A proposta de renovação do uso do glifosato por mais dez anos, que foi votada esta sexta-feira em Bruxelas, não obteve “maioria qualificada” entre os 27 Estados-membros da União Europeia. Uma nova votação deverá ter lugar na primeira quinzena de Novembro. A ausência de “maioria qualificada” poderá deixar nas mãos da Comissão Europeia a decisão de renovar ou não a licença daquela substância para uso agrícola.
“A proposta [da Comissão Europeia], que se baseia num parecer emitido pela Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (EFSA), será submetida à Comissão de Recurso. Espera-se que a comissão discuta e vote a proposta da Comissão na primeira quinzena de Novembro”, lê-se num comunicado da Comissão Europeia, que relata o resultado da votação que hoje decorreu em Bruxelas e que deixa, para já, a renovação do uso do glifosato num impasse.
Se não for alcançado em Novembro um consenso sobre a renovação do glifosato – o ingrediente activo dos herbicidas mais utilizados na Europa –, esta ausência de “maioria qualificada” deixa para a Comissão Europeia a decisão de renovar ou não a licença daquela substância para uso agrícola. Como foi a própria Comissão a formular a proposta que está em cima da mesa, esta naturalmente daria luz verde à renovação (nesse cenário hipotético).
“Este resultado só mostra o quão dúbio foi este processo. É lamentável que um processo que poderia ter sido ponderado, aberto e transparente finalize com tantas dúvidas. E sem uma estratégica que seja concomitante com o Pacto Ecológico Europeu e Do Prado ao Prato, que é a redução do uso de pesticidas”, afirma ao PÚBLICO Pedro Horta, representante da associação ambientalista Zero para as áreas da agricultura e da floresta.
“A falta de apoio maioritário à proposta da Comissão Europeia de reautorizar o glifosato por 10 anos mostra que se tornou politicamente impossível ignorar o estado da ciência sobre os impactos desta substância na saúde”, afirma Natacha Cingotti, líder para o programa de saúde e substâncias químicas da Aliança para o Ambiente e a Saúde (HEAL, na sigla em inglês), uma organização europeia sem fins lucrativos.
Numa nota de imprensa divulgada esta sexta-feira, Natacha Cingotti faz um apelo aos países que se abstiveram ou votaram a favor. “Embora não possamos desfazer as décadas de exposição e os impactos associados à saúde que as pessoas sofreram, os Estados-membros ainda têm a oportunidade de proteger as gerações actuais e futuras de danos evitáveis, proibindo o glifosato o mais rapidamente possível”, diz a responsável da HEAL.
O que é a “maioria qualificada”?
A “maioria qualificada” é um patamar de consenso alcançado quando pelo menos 15 Estados-Membros votam a favor ou contra, permitindo que uma proposta da Comissão Europeia avance ou seja bloqueada. O conjunto de 15 países representa pelo menos 65% da população da União Europeia.
O PÚBLICO apurou que a maioria dos países votou a favor da proposta, incluindo Portugal. Três Estados-membros votaram contra: Áustria, Croácia e Luxemburgo. Alemanha, Bélgica, Bulgária, França, Holanda e Malta abstiveram-se.
Relativamente à abstenção da França, o ministro francês da Agricultura, Marc Fesneau, citado pela agência Reuters, disse que não se opunha ao glifosato em si, mas sim à proposta da Comissão. O responsável defende a limitação do uso do glifosato aos casos em que não haja, de facto, uma outra opção viável na luta química.
A utilização do glifosato, uma substância química capaz de matar ervas não desejadas, foi aprovada na União Europeia pela última vez em 2017. A licença tinha um prazo de cinco anos (em vez de 15, o período máximo), pelo que expiraria em Dezembro de 2022. Houve uma prorrogação por mais um ano, o que significa que Bruxelas tem de definir até ao próximo dia 14 de Dezembro o futuro do glifosato no espaço europeu.
Indústria química mantém-se confiante
O pedido de extensão da licença do produto partiu de colectivo de empresas que se auto-intitula Grupo de Renovação do Glifosato (GRG), e agrega gigantes da indústria química como a Bayer, Syngenta e Nufarm. Num comunicado divulgado esta sexta-feira, o grupo mantém a confiança na renovação da licença para uso agrícola e sublinha que “a maioria dos Estados-membros votou a favor da proposta”.
“O GRG continua confiante de que a renovação da aprovação do glifosato será finalmente concedida, uma vez que a proposta se baseia nas fortes conclusões baseadas na ciência das autoridades competentes, incluindo a EFSA, que não encontraram quaisquer resultados críticos área de preocupação. As conclusões da EFSA são consistentes com as avaliações dos principais organismos reguladores da saúde em todo o mundo, resultantes de quase 50 anos de ciência”, referem os fabricantes de herbicidas agrícolas.
Estas empresas ligadas à produção e distribuição de produtos com glifosato pretendiam renovar a licença por um período máximo, ou seja, 15 anos. A Comissão Europeia preferiu optar por um prazo menor, propondo a prorrogação por mais uma década, dada a controvérsia que paira sobre esta substância química.
Em 2015, a agência da Organização Mundial de Saúde dedicada ao cancro considerou, no âmbito de uma monografia, que a substância era provavelmente cancerígena para os seres humanos. Outras agências internacionais, incluindo a Agência Europeia de Produtos Químicos, classificaram o glifosato como não cancerígeno.
“O comité constatou que as provas científicas disponíveis não atendiam aos critérios para classificar o glifosato como tóxico para um órgão [humano] específico, ou como substância cancerígena, mutagénica ou reprotóxica [capaz de ter efeitos nocivos no processo reprodutivo]”, afirmou Comité de Avaliação dos Riscos da Agência Europeia de Produtos Químicos, em Maio de 2022, numa nota de imprensa.
A plataforma Pesticides Action Network afirma que pairam sérios pontos de interrogação sobre as avaliações de segurança do glifosato, segundo a Reuters. E recorda que a maioria dos cidadãos entrevistados em seis Estados-membros acredita que o glifosato deveria ser proibido.
"Este é um sinal importante. Responde às preocupações da maioria dos europeus sobre o impacto dos pesticidas na saúde e no ambiente. Uma vasta gama de cientistas independentes expressaram as suas preocupações e os seus estudos mostram graves efeitos negativos do uso do glifosato. A reaprovação do glifosato viola a Lei de Pesticidas da União Europeia, segundo a qual a saúde e o ambiente devem estar em primeiro lugar. Em caso de dúvida, o princípio da precaução deve ser invocado”, afirma Gergely Simon, da Pesticides Action Network, numa nota de imprensa.