Em São Tomé e Príncipe, há uma onda de surfistas a mudar o significado de ser mulher

As SOMA são a organização portuguesa que está a usar a terapia do surf, a educação e a emancipação feminina para criar igualdade de género num dos países mais desiguais do mundo.

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A SOMA já formou 90 raparigas SSTK Studios
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— Olá, sabes onde vive a Neizy?
— A que faz surf?
— Sim.
— Vai por aqui abaixo e pergunta pela casa do Óscar.

Passinho a passinho, com cuidado para não escorregar, depois da chuvada desta manhã, Rita Xavier e Matilde Pinho seguem o caminho lamacento que, com a ajuda das indicações dos vizinhos, nos há-de levar ao portão de Neizy. Quem o abre é a mãe, que convida a atravessar o quintal até à casa de madeira, como praticamente todas as outras desta vila de Santana, em São Tomé e Príncipe.

Rita e Matilde vêm fazer uma proposta a Neizy (ou aos pais): entrar nas SOMA (Surfistas Orgulhosas na Mulher d’África), o que, na prática, significa dedicar menos tempo ao trabalho doméstico, e mais tempo às aulas de surf, de apoio ao estudo, de psicoeducação e de emancipação feminina. Não é uma ideia propriamente atraente, num país que ocupa o 138.º lugar em 191 no índice de desigualdade de género das Nações Unidas, onde as mulheres vivem essencialmente para as tarefas de casa e apenas uma pequena parte termina o ensino secundário. Também por isso é especial que perguntem à Rita se se refere à Neizy do surf, uma característica que lhe confere personalidade, num sítio onde as mulheres nem sempre são encorajadas a tê-la.

A família de Neizy não representa a situação tradicional, diz-nos logo o facto de o pai abandonar a conversa e deixar a mãe a resolver — e a assinar — a autorização para a filha frequentar as actividades da organização. Ao lado estão os irmãos de Neizy. “A mais velha ainda não pode ir, tem de ficar a tomar conta dos irmãos. Talvez para o ano...”, justifica a mãe.

A ideia das SOMA é que 40 raparigas com idades entre os dez e os 18 anos frequentem as actividades antes ou depois da escola. No caso de Neizy, que tem aulas de tarde, deve ir para as SOMA todos os dias de manhã, excepto à quarta-feira, dia em que não há actividades. Em contrapartida, e se não faltar mais do que o número de vezes permitido, a organização oferece, a partir deste ano lectivo, o lanche, o pagamento da propina da escola e o material escolar, por exemplo.

Foi em 2019, de forma “não tão planeada” como Francisca Sequeira gostaria, que esta organização nasceu. Numa altura de pandemia e muitas turbulências pessoais e profissionais, a antiga assistente de bordo decidiu reconciliar-se com o surf, um desporto que praticava no início da adolescência, mas que agora encarava como terapia. Já tinha visitado São Tomé e Príncipe e só se lembrava de ter visto “rapazes a brincar na rua e a surfar”; por isso, quando comprou a viagem de dez dias e levou a prancha consigo, já tinha na cabeça a ideia de “ensinar algumas raparigas a surfar”.

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Soma Collection Shutterstock Photography by Ana Catarina

“Apresentei-me no clube de surf e disse que queria convidar algumas raparigas. Fomos bater à porta de algumas casas e, na altura, não tive muita dificuldade em que elas viessem. Organizei um dia com carrinha e lanche e a Joana Andrade, que veio comigo, deu a aula. Reunimos cerca de 20 raparigas. E, depois dos dez dias, senti: OK, eu vou voltar”, recorda a presidente e fundadora das SOMA.

Foi voltando sempre que podia, e o projecto começou a ganhar corpo. Hoje em dia, conta 90 raparigas formadas. Criaram-se laços com a comunidade e assim tornou-se mais fácil sinalizar raparigas em situações mais vulneráveis e trazê-las para o mar — e para a educação. Rapidamente deixou de ser “só” o surf, para se tornar algo com outras valências, mas também desafios. “Começámos também a perceber que a comunidade nos recebia de braços abertos e pedia para os filhos participarem nas SOMA. No entanto, não era uma prioridade, porque achavam que era quase um espaço de tempo livre. Não percebiam o impacto directo na vida destas raparigas. Alguns viam que o apoio escolar fazia com que elas tivessem melhores notas, mas uma filha passar no teste de Matemática não era suficiente para uma mãe passar a assumir mais tarefas em casa”, explica Francisca Sequeira.

Esta espécie de “moeda de troca” é particularmente importante em negociações como a do pai de Jéssica. Chegámos a esta casa numa altura em que é precisamente a rapariga de 17 anos que está encarregada das lides: a mãe está na cidade durante três dias, a acompanhar uma irmã que adoeceu. Enquanto Jéssica se dedica a um balde de loiça (e acaba por desaparecer), Francisca está a tentar convencer o pai, Caíto, a libertá-la de algumas tarefas para que possa ir para as SOMA. E a encontrar resistência por parte deste pai, que considera crucial que a filha fique em casa.

