Atlas das células do cérebro humano foi criado
Vinte e um estudos de investigação compõem o atlas celular do cérebro, tendo identificado 3313 tipos de células cerebrais humanas, cerca de dez vezes mais do que se conhecia até agora.
Cientistas de todo o mundo conseguiram criar o primeiro "atlas" das células que compõem o cérebro humano, um trabalho revolucionário que abre perspectivas para o desenvolvimento de tratamentos e a cura de doenças cerebrais como a esquizofrenia ou a Alzheimer.
Vinte e um estudos de investigação, que compõem o atlas celular do cérebro, são divulgados esta sexta-feira numa edição especial da revista científica Science, bem como nas publicações Science Advances e Science Translational Medicine.
Os estudos são resultado de trabalhos realizados por cientistas de todo o mundo na chamada BRAIN Initiative (Brain Research through Advancing Innovative Neurotechnologies) - Cell Census Network (BICCN), um consórcio de centros nos Estados Unidos e na Europa que desde 2014 tem trabalhado na caracterização de tipos de células, e das suas funções, no cérebro de humanos, primatas não-humanos e roedores.
A caracterização do tipo celular é o processo de identificação, classificação e descrição de diferentes tipos de células com base nas suas características, propriedades e funções únicas.
Quase 100 mil milhões de neurónios
O cérebro humano é complexo em termos da sua utilidade — sentir, mover-se, ler, escrever, falar, pensar e muito mais — e da sua diversidade celular.
Os neurónios — ou células nervosas — são as unidades fundamentais do cérebro, recebendo informações sensoriais, transmitindo comandos aos músculos e enviando sinais eléctricos ao longo do caminho. O cérebro é composto por quase 100 mil milhões de neurónios e ainda mais células não-neuronais. Todas elas estão organizadas em centenas de estruturas cerebrais distintas que regem um espectro de funções.
A investigação identificou 3313 tipos de células cerebrais humanas, cerca de dez vezes mais do que se conhecia até agora, assim como o conjunto completo de genes utilizados por cada tipo de célula, mapeando também a sua distribuição por regiões no cérebro.
Os cientistas prevêem que a identificação tão detalhada das células cerebrais identificará os tipos de células mais afectados por mutações específicas que causam doenças neurológicas.
Mas, num sentido mais amplo, o atlas celular do cérebro abrirá novas portas para a compreensão de como milhões de neurónios trabalham em conjunto para formar uma rede que é a base daquilo que constitui um ser humano: os seus pensamentos, emoções e comportamentos.
"O início de uma nova era da análise cerebral"
Joseph Ecker, director do Laboratório de Análise Genómica do Instituto Salk, nos Estados Unidos, uma das instituições que fazem parte da Iniciativa BRAIN, declarou, em comunicado, que o conjunto de 21 estudos "é o início de uma nova era da análise cerebral".
"Poderemos compreender melhor como o cérebro se desenvolve, envelhece e sofre de doenças", acrescentou Ecker.
Ed Lein, um dos investigadores envolvidos no projecto, salientou, citado pela agência Reuters, que "o atlas de células cerebrais como um todo fornece o substrato celular para tudo o que conseguimos fazer enquanto seres humanos". Os vários tipos de células têm propriedades distintas e são provavelmente afectados de forma diferente nas doenças, disse Lein.
Os cientistas notaram que todas as células cerebrais humanas contêm a mesma sequência de ADN, mas cada tipo de célula utiliza genes diferentes copiados em cadeias de ARN, e em quantidades diferentes, para criar proteínas.
Esta variação produz muitos tipos diferentes de células cerebrais e contribui para a complexidade dos circuitos neurais.
Serão os neurónios dos chimpanzés semelhantes aos nossos?
Um dos principais objectivos do projecto era compreender quais características da organização das células cerebrais são específicas dos humanos, em comparação com as dos primatas não-humanos.
A investigação mostrou que os neurónios dos chimpanzés, primatas que partilham o ancestral mais recente com os humanos, são mais semelhantes aos neurónios dos gorilas do que aos dos humanos.
Compreender as diferenças moleculares destes tipos de células é fundamental para compreender como funciona o cérebro, como as mutações do ADN causam doenças cerebrais e para desenvolver novas formas de tratamento para distúrbios neuropsiquiátricos.
Uma surpresa foi o facto de a diversidade celular se concentrar em partes evolutivamente mais antigas do cérebro — o mesencéfalo e o rombencéfalo — em vez de no neocórtex, responsável pelas funções cognitivas superiores, incluindo a aprendizagem, a tomada de decisões, a percepção sensorial, a memória e a linguagem.
"A maioria das doenças cerebrais ainda não tem cura nem mesmo tratamento, e este atlas deve servir de base para acelerar o progresso na compreensão da base celular pormenorizada das doenças e na orientação das próximas gerações de terapêuticas", afirmou Lein.
Tipos de células e distúrbios neuropsiquiátricos
Um dos estudos, liderado por cientistas da Universidade de San Diego (EUA), analisou mais de 1,1 milhão de células de 42 regiões de três cérebros humanos para gerar um mapa detalhado de mudanças genéticas em tipos de células cerebrais.
O estudo, que identificou 107 subtipos diferentes de células cerebrais, também revelou conexões entre certos tipos de células e vários distúrbios neuropsiquiátricos, como esquizofrenia, transtornos bipolares, Alzheimer e depressão.
Os investigadores confirmaram uma ligação entre a micróglia — um tipo de célula imunitária no cérebro — e a doença de Alzheimer e descobriram uma ligação entre certos tipos de neurónios e a esquizofrenia, uma doença mental grave marcada por uma desconexão da realidade.
Os cientistas também desenvolveram ferramentas de inteligência artificial para prever como certas variações na sequência do ADN podem influenciar a regulação genética e contribuir para doenças.
Prevê-se um longo caminho a percorrer na investigação do cérebro. "Estamos apenas no início da delineação da complexidade do cérebro humano", disse outro dos investigadores, Bing Ren, director do Centro de Epigenómica da Universidade da Califórnia, em San Diego. "É necessário muito mais trabalho para compreender plenamente a diversidade, a variabilidade e a estrutura funcional do cérebro."