A comédia e a vida de Luis Miguel Cintra
A actriz Sofia Marques assina um belíssimo documentário sobre um dos maiores actores portugueses, simultaneamente íntimo e expansivo. A não perder no Doclisboa.
Começa por haver uma pergunta: porque é que, numa programação que escolheu ter em concurso o retrato (interessante, sem mais) do compositor de vanguarda romeno Iancu Dumitrescu, Magnificent Sky, de Alexandru Badea, este belíssimo filme de Sofia Marques (já exibido há poucas semanas em Serralves) tem uma única sessão fora de competição no Doclisboa (secção Heart Beat, este domingo às 16h45, Culturgest). O seu sujeito, Luis Miguel Cintra, é figura central no universo fílmico de Manoel de Oliveira, ainda e sempre um dos mais reconhecidos cineastas portugueses, contracenando nos seus filmes com gente como Catherine Deneuve, Claudia Cardinale, Jeanne Moreau ou Michael Lonsdale.
É por isso — e também porque, nestes primeiros dias competitivos, só Nouveau Monde!, da dupla Élisabeth Perceval/Nicolas Klotz, nos conquistou abertamente e sem reservas — que é difícil de entender porque é que Verdade ou Consequência?, que é sem dúvida um dos momentos altos do Doclisboa 2023, não está em competição.
Porque o que aqui se vê é, nitidamente, um filme tão pensado pela sua realizadora como o eram as produções da Cornucópia por Luis Miguel Cintra, “uma nova forma de relacionamento” entre a actriz que tanto aprendeu e o seu mestre de palco, colocado sob o signo de Jean Renoir dirigindo Anna Magnani em A Comédia e a Vida. Uma outra maneira de filmar uma figura que já foi tão filmada, tão fotografada, sobre a qual tanto se escreveu — e talvez só alguém que partilhou com ele o palco conseguisse apanhá-lo deste modo a um tempo vulnerável e confiante, vivendo o pacato ocaso de uma carreira cujo final foi “auto-imposto” à medida que a doença de Parkinson avançou e a Cornucópia encerrou.
Esse pensamento subjaz a um filme onde se cruzam filmagens feitas por Sofia ao longo dos últimos anos com registos de ensaios de algumas das últimas produções da Cornucópia. E que percorre, ao sabor das conversas e das noites, dos encontros e das memórias, imagens e momentos do Cintra “privado” e memórias do Cintra “público”, entre fotografias, provas de contacto, vídeos do YouTube da pianista Alicia de Larrocha ou cenas de filmes menos conhecidos da sua carreira como Em Clandestinidade, de John Malkovich, ou Peixe-Lua, de José Álvaro de Morais. Como quem vai olhando para o passado com exacta noção de tudo o que fez, sem lamentar o que não fez e o que ficou por fazer, reconhecendo sempre a linhagem em que se instala.
O título, Verdade ou Consequência?, é sugestivamente irónico, porque para alguém que admite precisar da libertação do palco para se sentir completo, do prazer do “jogar” que afinal representar é, essa escolha não é um “ou” mas sim um “e”. Não é verdade ou consequência, mas sim verdade e consequência. “A comédia e a vida” do filme de Renoir que Cintra escolheu para o programa de João Bénard da Costa Os Filmes da Minha Vida e que serve de mote ao filme de Sofia Marques não são senão uma e a mesma coisa. O palco é um local de vida, de verdade, para quem nele se aventura, a vida alimenta-se dele tal como o palco se alimenta dela. Não faz sentido separar um do outro e talvez a felicidade deste filme esteja em saber que, para quem dele faz carreira, não há nada que se lhe compare.
Talvez, também, seja esse o motivo pelo qual não era (não é) necessário que este filme siga o percurso tradicional da hagiografia: percebe que um actor sem um palco é alguém de incompleto, de frágil, mas que é também nessa fragilidade que residem as sementes da sua força, da sua graça. Por onde se quiser ver, este é um dos mais belos documentários portugueses recentes, a par por exemplo com o Corpo que Dança de Marco Martins ou o Campo de Tiago Hespanha. Só passa uma vez no Doclisboa, esgotem a sessão.