“Ela precisa de estudar para ter trabalho e conseguir ajudar”, argumenta Francisca. É que, se Jéssica for, “quem vai fazer o trabalho em casa?”, riposta o pai. O irmão de Jéssica tenta ajudar: “Ela vai ter a animação de querer ir para as SOMA e vai fazer as tarefas mais cedo”, atira. Mas Francisca alerta: “Se ela não terminar a tarefa, tem na mesma de ir e termina depois. Não há mais alguém que possa ajudar? O pai não pode ajudar?” A resposta é peremptória: “Eu estou a trabalhar para ela ter estudo. Porque é que um homem quer uma mulher em casa? O direito da mulher é organizar a casa.”

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Antes de sair com uma autorização assinada, Francisca ainda terá que debater, racionalizar, argumentar. Mas a permissão acaba por ser dada e o compromisso é feito. A partir de agora, todas as quartas-feiras, virá um voluntário a esta casa fazer um ponto de situação e, provavelmente, novas negociações. “Vamos falando…”

A "transformação inacreditável" do conceito de mulher

Enquanto este trabalho de terreno acontece, há mais voluntários na “casa das SOMA” a dar apoio (ou simplesmente atenção) às crianças que por lá aparecem. É isto que as SOMA são e querem continuar a ser: um espaço seguro, onde se pode simplesmente ir, quer para brincar, quer para aprender.

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Francisca Sequeira é a fundadora Eduardo Vento

São três pequenos quartos pintados de verde que servem essencialmente para guardar pranchas. Lá dentro, há música — como em quase todos os cantos desta vila —, tentativas de equilibrismo numa prancha colocada em cima de um cilindro, conversas e organização de logística entre os voluntários.

Uns metros acima, numa outra casa, há uma sala de apoio ao estudo. Lápis de cera, imagens para colorir, desenhos, glossários sobre igualdade de género, regras e três palavras coladas na parede: Raiva, Alegria, Medo. Três emoções primárias, nem sempre são identificáveis. “Muitas meninas chegam sem saber o que é isso. Só 15% das raparigas conseguiam identificar emoções básicas”, refere Francisca Sequeira, que todos os anos faz medições com as jovens intervencionadas para avaliar o impacto do programa.

“Se lhes perguntamos se gostam mais de mar ou rio, é muito difícil para elas responderem. Não estão habituadas a que alguém faça uma pergunta sobre elas.” E também não é fácil falar com estas raparigas sem estabelecer uma relação de alguma confiança primeiro. A timidez leva-as a responder com acenos, “sim ou não”, a nem olhar muito nos olhos.

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Uma delas escreve, com a letra redondinha de uma criança, o que significam as SOMA para si: “É um lugar muito bom onde conhecemos muitas pessoas novas, aprendemos que somos corajosas, ‘empoderadas’ e que temos os mesmos direitos que os homens.” Uma mensagem demonstrativa da “transformação inacreditável” da opinião das raparigas em relação ao papel da mulher na sociedade, que se vai conseguindo auferir nas perguntas de resposta aberta destas medições.

“Tínhamos uma rapariga que não queria que o irmão fosse ao rio lavar a roupa, porque isso iria revelar que ela não era mulher para casar, não era útil. Hoje já diz que não tem de lavar a roupa do irmão e que não é isso que vai colocar o seu valor em causa”, conta Francisca. E se, no início das SOMA, as raparigas acreditavam que, “se houvesse motivo para tal”, um homem poderia ser fisicamente violento com uma mulher, actualmente “70% dizem que não é aceitável um homem usar a violência”. Antes das SOMA, 65% das raparigas acreditavam que tinham de fazer as tarefas domésticas e cuidar dos filhos sozinhas, hoje em dia apenas 23% concordam com essa ideia.

Com “debate e questões” vai-se desconstruindo aos poucos uma realidade. Mas é preciso ter cuidado ao “abrir a caixa de Pandora”: “Temos de fazer isto de forma estruturada emocionalmente, para que elas não tenham uma revolta muito grande. Para que não pensem que viveram assim a vida inteira e que ninguém lhes disse”, alerta Francisca. E ainda para não criar “ruptura com as famílias”, que não estão certamente preparadas para que as filhas cheguem um dia a casa e digam que afinal não lavam a roupa dos irmãos.

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Por saber disto, as SOMA vão começar em Janeiro um programa de parentalidade positiva. Dar formação aos pais para que eles entendam que “não é só pelo pagamento das propinas ou do material escolar que é importante elas virem”, mas também para trabalhar com os pais para encontrar divisões de tarefas e compromissos mais favoráveis. “Irmos, lentamente, mudando rotinas.”

O que já faz parte da rotina é o surf, e chegou a hora de ir para o mar. À porta da “casa das SOMA” há sempre movimento, mas agora há grupinhos a brincar, a entrançar cabelos, a apanhar peixes, a transportar pranchas. Na porta, há um aviso: amanhã é o dia da estreia do filme onde estas raparigas são as estrelas.

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A Betclic, as SOMA e a Shutterstock fizeram nascer um documentário e uma colecção de imagens e vídeos destas surfistas, depois de terem percebido que não existiam imagens de mulheres negras a surfar em nenhum banco de imagens online. Mais uma prova da invisibilidade com que as SOMA querem acabar.

Mas, aqui e agora, toda a gente as está a ver a subir para o camião de caixa aberta que as irá levar à praia das Sete Ondas. Os rapazes ficam para trás. Desta vez, são eles os espectadores.

A jornalista viajou a convite da Betclic Portugal.

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