No Doclisboa há mulheres à beira de ataques que já não são de nervos

Clandestina, Tzipora and Rachel Are Dead e Chutzpah são três obras a concurso, de mulheres, sobre mulheres, que apostam em mostrar o que não se costuma ver.

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, de Maria Mire, tem como ponto de partida as memórias da clandestinidade de Margarida Tengarrinha dr
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O que Margarida Tengarrinha viveu durante o regime salazarista, a realizadora ilustra como se se estivesse a passar nos nossos dias dr
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Para falar do que significa a palavra “documentário” nos nossos dias, temos de passar inevitavelmente pelas transgressões à ideia clássica do que é filmar o real que têm vindo a emergir nos últimos anos, e perceber que por vezes é contornando-a que atingimos a sua essência. A questão, nesse processo, transforma-se: a essência que se descobre era aquela que a autor procurava, ou a câmara revelou inadvertidamente outras coisas? Um questionamento que parece espelhar os primeiros filmes que vimos a concurso no Doclisboa 2023, e o modo como se concentram em figuras femininas.

Talvez o mais paradoxal dos casos seja o de Clandestina (Competição Portuguesa, São Jorge, domingo 22, 21h30, e sexta 27, 14h), de Maria Mire, longa-metragem frágil e muito autoconsciente da sua carga teórica. O ponto de partida são as memórias da clandestinidade de Margarida Tengarrinha durante o regime salazarista, que a realizadora ilustra como se se estivessem a passar nos nossos dias: ouvimos em voz-off falar de xilogravuras, materiais de fotografia, selos brancos, mas os actores que vemos na imagem trabalham com computadores, discos rígidos, passaportes electrónicos.

O anacronismo assim construído pretende transportar a dimensão política da clandestinidade dos anos 1950 e 1960 para um possível equivalente contemporâneo; mas, mais do que isso, constrói uma metáfora que pode estar a falar da solidão feminina numa sociedade que apesar das promessas se mantém patriarcal, da clandestinidade como uma submissão a uma rotina imutável não tão diferente do mundo normal ou como uma alegoria da pandemia que passámos fechados em casa. Clandestina acaba por ser bem mais estimulante como dispositivo aberto às leituras do espectador.

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Tzipora and Rachel Are Not Dead da israelita Hadar Morag, que trabalhou sobre 16 anos de imagens registadas por Tahel Ran das suas relações com a irmã Tzipora, que sofre de um distúrbio psiquiátrico

É precisamente essa abertura à leitura do espectador que problematiza Tzipora and Rachel Are Not Dead (Competição Internacional, Ideal, sábado 21, 22h, e São Jorge, quarta 25, 17h), da israelita Hadar Morag, que trabalhou sobre 16 anos de imagens registadas por Tahel Ran das suas relações com a irmã Tzipora, que sofre de um distúrbio psiquiátrico que nunca é inteiramente explicado e passou a maior parte da sua vida internada.

Morag não contextualiza nunca o que estamos a ver: a cronologia parece-nos linear, a identidade e o passado das duas irmãs vai sendo preenchido ao longo do filme, mas fica sempre muito (quando não tudo) por dizer. E tudo o que vemos provém, quase inteiramente, do olhar de Tahel, que Tzipora revela a espaços ter também estado internada, lançando uma enorme zona de dúvida sobre tudo o que nos está a ser contado: em quem acreditar? Em Tahel, que parece ter-se libertado de uma doentia dependência mas que não é forçosamente uma narradora fiável, ou em Tzipora, cuja veemência em denunciar o modo como a irmã a trata parece ultrapassar qualquer diagnóstico? E como entender este filme sobre a doença mental que expõe de modo extraordinariamente aberto imagens do foro privado, assumindo o desconforto que significa mostrar aquilo de que as famílias costumam ter vergonha?

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Chutzpah, Qualcosa sul Pudore, da italiana Monica Stambrin

Já que estamos a falar de vergonha, está aí o centro de Chutzpah, Qualcosa sul Pudore (Competição Internacional, Ideal, domingo 22, 18h, e Culturgest, terça 24, 11h), da italiana Monica Stambrini. “Pudor” é precisamente o que a realizadora parece não ter: vemo-la a tomar banho, a beber champanhe, a beijar homens, a gravar sub-repticiamente as suas sessões de psicanálise. Tudo isto numa compulsão de auto-compreensão que Stambrini, filha do amor livre dos anos 1960, atribui à recente separação do seu marido, resultando numa colagem diarística que debate abertamente as fronteiras da privacidade num mundo onde tudo é imagem e tudo é passível de ser público. “Não tenho grande respeito pela minha privacidade,” diz ela às tantas, “porque assim, com tudo à vista, não tenho de me defender de nada.” É uma opção tão válida como qualquer outra, mas não é menos desconfortável nem menos problemática do que Hadar Morag nos mostrara — e perguntamo-nos, às tantas, se era algo procurado pelas cineastas ou se não passa de uma consequência inesperada.

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