Degelo do manto branco da Antárctida ocidental pode ser “inevitável”
Derretimento das plataformas de gelo na Antárctida ocidental pode ser “inevitável”, sugere estudo. Ainda assim, limitar emissões continua a valer a pena para evitar outras consequências climáticas.
O derretimento das plataformas de gelo na Antárctida ocidental pode ser “inevitável” ao longo deste século, sugere um estudo publicado nesta segunda-feira na revista científica Nature Climate Change. Mesmo que as metas do Acordo de Paris sejam escrupulosamente cumpridas, apenas os piores cenários poderão ser evitados, referem os autores.
“Independentemente de quanto reduzamos as emissões de combustíveis fósseis, podemos esperar que o derretimento da camada de gelo da Antárctida Ocidental se agrave e acelere ao longo do próximo século”, afirma ao PÚBLICO Kaitlin Naughten, primeira autora do estudo e investigadora da British Antarctic Survey, em Cambridge, no Reino Unido.
O modelo construído pelos cientistas considerou tanto os cenários optimistas, em que há uma redução drástica de gases com efeito de estufa, como os mais pessimistas, em que as emissões persistem ou até aumentam. Os resultados obtidos indicam que o ritmo de degelo na região já poderá estar irremediavelmente comprometido.
“Esperava que o derretimento piorasse, mas não esperava que os diferentes cenários fossem tão semelhantes. Achei que haveria uma diferença maior entre um mundo de 1,5 graus Celsius [limite de aquecimento global ambicionado pelo Acordo de Paris] e o caminho de mitigação de médio alcance que estamos a trilhar actualmente”, diz Kaitlin Naughten.
Os esforços de mitigação climática podem dar, ao longo das décadas vindouras, um contributo muito limitado no que diz respeito a travar localmente o degelo. O artigo da Nature Climate Change concentra-se apenas na região do mar de Amundsen.
“Os meus resultados mostram que, quando se trata do derretimento da plataforma de gelo do mar de Amundsen, estes cenários são estatisticamente indistinguíveis. Embora a redução do uso de combustíveis fósseis possa ajudar a evitar o pior cenário, reduções muito maiores [do que as previstas no Acordo de Paris] acabam por ter um impacto negligenciável”, acrescenta a cientista.
Se é inevitável, mais vale desistir?
O estudo publicado nesta segunda-feira traz a palavra “inevitável” no título. Pode este tipo de conclusão científica significar que já não há nada a fazer? Que mais vale desistir? Os cientistas dizem que não, afirmando que esta seria uma interpretação errada dos resultados deste modelo.
“Estas descobertas são desanimadoras, mas é importante lembrar que o manto de gelo da Antárctida ocidental é apenas um dos contribuintes para a subida do nível do mar. A camada de gelo da Antárctida oriental tem cerca de dez vezes mais gelo e pensamos que é em grande parte estável, desde que as emissões não aumentem ainda mais. Além disso, a subida do nível do mar é apenas um dos impactos das alterações climáticas”, explica a cientista da British Antarctic Survey.
Por outras palavras, mesmo que o derretimento da camada de gelo da Antárctida ocidental seja de facto inevitável, a humanidade ainda pode limitar outros efeitos negativos da crise climática. É o caso de episódios de seca hidrológica, ondas de calor, tempestades e outros fenómenos climáticos extremos.
“Sempre pode piorar, o que significa que ainda podemos impedir que as coisas se agravem”, diz Kaitlin Naughten, numa resposta enviada por email.
Uma visão semelhante tem Alberto Naveira Garabato, professor de Oceanografia Física na Universidade de Southampton, no Reino Unido. O cientista espanhol, que não esteve envolvido no estudo, descreve a conclusão do artigo como “preocupante”, pois “ilustra como as nossas escolhas no passado” comprometeram o manto de gelo na Antárctida ocidental. Mas sublinha que não podemos baixar os braços.
