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A tragicomédia das criptomoedas (e a Web Summit)
Uma newsletter de João Pedro Pereira sobre inovação, tecnologia e o futuro.
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O mundo das criptomoedas sempre teve uma faceta tragicómica.
É trágico que pessoas tenham perdido as poupanças de uma vida num jogo especulativo, frequentemente ilegal, e que não percebiam. Mas é cómico que houvesse pessoas com cara séria a chamar "investimento" a imagens digitais associadas ao "exclusivo" clube Bored Ape Yacht Club – qualquer coisa como o Clube de Iate dos Símios Aborrecidos.
Se a ideia de milhares de pessoas a tentarem ficar ricas graças a desenhos de símios com bonés ou óculos de sol não o faz rir, então é porque provavelmente perdeu dinheiro a comprar NFT, cujo mercado colapsou. No mundo das criptomoedas, a comédia e a tragédia são como os ganhos e as perdas: o riso de uns é feito à custa das lágrimas dos outros.
Um episódio cómico recente – a tragédia foi evitada pelas autoridades – é o do médico nos EUA que encomendou o assassínio da mulher, pagando em bitcoins.
James Wan, 54 anos, recorreu a serviços na dark web (uma zona da Internet que não está imediatamente acessível e que implica o uso de aplicações específicas). "Pode levar a carteira, telefone e carro. Dispare e siga. Ou leve o carro", escreveu Wan quando fez a "encomenda".
O FBI detectou o pedido, protegeu a mulher e deteve Wan. Mas o que se passou durante a transacção ilustra alguns dos problemas da bitcoin como forma de pagamento.
Wan enviou um primeiro pagamento de oito mil dólares em bitcoins para a plataforma online onde encomendara o assassínio (o montante correspondia a metade do preço). Os fundos, contudo, tardavam em aparecer na plataforma. Wan acabou por perceber que tinha enviado as bitcoins para o endereço errado; é o equivalente a enganar-se no IBAN numa transferência bancária.
Com a bitcoin e demais criptomoedas não há forma de reverter uma operação ou reaver os fundos. "Bolas, parece que perdi oito mil dólares", escreveu Wan ao administrador da plataforma. E enviou outros oito mil.
Reparemos agora que Wan lamentou ter perdido "oito mil dólares", não o facto de ter perdido bitcoins. Este sempre foi outro problema: mesmo quem aceita bitcoins ou outras criptomoedas pensa nos preços em euros, dólares ou outra moeda. Nos negócios legítimos, pelo menos, é quase sempre feita a conversão no momento da compra. As criptomoedas são demasiado voláteis: não são boas para transacções e muito menos para se gerir um negócio.
Ora, o assassínio tardava em concretizar-se (Wan ia verificando todos os dias o estado da "encomenda") e a bitcoin desvalorizou nesse período de poucos dias. Wan acabou por ter de transferir mais 1200 dólares em bitcoins para que o serviço fosse levado a cabo. Imagine encomendar um serviço cujo preço sobe 15% ainda antes de ser concretizado.
Foi por esta altura que o FBI interveio e evitou o pior. Wan declarou-se culpado e será julgado.
Um outro caso de polícia tem vindo a desvendar os contornos de uma tragicomédia de grandes dimensões: a de Sam Bankman-Fried e da FTX, outrora uma importante plataforma de transacção de criptomoedas.
Bankman-Fried declarou-se inocente. Em termos gerais, é acusado de ter usado dinheiro de clientes da plataforma para investimentos especulativos e para gastos pessoais milionários. Várias pessoas do seu círculo próximo (incluindo a ex-namorada e ex-executiva, Caroline Ellison) declararam-se culpadas e estão a colaborar com a acusação.
Tudo o que tem vindo a público – os testemunhos, os estranhos documentos escritos por Bankman-Fried, uma biografia recente – dão a imagem de uma pessoa conturbada.
Bankman-Fried, 31 anos, usava calções e t-shirt em quase todas as circunstâncias, incluindo em conferências com personalidades globais (em tribunal passou a apresentar-se de fato e gravata). Gastou milhões a financiar políticos, incluindo a campanha de Joe Biden. Passou-lhe pela cabeça comprar a ilha de Nauru – que é um país no Pacífico – para ter para onde fugir no caso de um apocalipse. Num dos documentos que escreveu para si próprio interrogava-se sobre que outros usos poderia dar a um país soberano.
Dizia ser um praticante do altruísmo eficaz, uma corrente de pensamento que tem sido apropriada de forma simplista por alguns magnatas, em particular no sector da tecnologia, que estão convencidos de que se tiverem dinheiro suficiente conseguem resolver todos os problemas do mundo.
Bankman-Fried, que argumentava que Shakespeare não podia ser o maior escritor de língua inglesa pela simples razão matemática de que muitos milhões de pessoas escreveram coisas depois de Shakespeare, achava que alguém nascido em 1992 conseguiria fazer o que milhares de milhões de pessoas antes dele não lograram (parafraseio aqui a excelente coluna de Janan Ganesh no Financial Times).
Esta tragédia de Bankman-Fried são várias tragédias em catadupa. A sua própria: se for considerado culpado, arrisca-se a passar décadas (potencialmente, o resto da vida) na prisão. Também a dos pais, alvo de um processo pela própria FTX, que está sob uma gestão de insolvência e que acusa o casal de ter participado na alegada fraude. A de muitas das pessoas que trabalhavam na FTX e na Alameda Research (a empresa de investimentos que deu origem ao rombo nas contas), algumas das quais também enfrentam a justiça. E, por fim, a tragédia dos que perderam dinheiro (há a boa notícia recente de que grande parte dos fundos poderão ser recuperados).
Mas há algo de cómico na imagem de um jovem empreendedor, sempre vestido como se fosse para a praia, a montar um negócio de criptomoedas e a viver numa propriedade de 35 milhões de dólares nas Bahamas, sentado num palco a discutir o mundo com Bill Clinton e Tony Blair.
O absurdo em grande escala talvez venha a ser o maior legado das criptmoedas.
Uma nota sobre a Web Summit
Paddy Cosgrave demitiu-se do cargo de CEO da empresa que organiza a Web Summit, depois de ter feito um tweet sobre Israel, que levou a que muitas empresas cancelassem a participação. Continua a ser o sócio maioritário.
Cosgrave tinha o direito de fazer o tweet que fez. E qualquer pessoa tem o direito de não querer ir à Web Summit por qualquer razão, incluindo por algo que o porta-voz do evento tenha dito. São exercícios legítimos de liberdade.
Em Portugal, há quem rejubile com este tropeção da Web Summit. Não surpreende, o evento sempre gerou anticorpos.
Mas convém não esquecer que a Web Summit teve um papel na recuperação da imagem do país e de Lisboa. Quando a vinda da conferência foi anunciada, em Setembro de 2015, Portugal estava a sair da intervenção da troika e animicamente devastado. Não foi inócuo nos anos que se seguiram o facto de a maior conferência de tecnologia do mundo – e um dos grandes fóruns de ideias globais – decorrer em Lisboa.
O enlevo com que alguns políticos, especialmente nos primeiros anos, olhavam para a conferência foi confrangedor. Não era preciso andar a beijar o chão que Cosgrave pisava. Mas é injusto pisar Cosgrave agora que ele está no chão.