Ambientalistas contra subida do IUC nos carros antigos: “nem é transição nem é justa”

Associações Zero e Empregos para o Clima apontam falhas à medida do IUC. Não se pode “martelar uma transição contra a vontade das pessoas, e sobretudo contra a carteira das pessoas”.

Foto
Para a Zero, a solução mais coerente é “a transição progressiva do automóvel privado para o transporte público” Nelson Garrido
Ouça este artigo
00:00
04:59

A subida do IUC para carros anteriores a 2007, a grande bandeira ambiental de Fernando Medina para o OE2024, foi acolhida com desconfiança em toda a linha, da direita à esquerda - incluindo pelos ambientalistas.

“Este aumento do IUC vai duplamente contra aquilo que achamos necessário”, explica Manuel Afonso, activista do Empregos para o Clima, movimento que nos últimos anos tem estudado soluções inclusivas para a transição climática.

Em primeiro lugar, porque “está por provar que tenha um efeito prático na redução de emissões”, já que quem tem automóvel e precise mesmo dele “não o vai usar menos, só vai pagar mais por isso”. Além disso, é “um imposto regressivo”, que penaliza desproporcionalmente as pessoas que têm menos recursos. “Nem é transição, nem é justa”, resume Manuel Afonso.

O problema, contudo, continua por resolver. “A mobilidade é, junto com a energia, o sector com mais emissões no país e onde tem que ser feito um maior esforço de transição”, nota o activista do Empregos para o Clima. Como então penalizar as emissões de carbono? “Mais do que encarar isto como um problema técnico, é preciso dar voz às pessoas”, recomenda Manuel Afonso, dando o exemplo das assembleias cidadãs, que poderiam ser organizadas através das autarquias e freguesias. “Às vezes mais vale uma solução imperfeita escolhida pelas pessoas do que uma solução imperfeita que lhes é imposta” - ainda mais uma “solução tecnocrática que não é solução, como é o caso deste IUC”.

Transporte público em vez de carro privado

Também a associação Zero caracteriza a medida como “socialmente regressiva”, já que estão em causa veículos “mais antigos e de menor valor comercial cujos proprietários, por regra, apresentam rendimentos baixos”, e não existem medidas para equilibrar este impacto desproporcional. Trata-se de uma “medida aplicada de uma maneira cega”, afirma Pedro Nunes, coordenador do grupo de trabalho da Zero sobre energia, clima e mobilidade. “Este imposto como está apresentado precisa de ser completamente reestruturado”, nota o activista.

Mas também o Imposto sobre Veículos (ISV) terá problemas semelhantes: “uma das bases dos dois impostos é a cilindrada, uma componente que não tem tradução em termos ambientais”, explica o especialista em sistemas sustentáveis de energia.

Carros com alta cilindrada podem ter baixas emissões, enquanto outros carros a combustão com cilindradas baixas podem ser autênticas bombas de carbono. Um dos “cavalos de batalha” da Zero é trazer o foco para o critério do peso, que pode ter implicações não apenas em termos de emissões de carbono, mas em termos de segurança rodoviária.

Ainda que se encontre uma fórmula do IUC que seja ambientalmente equilibrada e socialmente justa, como responder às pessoas que não podem abandonar o carro? Pedro Nunes recorda que o OE2024 prevê um incentivo ao abate dos veículos antigos, mas nota que esse modelo assente na mobilidade automóvel é algo que precisa mudar: “não podemos conceber um futuro sustentável em que toda a gente muda o seu automóvel para um carro eléctrico.” Até porque os prazos para cumprir o Acordo de Paris estão a apertar e não há tempo - e, neste momento, nem recursos - para esperar pela reconversão em veículos eléctricos da frota global de centenas de milhões de automóveis. A solução mais coerente, defende, é “a transição progressiva do automóvel privado para o transporte público”.

Soluções para todas as pessoas

Há ainda um problema de (falta de) coerência do OE2024, alerta a associação, nomeadamente no que toca ao desconto de 30% que será feito nas portagens das antigas Scut e algumas auto-estradas do interior. “Estes 72 milhões de euros podiam ser investidos nas soluções de transporte flexível a pedido”, sugere o ambientalista.

Se nas grandes cidades é mais fácil adaptar o sistema de transportes públicos a uma maior intensidade de utilização, nas zonas menos populosas pode ser mais difícil - mas não impossível. Soluções como o transporte flexível a pedido, que garanta alguma cobertura nas zonas com pouca resposta da rede de transporte público de passageiros, poderiam ajudar as pessoas que não podem cortar totalmente no carro.

Manuel Afonso considera que é possível “atacar” as emissões apenas olhando os grandes centros urbanos, “sem tocar no interior”, já que “a imensa maioria das emissões relativas à mobilidade dão-se não só no litoral, mas em particular nas regiões do Porto e de Lisboa”, seja pela mobilidade pendular por causa do trabalho, seja para comércio e serviços.

Há ainda as grandes lacunas da ferrovia, para a qual o activista dá dois exemplos paradigmáticos: Viseu, capital de distrito que não tem uma ligação ferroviária, e Sines, “que tem ferrovia para mercadorias mas não para pessoas”.

Para Manuel Afonso, o anúncio desta subida do IUC como uma “medida ambiental” tem um “efeito pernicioso” que “talvez seja o mais grave de tudo isto”: “passar a mensagem de que a transição climática e ecológica é igual a um peso sobre os mais pobres.”

É preciso abraçar a transição justa como “um desígnio nacional” que compatibiliza as necessidades de emprego, direitos sociais e transição energética, explica o activista. “E isto só se faz com as pessoas, e não contra as pessoas”, sublinha. “Não vamos martelar uma transição contra a vontade das pessoas, e sobretudo contra a carteira das pessoas.”