Mudar o Atlântico em quatro vagas (2): Enfrentar o lixo marinho

Todos os anos, cinco a 13 milhões de toneladas de plástico viajam da terra para o mar. O projecto Clean Atlantic fez um retrato da realidade deste tipo de poluição na região europeia atlântica.

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O projecto Clean Atlantic registou nas praias portuguesas uma média de 378 itens de lixo marinho por 100 metros. Daniel Rocha/Arquivo Público
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Há uma colecção de objectos especiais na Direcção Regional do Ambiente e Alterações Climáticas do Governo Regional da Madeira (DRAAC). Pedro Sepúlveda mostra à câmara uma bóia e lê a inscrição que revela a origem do objecto: Vigo. "É de metal, foi por isso que fiquei com ela; hoje em dia, as bóias são todas plásticas. Tem talvez 30 ou 40 anos, foi encontrada aqui há dois anos ou três."

O director de serviços do departamento de Acção Climática e Sustentabilidade da DRAAC resume, em videochamada com o Público, os resultados do Programa Regional de Monitorização do Lixo Marinho nas Praias da Madeira, que tem recolhido e caracterizado os objectos que dão à costa da ilha nos últimos três anos, quatro vezes por ano.

Desde 2021, o programa madeirense contabiliza 3,6 toneladas de lixo recolhido proveniente do mar – apesar de Pedro Sepúlveda estimar um valor real de quase em dobro desde o início do programa, em Setembro de 2020. A maioria dos objectos recolhidos (33%) está relacionada com a actividade pesqueira.

Estes programas de monitorização – que também existem no Continente e nos Açores – incluem ainda campanhas de limpeza e acções de sensibilização e sumarizam os esforços de cada país-membro para o cumprimento da Directiva-Quadro da Estratégia Marinha (DQEM) da União Europeia face à caracterização, composição e distribuição do lixo marinho nas zonas costeiras.

“Sabemos agora que temos lixo que não é produzido cá”, nota Pedro Sepúlveda. A bóia de metal de Vigo não é o exemplo mais longínquo. O investigador dá nota de etiquetas que se colocam nas armadilhas da apanha da lagosta na costa americana e do Canadá. “Vemos objectos da costa americana, da europeia e mesmo do Mediterrâneo, porque a Madeira é também influenciada pela corrente que sai desse mar”, explica o director de serviços na DRAAC. É a particularidade deste arquipélago, “um ponto no meio do Atlântico” que funciona como barreira para o lixo. Segundo Pedro Sepúlveda, “é a amostra mais significativa do que se passa no oceano. A perspectiva continental é só a borda do problema.”

Remoção de lixo marinho proveniente de artes de pescas

No Parque Nacional das Ilhas Atlânticas da Galiza foi testada uma rede específica para a recolha de lixo marinho em navios que minimiza a apanha acidental de seres vivos.

O retrato da poluição

Este pequeno ponto no Atlântico pôde dar importantes contributos para o projecto "Clean Atlantic: Enfrentando o Lixo Marinho no Espaço Atlântico", uma parceria entre os países da região atlântica europeia – Espanha, França, Reino Unido e Irlanda. A missão deste projecto, financiado pelo programa Espaço Interreg Atlântico 2014-2020 em pouco mais de 4,1 milhões de euros, dividiu-se em várias linhas de acção para expandir o conhecimento académico e público sobre o lixo marinho no Atlântico e desenvolver novos sistemas e tecnologias de monitorização.

“Este projecto ajudou a cimentar o Programa de Monitorização da Madeira, que na altura [o projecto iniciou em 2017] era um pouco incipiente. Deram-nos os meios e a capacidade logística para ampliar o nosso programa, e nós demos-lhes a capacidade de angariar dados numa zona onde há poucas pessoas presentes”, explica Pedro Sepúlveda, representante da DRAAC no projecto.

Através de modelações numéricas desenvolvidas pelo Instituto Superior Técnico de Lisboa (IST), foi possível descrever as fontes e os trajectos do lixo no oceano e as respectivas zonas de acumulação. Na Madeira, foram identificadas zonas de acumulação em reservas naturais.

As maiores unidades de investigação europeias no âmbito do mar uniram forças no Clean Atlantic para “ter uma fotografia do lixo marinho no espaço atlântico”, explica Marisa Fernández, responsável pela gestão de recursos marinhos no Centro Tecnológico do Mar (Cetmar) em Vigo e coordenadora deste projecto.

Os investigadores processaram e disponibilizaram online os dados dos programas de monitorização de cada país, bem como aqueles que foram angariados pela Convenção para a Protecção do Meio Marinho do Atlântico Nordeste (OSPAR) entre 2016 e 2019 para três categorias de lixo marinho: costeiro, flutuante e dos fundos marinhos.

Os dados mais extensivos e completos que existem, pela facilidade da recolha, são sobre lixo costeiro. "Presumivelmente, a situação mais grave estará nos fundos marinhos. Calcula-se que perto de 70% do lixo que chega ao mar, depois de permanecer à tona, afunde", diz a coordenadora do Clean Atlantic. Um estudo publicado na revista Science em 2015 estima que 4,8 a 12,7 milhões de toneladas de plástico chegam ao mar todos os anos – e que o lixo que flutua à superfície representa apenas 1% do total.

Até hoje, a monitorização dos fundos marinhos faz-se “aproveitando campanhas de observação ou avaliação de stocks de peixe”, explica Marisa Fernández, sublinhando que o método se revela insuficiente para fazer um cálculo do lixo marinho presente no fundo do oceano.

