Um bramido ecoa pela serra da Lousã. A origem revela-se ao longe, à nossa direita, emoldurada pelos galhos de um carvalho: um veado, coroado pelas suas enormes hastes, anuncia com um clamor gutural a época de acasalamento — e uma fêmea, acompanhada por duas jovens crias, aproxima-se vagarosamente dele. Só que outro ruído ao longe, mais eléctrico e agudo, interrompe o ritual neste pinhal que se estende por centenas de hectares. A família de veados debanda então para o coração da floresta. Mas há cada vez menos para onde fugir.
Este é o palco de um imbróglio que opõe madeireiros, uma empresa e uma autarquia e que se arrasta há quase três semanas neste concelho do distrito de Coimbra. Enquanto o tempo passa, o processo já condenou 70 mil metros quadrados de pinhal ao desaparecimento.
A 27 de Setembro, a empresa madeireira Álvaro Matos Bandeira & Filhos, Lda. entrou em terrenos que pertencem a uma empresa de turismo sustentável e regeneração florestal, a Silveira Tech, e à Câmara Municipal da Lousã, e começou a colher a madeira de pinheiros no local. Os proprietários do terreno dizem que nunca autorizaram o corte raso. Mas a empresa assegura que comprou a madeira a donos anteriores e que seguiu os trâmites do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) para a explorar.
A Serra da Lousã é o palco de um imbróglio que se arrasta há quase três semanas e que já condenou 70 mil metros quadrados de pinhal ao desaparecimento.
Tiago Bernardo LopesDepois de um processo de contra-ordenação por abertura de estradas em Rede Natura 200, embargos aos cortes, queixas-crime por furto e providências cautelares, os cortes prosseguem, tal como o PÚBLICO testemunhou no local. Com uma diferença: desde a sexta-feira passada que os terrenos da câmara municipal estão a ser poupados pelos operadores florestais — mas todos os outros não.
Numa reunião com o presidente Luís Antunes, um representante da empresa madeireira pediu à autarquia que lhe indicasse as fronteiras dos terrenos camarários e assegurou que não as atravessaria até que o Ministério Público se pronunciasse sobre a legitimidade das actividades que está a desenvolver naqueles terrenos.
Isso mesmo foi confirmado pelo vereador da área florestal Ricardo Fernandes. “Houve esse assumir por parte do empreiteiro de que não iria entrar em áreas que a câmara municipal identificasse como sua propriedade”, adiantou ao PÚBLICO.
A cronologia de uma história que já dizimou sete hectares de floresta protegida
O ruído que espantou os veados com que o PÚBLICO se cruzou na serra da Lousã foi o mesmo que Manuel Vilhena ouviu a 27 de Setembro, enquanto trabalhava no quartel-general da Silveira Tech. Num dos terrenos que a empresa havia adquirido para reabilitar o espaço verde com espécies autóctones, o director executivo do projecto viu as árvores serem dizimadas por cortes rasos que estão a despir a serra do tapete florestal — o mesmo que a empresa está a tentar recuperar. “Comecei a ouvir movimentações ali, naquele pinhal, numa área que são terrenos nossos e terrenos camarários. Vi que abriram uma estrada e que estavam a cortar árvores lá”, descreveu Manuel Vilhena ao PÚBLICO.
Perante o alerta do empresário, a Guarda Nacional Republicana (GNR) deslocou-se ao local e abriu um processo de contra-ordenação por abertura de estradas em Rede Natura 2000. A máquina utilizada para abrir o caminho continua estacionada no topo de uma montanha, imóvel desde a intervenção das forças de segurança. Mas na segunda-feira seguinte, a 3 de Outubro, o operador florestal utilizou aquela mesma estrada para aceder aos terrenos onde tem explorado o pinhal — alguns da Silveira Tech, outros da câmara municipal.
Foi nessa segunda-feira que a autarquia tomou conhecimento do caso. No dia seguinte, uma equipa técnica deslocou-se ao local durante a manhã e elaborou um relatório que denunciava um início de corte não autorizado numa pequena parte de um terreno camarário.
