China: trabalho forçado de uigures ligado a consumidores de pescado de todo o mundo

Equipa do The Outlaw Ocean Project denuncia trabalho forçado na China. O alcance do programa de transferência de mão-de-obra “liga os abusos sofridos pelos uigures a consumidores de todo o mundo”.

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Trabalhadores em 2023 numa fábrica de marisco chamada Yantai Sanko Fisheries na província de Shandong, China, que depende da mão de obra uigur e de outros trabalhadores de Xinjiang e exporta para os EUA, Canadá, Alemanha, Dinamarca e Países Baixos DOUYIN
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Numa manhã do último mês de Abril, mais de 80 homens e mulheres vestidos com roupas vermelhas corta-vento formaram filas alinhadas em frente à estação de comboios da cidade de Kashgar, em Xingjian, na China.

Tratava-se de uma das maiores minorias étnicas da China, os uigures. Eles permaneciam nas filas, com as malas aos seus pés, enquanto assistiam a uma cerimónia de despedida realizada em sua homenagem pelo governo local. Um vídeo do evento mostra uma mulher com um vestido tradicional a fazer piruetas no palco e um cartaz com as palavras “Promovendo o Emprego Maciço e Construindo Harmonia na Sociedade”. No fim do vídeo, as imagens de drone voltam para mostrar os comboios à espera para levar os uigures embora.

O evento fazia parte de um vasto programa de transferência de mão-de-obra administrado pelo Estado chinês, que envia uigures à força para várias regiões do país para trabalhar em grandes indústrias. “É uma estratégia de controlo e assimilação”, diz Adrian Zenz, antropólogo que estuda os confinamentos em Xinjiang. “Uma estratégia planeada para apagar a cultura uigur.”

O programa, por sua vez, faz parte de uma agenda mais ampla que tinha como objectivo a subjugação de um povo que resiste historicamente. Han é o grupo étnico dominante no país, mas mais da metade da população de Xinjiang, uma região longe do litoral, no Noroeste chinês, é composta por grupos étnicos minoritários. A maioria é uigur, mas há também quirguizes, tajiques, cazaques, huis e mongóis.

Separatistas uigures revoltaram-se nos anos 90 e atiraram bombas contra esquadras de polícia em 2008 e 2014. A China, em resposta, montou um amplo programa de perseguição, que procurava prender muçulmanos e outras minorias religiosas da China durante meses ou anos por acções como declamar versículos do Corão em funerais ou usar barba comprida, por exemplo.

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A temperatura de uma mulher uigur é registada por um scanner de infravermelhos enquanto é transferida para a Qingdao Tianyuan Aquatic Products Co. Ltd., em 2020 Jiaozhou News Center

O Governo também prendeu uigures em massa e enviou-os para campos de “reeducação”, onde muitas vezes eram submetidos a torturas, espancamentos e esterilização forçada. No auge desses programas, o número de uigures detidos nesses campos variou entre um e dois milhões. O Governo dos Estados Unidos descreveu as acções do país em Xinjiang como uma forma de genocídio.

No início dos anos 2000, a China começou a enviar uigures para trabalhar fora da região como parte do programa que mais tarde levaria o nome de “Ajuda de Xinjiang”. Em 2014, o secretário do partido da região salientou que o programa iria promover o “pleno emprego” e “a interacção, o intercâmbio e a mistura de etnias”, mas publicações académicas chinesas descreveram o projecto como uma forma de “quebrar” o “problema solidificado” de uma sociedade uigur.

O programa também fornece mão-de-obra barata para as maiores indústrias chinesas – procura que se tornou mais aguda no sector das pescas depois do início da pandemia de covid-19, uma vez que o confinamento levou à escassez de mão-de-obra.

Entre 2014 e 2019, de acordo com estatísticas governamentais, as autoridades chinesas redistribuíram anualmente mais de dez por cento da população de Xinjiang – ou mais de 2,5 milhões de pessoas – por meio da transferência de mão-de-obra.

O efeito foi enorme: entre 2017 e 2019, de acordo com o Governo chinês, a taxa de natalidade de Xinjiang caiu quase pela metade. Os uigures transferidos foram mandados para colheitas de algodão, escavações de fábricas de polissilício e produção de têxteis e painéis solares (responsáveis do Ministério de Relações Exteriores da China não responderam a perguntas dos autores deste artigo sobre o programa.)

