Amnistia a treinador condenado por assédio sexual gera revolta

Sindicato dos Jogadores considera “absolutamente inaceitável” a fundamentação do Tribunal Arbitral do Desporto que levantou suspensão ao treinador Miguel Afonso.

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Os casos de assédio sexual em questão aconteceram no Famalicão DR
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Menos de um ano depois de ter sido condenado pelo Conselho de Disciplina (CD) da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) a 35 meses de suspensão por assédio sexual, o treinador Miguel Afonso beneficiou da amnistia papal e pode voltar ao activo. Quem assim decidiu foi o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), o mesmo que a 10 de Julho tinha confirmado a pena do órgão disciplinar federativo. Sindicato dos Jogadores foi surpreendido e qualifica a decisão como “juridicamente errada e com fundamentação absolutamente inaceitável”.

O Colégio Arbitral do TAD considerou, com dois votos a favor e um contra, que a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, vulgarmente denominada Lei da Amnistia, abrange as infracções pelas quais foi condenado Miguel Afonso e que foram agora “declaradas extintas”. Uma posição que não convenceu Maria de Fátima Ribeiro, a árbitra indicada pela FPF, que deixou uma declaração de voto.

Os dois restantes elementos do colégio de árbitros – presidido pelo advogado Carlos Lopes Ribeiro, antigo presidente da Associação de Futebol de Lisboa – entenderam que Miguel Afonso não foi condenado pela justiça civil (que arquivou o caso, ao contrário da desportiva), o que o tornaria elegível para beneficiar da amnistia, originada pela visita do Papa Francisco por ocasião da Jornada Mundial da Juventude.

“A lei em causa é extremamente clara ao dizer que no âmbito dos crimes contra as pessoas não beneficiam os condenados: por outras palavras, só não beneficiam da amnistia ou perdão ‘OS CONDENADOS’ por determinados crimes”, justifica-se no despacho do TAD de 18 de Outubro, a que o PÚBLICO teve acesso.

Interpretação bem diferente teve a jurista e professora universitária Maria de Fátima Ribeiro, para quem a lei em causa, que entrou em vigor a 1 de Setembro, “abrange quer os ilícitos penais, quer as sanções acessórias relativas a contra-ordenações”, assim como “as sanções relativas a infracções disciplinares e infracções disciplinares militares”.

Na sua declaração de voto, a jurista defende que os factos que levaram à aplicação da sanção disciplinar que são “passíveis de integrar um ilícito criminal não amnistiado” não podem estar abrangidos pela amnistia, como acontece no caso concreto de Miguel Afonso, condenado por crimes “contra a liberdade e a autodeterminação sexual”, previstos nos artigos 163.º a 176.º-B do Código Penal.

“Ligeireza e insensibilidade”

A mesma posição tem o Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol (SJPF), que admitiu ao PÚBLICO ter sido surpreendido com a decisão do TAD. “Foi com estupefacção que constatámos a ligeireza e insensibilidade demonstrada pelo TAD”, referiu Joaquim Evangelista, presidente do organismo. “Trata-se de uma decisão que gera maior intranquilidade no desporto, sobretudo no futebol feminino”, sublinhou, reafirmando que o SJPF estará sempre ao lado das vítimas que apresentaram queixas “sustentadas em provas irrefutáveis”.

“É mais um dia triste para o desporto em geral e para o futebol em particular que tem a obrigação de zelar pelas vítimas”, reforçou Evangelista: “Esta decisão não contribui para que outras vítimas façam futuras queixas e fica um sentimento de impunidade no ar.”

O processo que levou à condenação de Miguel Afonso pelo CD da FPF foi levantado depois de o PÚBLICO divulgar as denúncias documentadas de várias jovens futebolistas do Rio Ave a acusarem Miguel Afonso de assédio sexual. Um dia depois, a FPF abriu um processo disciplinar urgente ao técnico, suspendendo-o preventivamente e anunciando, em simultâneo, a criação de uma equipa especial, inserida no Conselho de Disciplina do organismo, para investigar com celeridade processos instaurados na sequência de denúncias de assédio.

No mesmo dia, várias antigas jogadoras do Rio Ave e de outros clubes, que foram treinadas pelo mesmo treinador, formalizaram queixas por assédio sexual, através do Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol, na FPF e na Polícia Judiciária. Por seu lado, o técnico – que também foi suspenso pelo Famalicão (clube que treinava a altura), “por mútuo acordo” – negou todas as acusações, descrevendo-as como um “esquema” do qual se iria defender nas instâncias próprias.

Uma tese que não vingaria junto da FPF. No início de Novembro de 2022, após ouvir as atletas queixosas e ter acesso às mensagens trocadas entre o treinador e as jogadoras, o CD suspendeu Miguel Afonso por 35 meses e aplicou-lhe uma multa de 5100 euros. O técnico seria punido pela prática de cinco infracções “muito graves”, previstas e sancionadas no artigo 125.º, n.º1, do Regulamento Disciplinar, referente a “comportamento discriminatório”, que prevê uma suspensão de três meses a três anos.

Em paralelo, o CD sancionou ainda Samuel Costa, que exercia funções de director desportivo na estrutura de futebol feminino do Famalicão – onde foi suspenso a 1 de Outubro –, e que foi igualmente acusado de assédio por antigas futebolistas do Vitória de Guimarães na temporada 2020-21. Este ex-dirigente foi suspenso por um ano e meio, com uma multa acessória de 3.060 euros, por três infracções disciplinares “muito graves”, mas acabou também por ser amnistiado.

No seguimento destas sanções desportivas e das queixas que recebeu, o Ministério Público (MP) confirmou também a abertura de um inquérito às suspeitas de assédio que recaiam sobre Miguel Afonso. Mas, neste caso, o desfecho seria outro. O inquérito seria arquivado em Março de 2023 por falta de provas

De acordo com o despacho final, a que o jornal Expresso teve acesso, apenas uma jogadora, menor à data dos acontecimentos, tinha sido identificada pelo MP, tendo negado qualquer tentativa de assédio. “Não só não foram recolhidos indícios suficientes da prática de qualquer crime da parte do denunciado como até foi recolhida prova suficiente da sua inexistência”, refere o documento.

Sancionados pela justiça desportiva, Miguel Afonso recorreu para o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), que manteve integralmente as sanções do CD da FPF, em Julho deste ano.

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