À tarde, tanto a câmara como a Silveira Tech avançaram com um embargo administrativo. Como esses embargos foram violados logo no dia seguinte, ambas avançaram com queixas-crime por furto do material lenhoso, que foram actualizadas com mais informações na sexta-feira seguinte, 6 de Outubro.
Só que enquanto o Tribunal da Lousã não se pronunciar sobre o caso, nada impede que a empresa acusada continue os cortes. E o resultado está à vista: na Silveira de Cima, não muito longe da sede da Silveira Tech, uma área de sete hectares com cerca de 35% de inclinação continuou a ser alvo de cortes rasos e está quase despida dos pinheiros que a cobriam há mais de 30 anos.
Quase despida porque, mesmo no meio do terreno, um carvalho e alguns arbustos sobreviveram ao abate provocado por uma máquina giratória que, munida de serras, agarra as árvores pelos troncos e arranca-lhes todas as folhas e galhos.
Foi, de resto, o que já aconteceu há dois anos na Colina do Talasnal, uma das Aldeias de Xisto na serra da Lousã. Esta mesma empresa tinha declarado ao ICNF que cortaria 10 hectares de madeira no local, mas quando uma acção popular, impulsionada por quatro associações de moradores da serra da Lousã e um advogado da região, conseguiu suspender o corte, essa área já tinha sido atingida. Desde então, e até agora, 130 hectares foram cortados na serra da Lousã pelos madeireiros na região.
Sobrou “uma costa gigantesca completamente nua”, descreveu o director executivo da Silveira Tech. Desta vez, a empresa madeireira declarou na plataforma Sistema de Informação de Manifesto de Corte (SiCorte) que tencionava cortar 25 hectares. Mas Manuel Vilhena desconfia de que a empresa se prepara para atingir áreas muito superiores: “Passaram ali em cima e agora [será] esta faixa, tudo até lá abaixo, até à estrada nacional.”
É por isso que os queixosos enviaram ao Ministério Público, a 6 de Outubro, um pedido para que ordenasse a suspensão dos cortes — pelo menos até que a legitimidade da actividade nestes terrenos seja verificada pelas autoridades. “Não esquecer que a floresta são seres vivos que não são substituíveis” e “devem ser tomadas todas as medidas na protecção daquilo que é o espaço natural e o espaço ambiental”, apelou Ricardo Fernandes.
“Não é a mesma coisa que arranjar um muro. Não vamos poder pegar estas árvores e voltar a colá-las. Este ciclo acabou. São árvores que estão ali há cerca de 30 anos. Se me perguntarem daqui a quanto tempo é que podemos ter árvores iguais, [digo que] não é daqui a 30 anos. Aquela zona está toda infestada de acácias e a infestante é que vai proliferar.”
O conflito é ainda mais significativo porque a serra da Lousã está sob duas directivas de protecção ambiental: pertence à Rede Natural 2000, criada pela União Europeia para conservar habitats e as espécies selvagens raras, e integra a Reserva Ecológica Nacional, um instrumento na legislação portuguesa que confere protecção especial a áreas de elevado valor ecológico ou expostas a riscos naturais. O enquadramento das áreas que estão a ser alvo de cortes rasos levou a Silveira Tech a enviar para a Comissão Europeia uma denúncia no início da semana passada por entender que o ICNF “não está a gerir as áreas protegidas”.
Enxurradas no Inverno, incêndios no Verão
É que há mais em jogo do que a pertença de um terreno, e Jorge Serra, responsável pela visão estratégica da Silveira Tech, explica porquê. Na serra da Lousã há três tipos de áreas: algumas zonas são de rocha completamente descoberta; noutras regiões, as rochas estão totalmente enterradas no solo; e há áreas em que essa camada de terra tem poucos centímetros de espessura.