Em 2021, o Congresso dos EUA aprovou a Lei de Prevenção ao Trabalho Forçado de Uigures, que declarou que todas as mercadorias produzidas “completa ou parcialmente” por trabalhadores de Xinjiang ou por minorias étnicas da província envolviam, ao que tudo indica, práticas de trabalho forçado impostas pelo Estado e seriam, portanto, banidas de entrar no mercado norte-americano.

A lei deu resultado: no ano passado, a Alfândega e Protecção de Fronteiras dos Estados Unidos confiscou mais de mil milhões de dólares em mercadorias ligadas a Xinjiang, que incluíam aparelhos electrónicos, roupas e produtos farmacêuticos.

Até ao momento, porém, há uma indústria que escapou com folga: a indústria da pesca.

Aproximadamente 80 por cento dos produtos do mar consumidos pelos Estados Unidos são importados, e o fornecimento da China é maior do que qualquer outro país. Mais da metade dos panados de peixe [douradinhos] servidos nas escolas públicas americanas são transformados na China. Mas as muitas trocas de navios pesqueiros, indústrias de transformação e empresas exportadoras dificultam o rastreio da origem dos produtos do mar pelos países importadores. Além disso, jornalistas estrangeiros normalmente são proibidos de fazer reportagens em Xinjiang, e a censura retira informações sobre a mão-de-obra uigur da Internet chinesa.

Para entender melhor o que está acontecendo, o The Outlaw Ocean Project conduziu uma grande investigação nos últimos quatros anos para oferecer um primeiro vislumbre do sistema pouco conhecido de trabalho forçado de uigures, que fornece boa parte do pescado consumido no mundo.

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Trabalhadores em 2021 numa fábrica de produtos do mar chamada Yantai Sanko Fisheries na província de Shandong, China, que depende de mão-de-obra uigure e de outros trabalhadores de Xinjiang e exporta para os EUA, Canadá, Alemanha, Dinamarca e Países Baixos Douyin

Para confirmar a localização das indústrias de transformação de pescado que fazem uso de mão-de-obra uigur, os investigadores do projecto analisaram centenas de páginas de comunicados internos dessas empresas, notícias locais, um banco de dados de depoimentos prestados por uigures, dados comerciais e imagens de satélite e de telemóveis.

A equipa assistiu a milhares de vídeos na Internet, a maioria do Douyin, versão chinesa do TikTok, e concluíram que a maioria dos posts era de utilizadores registados em Xinjiang. Além disso, pediram a especialistas para analisar as línguas usadas nos vídeos e contrataram investigadores para visitar algumas das fábricas.

Todas as provas disponíveis analisadas pelo The Outlaw Ocean Project apontam para uma situação extremamente preocupante. “Essa descoberta em relação ao pescado e ao alcance do programa de transferência de mão-de-obra”, disse a advogada que lida com questões laborais dos uigures, Sarah Teich, “liga os abusos sofridos pelos uigures a consumidores de todo o mundo.”

Europa não é excepção

Descobrimos que as empresas que empregam mão-de-obra uigur exportaram recentemente centenas de carregamentos de produtos do mar para mais de 80 empresas europeias, informa a equipa do The Outlaw Ocean Project num documento com informação mais pormenorizada sobre a Europa.

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Imagem de um vídeo carregado numa conta Douyin do governo chinês em 2023, que mostra uma transferência de trabalhadores organizada pelas autoridades de Kashgar Douyin, Kashgar Media Center

O pescado processado em fábricas que utilizam trabalho forçado é importado para toda a Europa pelas subsidiárias francesas, dinamarquesas e britânicas da segunda maior empresa de produtos do mar do mundo, a japonesa Nissui Corporation, adiantam.

A Cité Marine, distribuidora francesa da Nissui, fornece peixe branco a praticamente todos os grandes supermercados, incluindo o Carrefour, o Aldi e o Lidl. O gigante dos alimentos congelados Nomad Foods - cujas marcas de retalho Findus, Birds Eye e Iglo são as mais populares em 16 países europeus - é abastecido de peixe branco por pelo menos dois importadores que compram peixe a fábricas chinesas que utilizam trabalho forçado uigur.

