China: quase sempre a culpada, mas também uma presa fácil

A China infringe muitas vezes a lei e desrespeita regras, mas também se tem tornado vítima de desinformação. Usam-na como “bode expiatório”, mas “a pesca predatória não é um problema apenas da China”.

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Peixes em torno das superiscas no oceano Pacífico Alex Hofford/Greenpeace
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Em 22 de Julho de 2020, um jornalista em Santa Cruz, Equador, pôs uma foto no Twitter (agora X) que pretendia mostrar centenas de navios chineses iluminados pescando ilegalmente perto das ilhas Galápagos numa área protegida. “Presença maciça da frota pesqueira #China” na orla, alertava o tweet, “uma verdadeira cidade flutuante que pesca tudo com as suas redes”.

Uma avalanche de meios de comunicação social veio depois da publicação. Dezenas de órgãos noticiosos publicaram artigos anunciando a chegada da armada chinesa e alertando sobre a ameaça que representava para a biodiversidade no paraíso de Darwin.

“Alarme soa pela descoberta de centenas de navios de pesca chineses perto das ilhas Galápagos”, dizia uma manchete do The Guardian, citando os riscos de “uma das maiores concentrações mundiais de espécies de tubarões”. Uma publicação de um dos maiores jornais do Equador, El Universo, descreveu os navios como uma “frota clandestina”, que, segundo a reportagem, estava a pescar e a matar inadvertidamente a vida marinha, como raias, tartarugas e leões-marinhos. O então Presidente equatoriano, Lenín Moreno, apresentou um protesto a Pequim e prometeu nas redes sociais defender as águas nacionais do seu país.

Mas o tweet não reflectia a realidade. Não houve nenhuma “descoberta”. A frota chinesa visita abertamente a área todos os anos há uma década e a foto na verdade mostrava a frota pescando em águas argentinas, não perto de Galápagos. Além disso, a maioria dos navios eram navios de pesca de lula, que não usam redes de pesca e normalmente não capturam tubarões, intencionalmente ou não, porque as suas linhas não são fortes o suficiente.

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Navios chineses perto das Ilhas Galápagos The Outlaw Ocean Project/Ed Ou

Aproximadamente 13 horas após a publicação original, o repórter que divulgou o tweet de Galápagos publicou uma correcção. O tweet original continuou a circular, no entanto, e na semana seguinte foi repartilhado mais de 2500 vezes. A correcção, por sua vez, foi “​retweetada”​ menos de 60 vezes. A foto com a legenda errada atraiu mais de 10 mil gostos no Facebook e também foi compartilhada no Reddit.

No entanto, não era exagero suspeitar de que havia actividade ilegal a bordo da frota chinesa. A China tem uma reputação bem documentada por violar as leis e acordos internacionais de pesca, intimidar outros navios, invadir o território marítimo de outros países e abusar dos seus trabalhadores pesqueiros. Em 2021, a Iniciativa Global Contra o Crime Organizado Transnacional, um grupo de pesquisa sem fins lucrativos, classificou a China como o maior agente mundial de pesca ilegal.

Mas até mesmo um país que regularmente desrespeita as normas e infringe a lei pode, às vezes, tornar-se vítima de desinformação. Isso é o que parece ter acontecido no caso do tweet de Galápagos. “A maior questão aqui”, disse Daniel Pauly, biólogo marinho da Universidade da Colúmbia Britânica, “é o uso da China como bode expiatório”.

Essa culpabilização gera problemas, continuou Pauly. Quando a China sente que as suas práticas pesqueiras estão a ser retratadas injustamente, diz, o país fica relutante em envolver-se com a comunidade internacional em questões oceânicas. E a China muitas vezes reage acusando os seus acusadores de hipocrisia.

EUA age como polícia mundial, diz China

Mais de um terço das reservas de peixe em todo o mundo foram sobreexploradas, e Chris Costello, professor de Economia de Recursos Naturais da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara (EUA), disse que o Ocidente precisa de ter cuidado ao adoptar uma perspectiva histórica sobre a questão. Acrescentou que muito antes de a China emergir como potência pesqueira dominante, outros países, inclusive no Ocidente, pescaram de forma não sustentável. “Por outras palavras”, disse, “a pesca predatória não é um problema apenas da China”.

