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Apesar da boa vontade em criar a RTCP, parecem existir algumas lacunas, tanto no acesso por parte de artistas e públicos, como na sua efetiva implementação por todo o território nacional.

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A criação, em Setembro de 2019, da muito aguardada Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses (RTCP) e a sua efetiva implementação, em Agosto de 2021, veio dar um novo fôlego ao setor das artes performativas, permitindo melhores condições de serviço público no acesso à cultura e às artes. Atualmente, são 94 os equipamentos culturais credenciados, dotados de condições financeiras para programar atividades artísticas de forma regular e continuada. Estes equipamentos culturais viram também as suas equipas reforçadas nas áreas da direção artística/programação, coordenação e apoio técnico, produção, comunicação e mediação, sendo a existência destas equipas um dos requisitos de credenciação. Para isso, foi ainda disponibilizada, pela Direção-Geral das Artes (DGArtes), formação técnica gratuita para a requalificação dos recursos humanos, dando primazia às equipas residentes dos equipamentos.

No entanto, e apesar da boa vontade em criar a RTCP, parecem existir algumas lacunas, tanto no acesso por parte de artistas e públicos, como na sua efetiva implementação por todo o território nacional. Ao analisarmos o recentemente publicado Relatório Anual da RTCP, confirma-se a existência destes recursos humanos nos 94 teatros e equipamentos culturais. No entanto, se acedermos ao sítio da Internet da RTCP, não existe qualquer informação sobre estas equipas, remetendo-nos para o website da entidade, que muitas vezes é uma página de um município ou a página de uma rede social. Assim, no caso de artistas ou estruturas de criação quererem enviar uma proposta para estes teatros, quem deverão contactar? Não deveriam estes contactos ser públicos e acessíveis, numa Rede que se define ela própria como uma referência na acessibilidade, na descentralização e no combate às assimetrias regionais? Onde estão as 94 direções artísticas? Ou, indo mais longe, existem 94 direções artísticas? Se sim, esta é uma informação que está longe de ser pública.

As direções artísticas são importantes e foram pensadas para que a programação de um espaço não fique à revelia de uma vereação da cultura ou de um executivo municipal, autonomizando a programação de um poder político que raramente se interessa por este trabalho e que, na maioria das vezes, não está preparado nem qualificado para o fazer. Uma reflexão há muito identificada, também pelo atual diretor-Geral das Artes, em, Quatro Ensaios à Boca de Cena: Muitas vezes, como não há directores artísticos (o que deveria ser uma obrigação), a ‘programação’ do espaço fica à responsabilidade de um vereador da cultura, cujos únicos critérios são saber se o espaço está disponível e se o ‘artista’ é conhecido da televisão.”

O que decorre daqui, no que respeita ao acolhimento de projetos artísticos, é a aparente aleatoriedade no que respeita ao pensamento e desejo que cada teatro pretende imprimir no território onde se inscreve, e um vazio sobre o modo de colaboração com outros teatros, um dos grandes objetivos desta Rede. Acresce o facto de a RTCP tender para um sistema de participação que inclui projetos apoiados pela DGArtes e filmes apoiados pelo ICA, imprimindo uma espécie de selo de qualidade a estes projetos. No entanto, ao privilegiar estruturas apoiadas – o que seria um bom princípio para uma maior circulação na Rede –, este processo de escolha continua a menorizar projetos pontuais e estruturas sem acesso aos apoios da DGArtes. Não podemos esquecer as mais de 600 candidaturas que ficaram de fora do último concurso de apoio pontual à criação. Não terão estes projetos oportunidade de integrar a Rede? Daí salientar-se a importância de uma rede que seja efetiva no seu acesso.

Embora seja evidente na portaria da RTCP que a programação terá de incidir numa visão artística pluridisciplinar (artes performativas, artes visuais, cinema e audiovisual), já os critérios de programação acolhimento de artistas e estruturas locais; apoio a criações de artistas emergentes (note-se a indefinição do conceito); realização de residências artísticas; exibição cinematográfica nacional; acolhimento de obras apoiadas pela DGArtes; coprodução de obras originais –, apresentando-se claros na sua formulação, revelam-se confusos no seu modo de execução. Por exemplo, enquanto há uma percentagem de quotas para determinados critérios, há indeterminação para outros. Ou seja, ou a Rede serve como um espaço de circulação vivo e atento à cada vez maior profusão de trabalhos artísticos, ou ficará a existir num modelo endogâmico e tecnocrata que reduz e afunila a diversidade de olhares sobre a criação artística, impedindo uma maior democratização cultural.

Numa altura em que se questionam os próprios modelos das direções artísticas, veja-se o exemplo da liderança bicéfala no Rivoli, que põem em causa a figura todo-poderosa do programador, como aquele que favorece amiguismos e subjectividades difíceis de contornar, ou aquele que se perpetua no cargo ad aeternum, definindo, boicotando e cristalizando percursos artísticos, porque não a Rede ser potenciadora da criação de outros modelos e de outras possibilidades de gestão de teatros e equipamento culturais? Mesmo não tendo certezas absolutas sobre o melhor modelo possível, não deveria a Rede contribuir também para ampliar relações de poder, permitindo aos artistas não ficarem reféns das boas relações que tenham com as direções artísticas?

A RTCP prevê também a mediação cultural como um elo de ligação com os públicos, permitindo um trabalho continuado e regular no território, mas o facto é que muitos destes teatros credenciados não têm ainda uma equipa de mediação. É caso para insistir na questão onde estão as 94 mediações culturais?

Estas múltiplas ausências têm consequências no desenvolvimento de públicos e no potencial que se aspirava dentro da Rede e para a qual muito contribuíram artistas, estruturas e associações representativas do setor. A Rede deveria incluir uma ideia de risco e experimentação em todo o território, propondo uma oferta cultural e artística pluridisciplinar, dando espaço e lugar a todas as práticas artísticas, mas isto não se verifica. Numa pesquisa exaustiva à programação de cada teatro credenciado, encontramos, por exemplo nas áreas da música ou da dança contemporânea, a resposta “sem eventos nesta categoria”.

Se voltarmos ao Relatório Anual da RTCP, no que se refere à avaliação efetuada pela comissão de acompanhamento, a execução orçamental da maioria dos teatros surge como “não foi possível de ser verificada”. Não deixa de ser relevante que um projeto que implica um financiamento de 10 milhões de euros para o novo concurso de apoio 2024-2027 (e um valor total acima dos 29 milhões de euros, desde o início do seu financiamento) tenha um historial em que não se consegue perceber o alcance e a transparência na execução destes montantes. Estes dados tornam-se ainda mais relevantes, porque, para além de a comissão não ter conseguido acompanhar todos os teatros financiados até à data (constam apenas 15 no relatório), uma vez que só esteve em funções durante quatro meses, estes montantes de apoio à programação existem para o teatro ou cineteatro poderem executar o plano de atividades para o qual tiveram financiamento específico, através do concurso de apoio à programação da RTCP, promovido pela DGArtes.

Quanto à comissão de acompanhamento, a mesma foi suspensa em 31 de Dezembro de 2022, com a promessa de ser reativada em breve. A RTCP tem o potencial de transformar modos de criar, operar e produzir, e em territórios tradicionalmente excluídos da criação artística, mas pretende-se uma clarificação das suas regras e uma efetiva aplicação dos seus critérios. Como alguém disse, uma rede é uma coleção de buracos.

Os autores escrevem segundo o novo AO.

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