A NomadFoods vende produtos do mar sob a sua popular marca "Iglo", que é a maior e mais conhecida marca de alimentos congelados em Portugal e noutros países europeus. Esta empresa britânica-americana é um gigante dos produtos do mar europeus, com uma receita de quase 3 mil milhões de dólares em 2022, de acordo com os seus resultados financeiros de fim de ano. É a principal empresa de alimentos congelados da Europa em termos de vendas líquidas.

Os seus principais mercados são o Reino Unido, onde detém as marcas de alimentos congelados Goodfella's e Aunt Bessie's, a Itália, a Alemanha, a França, a Suécia e a Áustria, de acordo com o seu relatório anual de 2022, com 70 por cento das suas receitas geradas a partir destes seis países. Opera também em Espanha, onde detém a marca La Cocinera, nos Países Baixos, na Irlanda, em Portugal, na Europa Oriental e na região do Báltico. É a principal empresa de produtos congelados em dezasseis dos países europeus em que opera.

O distribuidor francês da Nissui, a Cité Marine, importou mais de 200 remessas de escamudo e bacalhau da Qingdao Tianyuan Aquatic Foodstuff, de acordo com dados comerciais, desde que se sabe que a fábrica chinesa começou a utilizar trabalho forçado uigur em 2018 e ainda em Abril de 2023. A Cité Marine fornece filetes de escamudo e de bacalhau, bem como peixe panado e nuggets, à Aldi, Lidl, Auchan, Carrefour, Intermarché e Grand Frais em França. Fornece ainda bolos de peixe, rissóis, hambúrgueres e almôndegas de peixe contendo escamudo e bacalhau à Aldi, Lidl e Carrefour, estando também amplamente disponível a sua própria marca de peixe, Cap Océan. A investigação não permitiu apurar se estes produtos específicos são vendidos por estes retalhistas no mercado português.

A Cité Marine fornece peixe branco, incluindo o escamudo, à Sysco France, um dos principais fornecedores das autoridades regionais francesas. A base de dados dos contratos públicos da União Europeia mostra que, entre 2018 e 2023, a Sysco France ganhou pelo menos 62 contratos, no valor de quase 30 milhões de euros, em escolas, hospitais e autoridades locais francesas para fornecer pescado congelado. A Sysco France também foi contratada pelo Gabinete de Infraestruturas e Logística da Comissão Europeia para fornecer alimentos para as suas cantinas em 2022 e 2023, a um custo de pouco mais de 10 000 euros.

A venda de produtos do mar contaminado por crimes de trabalho forçado pela Aldi e pela Lidl também foi documentada. Confrontadas com os dados recolhidos pela equipa do The Outlaw Ocean Project várias empresas reagiram. Todas condenam qualquer violação dos direitos humanos e comprometem-se a levar a sério todas as denúncias de crimes cometidos nas respectivas cadeias de abastecimento. As empresas asseguram ainda que as alegações serão investigadas.

Especificamente sobre o recurso a trabalho forçado de uigures houve também reacções das empresas. Sam Fulton, porta-voz da Nomad Foods, por exemplo, pediu que lhe fossem transmitidas "quaisquer provas que tenha relacionadas com a sua investigação que mostrem a existência de trabalho forçado associado aos nossos produtos, para que possamos investigar a fundo". Claire Jowan, porta-voz do Gabinete de Infra-estruturas e Logística da Comissão Europeia, disse que a Comissão estava a solicitar mais informações à Sysco France.

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Trabalhadores de minorias étnicas da Yantai Sanko Fisheries Co. Ltd. assistem a sessões de educação política na fábrica em 2021, uma componente comum do sistema de trabalho forçado imposto pelo Estado na China Yantai United Front Work Department

Algumas empresas responderam com informações novas sobre as ligações a determinados fornecedores, reportando a suspensão de contratos com alguns fornecedores, anunciando a realização de auditorias, garantindo a investigação exaustiva das alegações e sempre reafirmando a defesa dos direitos humanos.

Algumas optaram por não responder. O Governo francês, a Sysco France, a Nordic Seafood, a Nissui Corporation, a Yantai Sanko Fisheries e a Yantai Longwin Foods não responderam aos pedidos de comentários.