Um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China citou exemplos de navios de pesca dos EUA que operam ilegalmente em alto-mar. “Apontar o dedo aos outros enquanto se fecha os olhos às suas próprias violações deixa claro que há dois pesos e duas medidas”, disse o porta-voz em reacção ao anúncio de sanções do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos contra os directores de duas grandes empresas de pesca chinesas, Dalian Ocean Fishing e Pingtan Marine Enterprise. As empresas foram sancionadas em 2022 sob a Lei Global Magnitsky, com base em alegações de trabalho forçado e pesca ilegal por alguns de seus mais de 150 navios. A China viu as sanções como hipocrisia e exagero, uma forma de proteccionismo americano. Os EUA não estão em posição de actuar como “polícia mundial”, disse o porta-voz chinês.

Nas seis semanas após o tweet de Galápagos, mais de 27 meios de comunicação publicaram histórias semelhantes sobre a ameaça a tubarões e outros animais marinhos pelos navios chineses. “Relatos de mais de 300 embarcações chinesas perto de Galápagos a desactivarem sistemas de rastreamento, a alterar nomes de navios e a deixar detritos marinhos são profundamente preocupantes”, “​tweetou”​ Mike Pompeo, então secretário de Estado dos EUA, em 27 de Agosto de 2020. “Apelamos novamente à [República Popular da China] para ser transparente e impor sua própria política de tolerância zero em relação à pesca ilegal.”

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Um tubarão a ser pescado nas águas do Peru Maria Cristina Cely

Fora dos EUA e da União Europeia, outros países também beneficiam dos medos ligados à China, disse Jonathan R. Green, fundador do Projecto Tubarão-Baleia de Galápagos. No Peru e no Equador, os partidos políticos atiram os chineses contra os EUA para obter vantagem. Esses partidos muitas vezes acusam-se mutuamente de serem muito amigáveis com a China ou os EUA. Em negociações comerciais ou acordos de desenvolvimento, por exemplo, funcionários dos partidos dentro dos governos equatoriano e peruano às vezes citam os EUA ou a China como um potencial parceiro alternativo a que podem recorrer se for preciso. Diferentes sectores de pesca nesses países também fazem uso de preocupações geopolíticas ou de preservação em benefício próprio.

Essa é a razão pela qual os tubarões desempenharam um papel tão importante no furor que se seguiu ao tweet de Galápagos. Os maiores culpados pelo declínio do número de tubarões nas águas de Galápagos, explicou Green, não são as embarcações chinesas de pesca de lula, mas os navios equatorianos e peruanos que usam espinel na pesca de atum ou pescadores em traineiras locais que fazem pesca de arrasto. Esses barcos são muito mais numerosos, afirmou, e estão equipados para capturar tubarões e, em muitos casos, os governos locais permitem que ataquem legalmente estes animais.

“Há uma boa razão para que os pescadores de atum no Peru e no Equador sejam frequentemente os que alimentam as manchetes sobre os navios chineses de pesca de lula”, disse. “É uma forma de desviar a atenção.”

Demasiadas barbatanas de tubarão

Ao longo da costa de Tumbes, no Peru, do lado de fora de uma guarita num posto de controlo em Puerto Pizarro, centenas de barbatanas de tubarão foram espalhadas no chão de asfalto para secar ao sol.

Antonio Torres balançou a cabeça, descrente com a quantidade. Torres é responsável pela inspecção das barbatanas de tubarão em nome do Ministério da Produção do Peru, a agência federal que fiscaliza o tráfico de animais silvestres protegidos. “Eram cerca de 300 sacos de barbatanas de tubarão”, disse, sabendo que em cada saco há cerca de 200 tubarões. “A quantidade é grande demais para ser acidental.”

