povo alemão, assim como os outros, viram o que o regime do 3º Reich de Hitler estava a fazer aos judeus. Pois o Holocausto aconteceu exactamente nas barbas do mundo, que fechou os olhos e não quis saber do que se estava realmente a passar.

É isto que estamos a testemunhar neste momento, com a agravante de que as vítimas do Holocausto são agora eles os agressores. Com a agravante de que os indivíduos e os líderes políticos ainda apoiam o genocídio abertamente. Por todo o lado. É uma normalidade cruel e brutal. Animalesca. Não são os palestinianos os animais, mas a humanidade, que olha e nada faz.

O povo palestiniano tem o direito de se defender, se não quer ser em breve um povo extinto. Contar com o mundo há muito que não pode. Foi deixado ao abandono. Desde o momento zero.

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