As primeiras vítimas são a fauna e a flora da serra da Lousã — dos veados-vermelhos, que foram recuperados neste habitat depois de terem estado extintos no século XIX por acção humana, às águias-de-asa-redonda; dos medronheiros aos sobreiros. Depois, durante o Outono e o Inverno, sem a protecção conferida pelas árvores e com as elevadas inclinações das montanhas na Lousã, toda a terra pode ser arrastada pelas enxurradas e poluir ou mesmo enterrar os ribeiros e os caminhos da água mais abaixo.
As consequências podem chegar assim directamente à população: “Essa água é captada pela empresa intermunicipal para fornecer água às populações locais da Lousã. Portanto, a própria Lousã vai ser afectada”, acrescentou Manuel Vilhena. Mais: se os cortes rasos começarem a ocorrer em altitudes superiores às das aldeias, as enxurradas podem atingir as povoações e condená-las à destruição.
A falta de árvores autóctones vai também abrir espaço à expansão das plantas invasoras, especialmente as acácias. “São piores do que o eucalipto”, alertou José Serra, responsável pela visão estratégica da Silveira Tech. A maior parte das sementes das acácias está no solo inactiva e não consegue brotar sem a tríade de condições perfeitas: água, sol e um solo rico em minerais — mas, “a partir do momento em que aquela árvore desaparece, o sol atinge-a e ela cresce”: “É difícil de controlar porque, quando se tira uma acácia, aparecem logo duas ou três”, descreveu.
Mais tarde, na época dos incêndios, “isto vai ser aqui uma caixa de fósforos brutal”, avisa Manuel Vilhena: “A juntar à outra colina do Talasnal, temos aqui a serra da Lousã completamente desprotegida contra um fogo violento. Vai fazer com que as outras Aldeias de Xisto estejam também em perigo.”
É uma preocupação que Ricardo Fernandes, vereador da Câmara Municipal da Lousã, também partilha. Em entrevista ao PÚBLICO, o responsável pela pasta dos recursos naturais admite que o facto de os terrenos camarários já estarem a ser poupados aos cortes das árvores não abranda as reservas sobre as actividades que continuam a decorrer das áreas vizinhas.
“Foi respeitado o embargo na área, na propriedade da câmara municipal. Mas entendemos por bem que seria importante suspender todo e qualquer corte de raso naquela zona até serem apuradas todas as dúvidas que subsistem", defende o autarca.“Era muito importante, para preservar aquilo que é uma área também bastante importante da serra da Lousã, que essa suspensão fosse de alguma forma concretizada.”
De resto, a autarquia defende que esta tipologia de cortes rasos devia ser analisada caso a caso quando os terrenos estão incluídas em estatutos especiais de conservação: “Os cortes rasos são uma operação florestal perfeitamente corrente, mas em certos casos têm impactos bastante perniciosos, bastante negativos sobre o espaço natural. É o caso aqui", considerou.
"Na prática, qualquer um pode cortar árvores do Parque Eduardo VII”
O PÚBLICO tentou falar com os representantes da Álvaro Matos Bandeira & Filhos, Lda. para obter mais explicações sobre as raízes deste caso, mas sem sucesso. A primeira e única resposta por parte da empresa chegou por correio electrónico a 13 de Outubro, quando Álvaro Bandeira informou que estaria a caminho da Lousã para se reunir com executivo da câmara municipal e que prestaria declarações depois do encontro. Mas, apesar das múltiplas tentativas de contacto, isso nunca aconteceu.
Ao que o PÚBLICO conseguiu apurar, a Álvaro Matos Bandeira & Filhos, Lda. argumenta que comprou a madeira (mas não os terrenos) a outro operador florestal, a Comércio de Madeiras de Poiares Lda., gerida por Paulo António Jorge — que, por sua vez, terá adquirido o material a proprietários privados há cerca de 10 anos. Também tentámos falar com esta empresa madeireira através dos contactos disponibilizados na Internet, mas sem sucesso.