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Barbatanas de tubarão apreendidas Antonio Torres/DR

Os tubarões são uma preocupação porque três quartos das espécies estão ameaçados globalmente de extinção. As águas equatorianas ao redor das ilhas Galápagos têm a maior concentração de tubarões do mundo e são o único local onde se sabe que fêmeas grávidas de tubarões-baleia se reúnem. Os dados de comércio e pesca indicam que a maioria das barbatanas de tubarão que passa por Tumbes vem do Equador, que em 2007 mudou a sua lei para permitir que os pescadores desembarcassem e vendessem barbatanas ou carne de tubarões capturados “acidentalmente” ou por engano, como “captura acidental”. Os pescadores podem ganhar até mil dólares (cerca de 945 euros) por quilo de barbatanas de tubarão vendidas no Leste da Ásia.

Depois de desembarcar no Equador, as barbatanas são normalmente transportadas de camião pela fronteira para o Peru, que está entre os maiores exportadores mundiais de barbatanas, e enviadas principalmente para Hong Kong, onde se consome sopa de barbatana de tubarão. A escala desse comércio é extremamente subestimada, disse Jennifer Jacquet, professora de Estudos Ambientais da Universidade de Nova Iorque. Entre 1979 e 2004, diz, os desembarques de tubarões no continente equatoriano foram estimados em 7 mil toneladas por ano, ou quase meio milhão de tubarões, cerca de 3,6 vezes mais do que os relatados anteriormente pela ONU. Em 2021, essas exportações atingiram um recorde histórico, com 430 toneladas embarcadas, ou o equivalente a mais de 570 mil tubarões mortos.

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Cesar Soto/DR

Muitos desses tubarões são pescados por navios equatorianos nas águas do Equador. Desde 2018, pelo menos 136 navios de pesca equatorianos entraram na reserva das ilhas Galápagos, que cobre mais de 132 mil quilómetros quadrados, segundo o director do parque nacional do arquipélago. Muitos desses capitães de pesca contam com dispositivos de agregação de peixes, mais comummente chamados “superiscas”, que são bóias especiais construídas com destroços de plástico e bambus amarrados com redes velhas.

Para atrair espécies como o atum e o espadarte-azul, as empresas pesqueiras estão a usar cada vez mais superiscas “inteligentes” equipadas com sonar e GPS, que permitem que os capitães dos barcos esperem em terra até serem alertados quando chegar a hora de recolher a sua pesca. Tais iscas são tão eficazes que, em alguns lugares do mundo, os pescadores contratam guardas armados para se sentarem sobre elas ou perto delas para garantir que os concorrentes não as destruam ou roubem os peixes ao seu redor.

O objectivo das superiscas é atrair peixes para um ponto, facilitando a pesca e reduzindo muito o tempo necessário dos barcos no mar. Essas concentrações de peixes, por sua vez, atraem os tubarões, tornando-os mais fáceis de capturar. Às vezes, os capitães até colocam cabeças de cabra como uma isca adicional para os tubarões. Os navios equatorianos adoptam mais superiscas do que qualquer outro país, de acordo com um estudo de 2015 do fundo humanitário Pew Charitable.

Não é de surpreender que os países que capturam tantos tubarões na região tenham achado útil desviar a atenção do mundo para as ameaças que a frota pesqueira chinesa representa para as populações locais de fauna marinha.

Mas neste caso, de acordo com Manolo Yepez, um conservacionista equatoriano que trabalhava no comércio de barbatana de tubarão, a verdade é que os chineses não são o problema. “Podemos vender as barbatanas no mar, barco a barco, aos chineses”, disse durante uma conversa num barco de pesca a quase um quilómetro da costa de Santa Cruz. “Mas nestas águas somos nós, não os chineses, que pescamos os tubarões.”


A escrita e a investigação para este texto receberam contributos de Ian Urbina, Daniel Murphy, Joe Galvin, Maya Martin, Susan Ryan e Austin Brush


Esta reportagem foi produzida pelo The Outlaw Ocean Project, uma organização jornalística sem fins lucrativos com sede em Washington, que tem feito trabalhos relacionados com direitos humanos, questões laborais e problemas ambientais nos oceanos. Este colectivo de jornalistas foi fundado pelo antigo repórter do New York Times Ian Urbina. Para além de divulgado no PÚBLICO, este trabalho foi publicado na revista norte-americana The New Yorker e nos jornais El País (Espanha), Le Monde (França) e Die Zeit (Alemanha)