Primeiro, batem à porta

As transferências começam com uma batida à porta. Depois, uma “equipa de trabalhadores da aldeia” composta por responsáveis do partido local entra num lar e inicia um “trabalho de reflexão” que procura estimular os uigures a aderir voluntariamente a programas governamentais, alguns deles envolvendo migrações.

A narrativa oficial sugere que os trabalhadores uigures são gratos pelas oportunidades de emprego, e alguns provavelmente são. Mas uma directriz interna sigilosa do Comando de Manutenção da Estabilidade da Câmara Municipal de Kashgar, escrita em 2017, diz que as pessoas que resistem às transferências de mão-de-obra podem ser detidas.

Zenz conta que uma mulher de Kashgar foi presa por se recusar a fazer uma tarefa na fábrica porque precisava de cuidar de dois filhos pequenos. Outra mulher que se recusou a ser transferida foi presa numa cela devido à sua “falta de cooperação”.

Depois de reunidos, aquele que foram recrutados para migrar recebem informações sobre os seus destinos. Em Fevereiro de 2022, por exemplo, milhares de uigures formavam uma fila no campo de confinamento a sudoeste de Xinjiang para uma “feira de empregos”.

O vídeo de um evento semelhante mostra pessoas a assinar contratos em filas organizadas, enquanto são controladas por responsáveis em uniformes do Exército. A maioria das transferências é feita de comboio ou avião. O Grupo Zhongtai, de Xinjiang , um conglomerado que aparece na lista Fortune 500, organizou recentemente a transferência de cem mil trabalhadores para o município de Hotan (o Grupo Zhongtai não respondeu às solicitações dos autores deste artigo para comentar o assunto.)

As transferências são motivadas às vezes por necessidades de mão-de-obra. Em Março de 2020, o Grupo Chishan, uma das principais empresas de captura e trasnformação de pescado da China, publicou um comunicado interno descrevendo a “enorme pressão para produzir” causada pela pandemia. Em Outubro do mesmo ano, responsáveis do partido no Destacamento Antiterrorista local do Gabinete de Segurança Pública e o Gabinete de Recursos Humanos e Previdência Social, responsáveis pela administração das transferências dos trabalhadores, tiveram dois encontros com empresários para discutir como encontrar mais mão-de-obra para aquele grupo empresarial.

Pouco depois, o Grupo Chishan concordou em acelerar as transferências para as suas indústrias. Wang Shanqiang, o subdirector-geral do grupo, declarou, num comunicado, que a empresa estava "ansiosa pela chegada dos trabalhadores migrantes de Xinjiang que chegarão em breve” (o Grupo Chishan não respondeu às solicitações dos autores deste artigo para comentar a situação.)

A música e fotografias para comunicar

A partir do momento em que os uigures são enviados para as fábricas, passam a ser controlados atentamente. Uma das únicas formas de espreitar um pouco das suas vidas é através de imagens e vídeos publicados por eles próprios nas redes sociais. Muitos tiram selfies perto do mar quando chegam a Shandong. Xinjiang é o lugar mais longe do oceano no mundo.

Alguns publicam músicas uigures com letras melancólicas. Embora possam, é claro, tratar-se simplesmente de trechos de música sentimental, os investigadores argumentam que também podem funcionar como uma transmissão de mensagens codificadas de sofrimento, numa tentativa de contornar a censura chinesa.

Exemplos não faltam:

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Uma assistente de bordo da China Southern Airlines ajuda um uigur a preencher um cartão de aterragem durante uma transferência de trabalho em 2020 China Civil Aviation Network

A caminho do trabalho numa indústria de pescado em Shandong, um homem uigur de meia-idade filmou-se enquanto estava sentado na sala de embarque de um aeroporto em Março de 2022, e pôs a canção Kitermenghu (“Tenho de partir”) a acompanhar as imagens. O vídeo cessa imediatamente antes de um verso que qualquer pessoa que conheça a canção saberia de cor: “Agora temos um inimigo, você deve ter cuidado.”

Uma mulher publicou um vídeo em que põe no cabelo uma fita de uma empresa de pescado enquanto uma voz diz: “O que será que nos separa dos nossos pais e da nossa cidade natal, causa arrependimento para a vida toda e atrai toda a gente para a escravidão? Isso mesmo, o dinheiro”.