Certo é que, entretanto, os terrenos têm novos proprietários: pouco mais de metade dos 230 hectares em torno da aldeia da Cerdeira, no coração da serra da Lousã, pertencem agora à Silveira Tech. A outra grande parte é da Câmara Municipal da Lousã e algumas áreas estão na mão de outros donos. No momento da escritura dos terrenos, “não houve nenhuma ressalva em como se estava a comprar o terreno, mas as árvores já tinham sido vendidas”, assegurou Manuel Vilhena: “Nós não fazemos uma escritura para as árvores e uma escritura dos terrenos. Os terrenos vêm com as árvores.”
Manuel Vilhena admite que, “no limite, pode ser até que o madeireiro seja vítima de alguma coisa, no sentido em ter comprado uma coisa a alguém que não tinha o direito de vender”. Mas enquanto essa documentação é analisada na justiça, “o corte devia ficar suspenso”.
“Consideramos que isto é um atentado, não é só à nossa propriedade, mas à própria serra. É um atentado ecológico e paisagístico."
Em explicações prestadas anteriormente pelo operador florestal ao PÚBLICO, o gerente António Bandeira diz ter em sua posse uma escritura que comprova a venda, por parte da Câmara da Lousã, dos terrenos no Casal da Silveira em Maio de 1933; a subsequente compra da madeira a privados e os documentos que legitimam o corte mesmo nos terrenos que não pertencem à empresa.
Um desses documentos é um manifesto de corte de árvores que qualquer pessoa deve submeter no SiCorte para informar as autoridades de que tenciona explorar uma zona florestal. A plataforma pede ao operador florestal que indique o tipo de flora que pretende explorar, a área que vai atingir e o destino final do material lenhoso, por exemplo.
O ICNF, responsável por este serviço, já confirmou que a Álvaro Matos Bandeira & Filhos, Lda. submeteu um manifesto de corte final de povoamento adulto de pinheiro-bravo tal como exigido na lei; e que as duas fiscalizações no local — a 4 e a 5 de Outubro — confirmaram “a legalidade da intervenção”.
Mas o instituto também já esclareceu que “o manifesto de corte de árvores não configura uma autorização para o corte de material lenhoso: tem como objectivo permitir a identificação da origem e a rastreabilidade da madeira introduzida no mercado”. Em momento algum é exigido um documento que confirme que o operador florestal é dono daquelas árvores ou que recebeu autorização expressa do proprietário para explorar os terrenos. E, no fim do processo, não lhe é emitida uma autorização pelas autoridades de gestão florestal para prosseguir com os trabalhos.
Essa é uma das maiores críticas tecidas pela Câmara Municipal da Lousã e pela Silveira Tech. “Não estou a dizer que é responsabilidade ou não do empreiteiro”, ressalvou o vereador Ricardo Fernandes: “Estou a referir que é possível continuar a cortar área onde, neste momento, se ponha em causa de quem será a propriedade. Isso é que entendemos que não é correcto.”
É o mesmo sentimento que os fundadores da Silveira Tech expressam: “Nós não temos nada contra o madeireiro. Temos contra todo o processo e todo o sistema que está montado e que permite que isto aconteça”, disse José Serra, acrescentando: “Na prática, qualquer um pode fazer um manifesto de corte para cortar as árvores do Parque Eduardo VII porque ninguém vai dar por isso.”
Questionados sobre quais são os próximos passos no plano para tentar travar o abate de árvores na Lousã, Manuel Vilhena diz que pretende muito mais do que chamar a atenção para o que se passa naquela serra: a petição lançada na semana passada pelo empresário — dirigida ao Governo, ao Presidente da República e ao presidente da Assembleia da República — inclui sugestões como o impedimento de utilizar estradas abertas ilegalmente e o fortalecimento das competências de fiscalização do ICNF. “Queremos pelo menos, se não conseguirmos impedir o que está a acontecer aqui no nosso terreno, conseguir impedir que isto se volte a verificar em qualquer outra área protegida do país”, concluiu.