“Este estudo deve servir também como um alerta. Ainda podemos salvar o resto do manto de gelo da Antárctida, que contém cerca de dez vezes mais metros de subida do nível do mar, se aprendermos com a nossa inacção passada e começarmos a reduzir agora as emissões de gases com efeito de estufa”, diz Naveira Garabato, citado numa nota de imprensa.
Plataformas e mantos de gelo: qual a diferença?
Plataformas (ou bancos) de gelo e mantos de gelo não são a mesma coisa. Neste estudo, Kaitlin Naughten e outros dois autores concentraram-se nas plataformas de gelo do mar de Amundsen. Trata-se de estruturas flutuantes que estão conectadas ao gigantesco manto de gelo.
O manto de gelo da Antárctida ocidental é o que mais contribui, na região, para a subida do nível médio do mar. As plataformas de gelo possuem um papel importante na regulação do fluxo de água dos glaciares para o oceano. Podem contribuir para acelerar ou travar o processo de derretimento do manto gelado.
“O derretimento das plataformas de gelo flutuantes provocado pelo oceano é actualmente o principal processo que causa a perda de gelo dos mantos de gelo da Antárctida ocidental. O derretimento dos bancos de gelo não causa directamente o aumento do nível do mar, mas torna as plataformas mais finas, deixando os glaciares mais expostos. Os glaciares descarregam então mais gelo no oceano, contribuindo para o aumento do nível do mar”, explica Kaitlin Naughten.
O modelo construído pelos cientistas procura estimar cenários futuros considerando diferentes emissões de gases com efeito de estufa, incluindo a limitação o aquecimento global a 1,5 e 2 graus Celsius. Estas previsões simulam o derretimento das plataformas de gelo — e não a subida do nível médio do mar.
“O nosso modelo não simula directamente o aumento do nível do mar, porque não inclui processos do manto gelado, como o fluxo dos glaciares e a queda de neve no manto gelado”, avisa a cientista, numa resposta enviada por email.
Conclusões de um só modelo
Num comentário, publicado nesta mesma edição da Nature Climate Change, o cientista Taimoor Sohail sublinha ainda que o degelo das plataformas é apenas um dos factores relevantes para estimar a subida do mar.
“Este estudo de Naughten e colegas representa o mais abrangente conjunto de projecções futuras de aquecimento no mar de Amundsen realizado até agora. Embora a janela para evitar o degelo da plataforma de gelo na Antárctida ocidental provavelmente já esteja fechada, os verdadeiros impactos das alterações climáticas no nível do mar dependem de uma variedade de factores”, observa Sohail, investigador da Universidade de Nova Gales do Sul, em Sidney, e do Centro Australiano de Excelência em Ciência Antárctida.
O cientista explica na análise que as plataformas de gelo na Antárctida derretem por baixo, quando a água quente e salgada do oceano banha as margens do continente. “Isto significa que as taxas de derretimento do gelo são altamente dependentes dos complexos e variáveis processos oceânicos ao redor da Antárctida”, acrescenta.
Taimoor Sohail também recorda que o estudo apresenta um único modelo para descrever cenários futuros naquela região da Antárctida.
Kaitlin Naughten reconhece esta limitação: “É apenas um modelo: na ciência climática, gostamos de utilizar múltiplos modelos sempre que possível, para aumentar a confiança nos nossos resultados, mas, como somos o primeiro grupo a realizar tais experiências, ainda não temos outros modelos com os quais comparar.”
Esta limitação faz com que outros cientistas, que não estiveram envolvidos no estudo, afirmem a necessidade de haver mais trabalhos sobre o tema.
“As conclusões do trabalho são baseadas num único modelo e precisam de ser tratadas com cautela, pois modelos diferentes e até conjuntos do mesmo modelo podem dar respostas diferentes”, alerta Tiago Segabinazzi Dotto, cientista do Centro Nacional de Oceanografia, em Southampton, no Reino Unido, citado numa nota de imprensa.