Uma série de slides mostra trabalhadores a empacotar produtos do mar em caixas de cartão enquanto uma voz diz: “A maior alegria da vida é derrotar um inimigo muito mais forte do que nós e que nos oprimiu, discriminou e humilhou.”

Em alguns vídeos, trabalhadores expressam a sua infelicidade em termos um pouco menos velados. Um vídeo mostra dois homens uigures trabalhando numa linha de embalagem de peixe, com uma banda sonora usada por muitos utilizadores do Doujin.

“Quanto recebes por mês?”, pergunta um homem.

“Três mil”, responde o outro.

“Então por que não estás feliz?”

“Porque não tenho escolha.”

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Trabalhadores transferidos fazem fila para embarcar num avião em 2020, vestidos com trajes a condizer e com flores vermelhas presas ao peito China Civil Aviation Network

Auditorias com aviso prévio

As cadeias de fornecimento de produtos do mar são famosas pela dificuldade de acesso. Para detectar trabalho forçado, as companhias costumam contratar empresas que fazem “auditorias sociais,” nas quais inspectores visitam uma fábrica para garantir que esta actuam em conformidade com a lei.

Mas as empresas normalmente são informadas previamente das datas das auditorias sociais, permitindo que os gerentes escondam os trabalhadores pertencentes às minorias étnicas de Xinjiang durante as inspecções. Os auditores raramente conseguem ter a oportunidade de entrevistar os próprios trabalhadores. E, mesmo quando conseguem, os trabalhadores hesitam em responder com sinceridade, por medo de retaliação.

Quando Sarosh Kuruvilla, professor de Relações Industriais da Universidade de Cornell, nos EUA, analisou mais de 40 mil auditorias de todo o mundo, descobriu que quase metade não era confiável. “A ferramenta está completamente corrompida”, conclui.

Em Maio de 2022, auditores sociais da SGS, uma das melhores empresas de auditoria, percorreu a fábrica da Haibo, em Shandong, e não encontrou indícios de trabalho forçado. Mas quando o The Outlaw Ocean Project investigou a questão, descobriu que mais de 170 pessoas de Xinjiang trabalhavam na Haibo em 2021.

No mesmo dia em que os auditores visitaram a fábrica, uma jovem trabalhadora uigur publicou fotografias dela mesma perto dos dormitórios da fábrica e dos cais de carga e descarga. (“Nós somos uma empresa que funciona em conformidade com a lei e as regulamentações,” disse um representante da fábrica da Haibo numa resposta por e-mail. Representantes da fábrica da Haidu não responderam às solicitações para comentar o assunto.)

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"Trabalhámos ontem. Trabalhámos durante a noite. Ainda estamos a trabalhar", diz um homem uigur num registo de voz carregado no Douyin em 2021, por cima de fotografias de trabalhadores exaustos sobre paletes de solha embalada para exportação Douyin

Este não foi um incidente isolado. O The Outlaw Ocean Project descobriu, na sua investigação, outro exemplo de um uigur que publicou um vídeo seu na fábrica alguns dias depois da aprovação pelos auditores sociais. O projecto também descobriu que metade das exportadoras chinesas, cuja ligação com a mão-de-obra uigur foi identificada pelo projecto, foram aprovadas por auditorias promovidas pelas melhores empresas de inspecção global.

Até algumas empresas que foram certificadas como “sustentáveis” estão envolvidas. Todas as fábricas de transformação de pescado investigadas pelo The Outlaw Ocean Project que usavam trabalho forçado de Xinjiang eram certificadas pelo Marine Stewardship Council, por exemplo. (Jo Miller, chefe de relações públicas da MSC, reconheceu que a empresa confia em auditorias sociais, que têm “limitações significativas”.)

O negócio com os EUA

Na investigação, o Outlaw Ocean Project descobriu que no mínimo dez grandes empresas de produtos do mar da China usaram pelo menos mil trabalhadores uigures desde 2018. Durante esse período, essas empresas exportaram mais de 47 mil toneladas de pescado para os Estados Unidos. Os produtos dessas indústrias foram comprados por importadoras norte-americanas e canadianos, entre elas a High Liner Foods. (Um porta-voz da High Liner Foods disse que a fábrica com a qual trabalhava tinha sido submetida a uma auditoria por terceiros em Setembro de 2022.)