A equipa do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (Mare-Madeira), afiliado da Agência Regional para o Desenvolvimento da Investigação, Tecnologia e Inovação (ARDITI), explorou técnicas de monitorização do lixo flutuante através de drone, e “o mesmo tem sido desenvolvido para zonas de costa, onde a inspecção visual e o recurso a inteligência artificial permitem detectar itens de lixo e criar mapas da sua distribuição”, explica João Monteiro, investigador da Universidade da Madeira, do Mare-Madeira/ARDITI. “Veículos submersíveis não tripulados e imagens subaquáticas” têm ajudado a mapear os fundos marinhos.

Se a costa atlântica europeia fosse uma só extensão de areia, haveria em média 474 itens de lixo marinho a cada cem metros. Para a mesma distância, a União Europeia define, como limite para um bom estado ambiental do ecossistema, apenas 20 itens de lixo. Todos os locais observados nos cinco países ultrapassam consideravelmente este valor, como é possível notar no mapa interactivo do projecto.

Analisando a mediana das recolhas (o valor exactamente a meio de todas as observações), Portugal dá o pior exemplo do grupo, com 301 itens por cem metros. Já o valor médio de lixo marinho nas praias portuguesas é de 378 itens por cem metros, o terceiro mais alto registado (após Reino Unido e França). As praias de Fonte da Telha e Cabedelo são os locais mais gravemente afectados pela poluição, entre os 19 locais analisados.

Os plásticos de utilização única (PUU), como cotonetes, beatas e tampas, são o tipo de objecto mais representado nas recolhas, tanto na região atlântica (39% do lixo marinho) como em Portugal (50,1%). Seguem-se os instrumentos relacionados com a actividade pesqueira, respectivamente com 19% e 13,6%, entre cordas, redes e instrumentos de aquacultura.

As beatas contêm acetato de celulose, um tipo de plástico que serve para reter as substâncias tóxicas da combustão do tabaco. Em contacto com a água (colhidas pelas ondas, nas praias, ou viajando pelos sistemas de recolha de águas pluviais das cidades), estes tóxicos passam rapidamente para o meio ambiente. Dependendo da quantidade de ar no seu interior, uma beata tanto pode flutuar como afundar, podendo contaminar qualquer camada do oceano.

Além dos perigos da ingestão e asfixia para a fauna marinha, os plásticos não só podem transportar contaminantes químicos, mas também servir de “jangada” para o transporte de espécies indígenas e potencialmente invasoras “que poderão ter impacto nas comunidades nativas e endémicas da região”, como explica João Monteiro. O investigador indica que, apesar de terem sido identificadas diversas espécies indígenas em lixo na Madeira, não houve “nenhuma com características ou comportamento de invasora marinha”.

Como reduzir a poluição? Uma das soluções passa por taxar os poluidores

Marisa Fernández alerta para um outro problema “que pode ter um impacto muito grande no fundo marinho”: a pesca fantasma, isto é, o abandono acidental ou voluntário das artes de pesca no oceano, que inadvertidamente podem prender espécies marinhas.

A equipa de Marisa Fernández trabalhou na sensibilização de pescadores na Galiza para que a recolha do lixo nas suas fainas siga caminho até ao porto, onde depois poderá ser tratado. “É o que se chama de fishing for litter” (pesca de lixo), explica a investigadora.

Um inquérito a 194 pescadores galegos concluiu que 97,89% considera o lixo marinho um problema relevante para o sector, e 16,76% admitiu mudar as suas zonas de pesca por causa do lixo. As perdas associadas ao tempo perdido a retirar e desviar lixo marinho fixaram-se entre os 49 e os 109 euros por dia, estimaram os pescadores. Este estudo foi citado numa proposta de resolução apresentada pela deputada francesa Catherine Chabaud ao Parlamento Europeu, aprovada em Março de 2021.

O projecto Clean Atlantic redigiu um “guia técnico para as políticas públicas regionais” de suporte à elaboração de políticas e iniciativas que previnam a poluição por lixo marinho e que estimulem a sua recolha e gestão – como, por exemplo, o apoio à pesca de lixo ou a criação de impostos sobre o plástico.

O director de serviços de Acção Climática e Sustentabilidade da DRAAC destaca o sucesso da estratégia de diminuição dos sacos de plástico em Portugal. “Nos anos 2000, havia um consumo anual de mais de 500 sacos de plástico por cada cidadão.” A partir da aplicação da taxa sobre estes sacos nos supermercados, em 2019, “esse número reduziu para cinco por ano por habitante”, segundo o investigador. “O número de sacos de plástico que encontramos agora nas praias é basicamente zero.”

O cidadão comum tem um papel determinante na redução do consumo de plástico, que continua a aumentar, mas também pode fazer parte de campanhas de limpeza e, graças à aplicação Marine Litter Reporter, desenvolvida pela ARDITI, assistir os cientistas na recolha de dados.

O Clean Atlantic terminou este ano, mas a parceria entre os cinco países da região atlântica europeia continuará os trabalhos de monitorização do lixo marinho através do projecto Free LitterAT, também ao abrigo do Programa Interreg Espaço Atlântico. A partir de Novembro e durante três anos, a equipa vai focar-se na prevenção do lixo marinho e no desenvolvimento de técnicas de monitorização.

Adicionalmente à Directiva dos PUU em contexto europeu, a Organização das Nações Unidas encontra-se a preparar um instrumento legal para acabar com a poluição de plástico. “Com as medidas legislativas que já foram, entretanto, implementadas, espera-se que, por exemplo, nos PUU haja uma redução em muitas áreas superior a 50% e determinados objectos poderão ser reduzidos em 90% até 2030”, aponta Pedro Sepúlveda. “É óbvio que isto é uma estimativa, mas é também uma boa notícia.”

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