Como o pescado pode ser misturado em cada etapa da exportação, é difícil saber com certeza para onde vai cada lote. Mas empresas americanas que importam produtos de fábricas que usam mão-de-obra uigur mandaram as suas mercadorias para supermercados em todo o país, incluindo as lojas Walmart, Costco, Kroger e Albertsons, que estão entre os dez maiores supermercados em número de lojas nos EUA. (Um porta-voz da Walmart disse que a empresa “espera que todos os seus fornecedores cumpram os padrões e obrigações contratuais da empresa, incluindo aquelas relacionadas com os direitos humanos.” Um porta-voz da Albertsons disse que iam parar de comprar certos produtos do mar da High Liner Foods. A Costco e a Kroger não responderam às solicitações para comentar a questão.)

As importadoras também enviam pescado para a Sysco, a gigante mundial de serviços alimentícios, fornecedora de mais de 400 mil restaurantes em todo o mundo. (Um porta-voz da Sysco disse que a sua fornecedora, a Yantai Sanko, “nunca recebeu quaisquer trabalhadores submetidos a programas de transferência de mão-de-obra impostos pelo Estado. Além disso, a Yantai Sanko foi auditada com sucesso em Setembro de 2022 por um auditor externo usando o padrão de auditoria social SMETA”)

Nos últimos cinco anos, o Governo dos EUA gastou mais de 200 milhões de dólares em pescado de importadoras ligadas à mão-de-obra uigur para o consumo de escolas públicas, prisões federais e bases militares. (Um porta-voz do Departamento de Agricultura disse que as agências federais devem ser abastecidas com pescado de águas dos EUA, mas os grupos de fiscalização dizem que isenções significam que grande parte dos produtos da pesca vem, na verdade, da China.)

Os EUA não são o único país que importa pescado ligado à mão-de-obra de Xinjiang. O Outlaw Ocean Project também identificou importações ligadas à mão-de-obra de Xinjiang em mais de 36 países.

Para abordar a questão nos EUA, os especialistas dizem que é preciso fazer alterações no Programa de Monitorização de Importação de Produtos do Mar do país. O programa, projectado para detectar e combater a pesca ilegal, obriga as importadoras a manter registos detalhados dos seus produtos. Mas muitas espécies importantes, incluindo lula e salmão, não estão incluídas nessa monitorização, e o programa não foi projectado para detectar trabalho forçado e outros abusos do tipo.

Judy Gearhart, que trabalha para o Accountability Research Center da Universidade Americana, argumenta que a lei por trás do programa deveria ser expandida para forçar as empresas da China e os seus clientes dos EUA a fornecer informações mais detalhadas sobre trabalhadores das fábricas chinesas.

Especialistas em assuntos uigures, como Laura Murphy, pedem que as empresas cumpram a devida diligência de direitos humanos projectada para detectar trabalho forçado imposto pelo Estado na China. “Os EUA estão a ficar para trás na corrida global que exige que as empresas façam uma verificação básica capaz de detectar se houve trabalho forçado ligado a Xinjiang e outras formas de exploração na sua produção,” disse Chloe Cranston da organização Anti-Slavery International.

Robert Stumberg, professor de Direito da Universidade de Georgetown, disse que a lei sobre a mão-de-obra uigur é “especialmente poderosa” e que o Governo dos EUA já a adoptou para a produção de painéis solares, peças de automóvel, circuitos integrados de computador, óleo de palma, açúcar e tomate. Para Stumberg, está claro o que precisa de ser feito agora. “Os produtos do mar,” diz ele, “são os próximos.”


A escrita e a investigação para este texto receberam contributos de Ian Urbina, Daniel Murphy, Joe Galvin, Maya Martin, Susan Ryan, Austin Brush e Jake Conley


Este reportagem foi produzida pelo The Outlaw Ocean Project, uma organização jornalística sem fins lucrativos com sede em Washington, que tem feito trabalhos relacionados com direitos humanos, questões laborais e problemas ambientais nos oceanos. Este colectivo de jornalistas foi fundado pelo antigo repórter do New York Times Ian Urbina. Para além do PÚBLICO, este trabalho foi publicado na revista norte-americana The New Yorker e nos jornais El País (Espanha), Le Monde (França) e Die Zeit (Alemanha)


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