A época estival entrou pelo Outono adentro, como se fosse a única estação do ano. “Se houver sol e praia, o Algarve está bem”, ironiza o apicultor Paulo Ventura, criticando a visão urbana de encarar a situação da seca. Não chove com regularidade há mais de oito meses – as figueiras anteciparam a queda das folhas em mês e meio, a azeitona mirrou nas árvores. As abelhas – que funcionam como um "termóstato" do ecossistema ambiental – estão a morrer à sede e à fome. As terras do nordeste algarvio e o baixo Alentejo, as zonas mais atingidas pelo stress hídrico, lembram o deserto ali tão perto.
Descendo da serra para o litoral, a água continua a correr nas torneiras e há a promessa de que, daqui a quatro anos, a população terá uma central de dessalinização e uma ligação ao rio Guadiana para reforçar o abastecimento público. Mas o que vai acontecer daqui até lá? Sendo certo que a futura central de dessalinização apenas resolve uma pequena parte do problema do Algarve.
A Comissão Intermunicipal de Acompanhamento da Seca reuniu-se esta sexta-feira para avaliar a situação no país. “Não antevemos outras medidas para além das que já fomos tomando”, declarou a ministra da Agricultura e Alimentação, Maria do Céu Antunes, no início da semana, em Vilamoura, à margem de uma conferência internacional que reuniu gestores e investidores de marinas.
No passado mês de Outubro a hotelaria registou uma ocupação de 83%. Valores que animam o presidente da Associação dos Hotéis e Empreendimentos Turísticos do Algarve (AHETA), Hélder Martins, salientando que os fluxos de turistas “estão ao nível do melhor ano de sempre (2019)”.
Ao aeroporto de Faro, entretanto, começaram a chegar magotes de golfistas, atraídos pelos verdes campos e animados pelas elevadas temperaturas. Visto do lado do mar, o retrato do Algarve parece perfeito – não se desse caso de a região estar a viver um dos piores anos hídricos.
A crise da água é agora e aqui
No postal turístico não se vê que a barragem da Bravura, em Lagos, no distrito de Faro, bateu no fundo. Os agricultores estão proibidos de regar há dois anos. A barragem de Odelouca (a maior albufeira do sistema de abastecimento público – 150 hectómetros cúbicos de capacidade) encontrava-se no passado dia 6 apenas a 8,3% de capacidade.
A Agência Portuguesa do Ambiente (APA/ARH) está a fazer análises semanais e acompanhamento diário da evolução das disponibilidades hídricas. No Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) prevê-se um investimento de 5 milhões para recuperar o volume morto desta barragem e, assim, garantir o abastecimento durante mais alguns meses. “A crise da água não será no futuro, num lugar distante. É agora e aqui em Loulé”, foi este o slogan lançado este Verão por este município, onde se situam os principais empreendimentos turísticos da região.
A câmara deixou secar a relva das rotundas, mas a torneira não fechou para a rega dos jardins particulares, na Quinta do Lago, Vale do Lobo, Vilamoura. Para o futuro, fica a promessa da reutilização das águas residuais para rega e lavagens de ruas, mas, para isso, falta construir a rede e remodelar algumas Estações de Tratamento de Águas Residuais.
“Verifica-se a quase total incapacidade dos decisores políticos e técnicos para planearem e gerirem o recurso água a curto e médio prazo”, resume Nuno Loureiro, professor da Universidade do Algarve (Ualg). O consumo de água, sublinha, “cresce progressivamente, ano após ano”, e as reservas escasseiam. Medidas de curto prazo? “Penalizar consumos excessivos em cada um e em todos os sectores da actividade económica”, preconiza.
As azinheiras a morrer de pé
O Plano Intermunicipal de Adaptação às Alterações Climáticas (PIAAC) prevê para o final do século uma redução de 83% nas reservas hídricas algarvias. Porém, nalguns aspectos já estão a ser atingidos os cenários traçados para 2050. O nordeste algarvio é o espelho dessa situação, as azinheiras morrem de pé, o rio Guadiana, salinizado numa grande parte do troço, deixou de cumprir a sua função ecológica.
“A pouca humidade que cai na noite no vale do Guadiana deixou umas gotas nas plantinhas secas, e é aí que as abelhas vão beber”, lamenta Paulo Ventura, num apiário, em Odeleite. “Uma tristeza.” Das mais de duas dezenas de colmeias, metade está morta. Abre as caixas e o que sai de dentro são larvas, nascidas na cera.
Ali próximo, no Azinhal, no bico de um cerro, num lugar que só dava esteva e tojos, foi plantado mais um pomar de abacateiros. O modelo da agricultura da zona litoral prolonga-se pela serra. “As políticas públicas incentivam a destruição dos matos, ignorando a importância das plantas selvagens”, critica Paulo Ventura, que também é técnico da Melgarbe – Associação de Apicultores do Algarve. No conjunto, os membros da associação representam agora 60 mil colmeias. Há três anos, lembra, estavam nas 72 mil. “Para o ano, nesta altura, se tivermos 50 mil estamos bem.”
“Normalmente, aqui, no Algarve, para conseguirmos sobreviver, não podemos ter as colmeias nos pomares. As zonas irrigadas são um poço de pesticidas, que matam tudo. Matam-nos a nós, também, devagarinho”, acrescenta o apicultor.
“Um poço de pesticidas” e mais espaço para iates
O desalento dos agricultores e criadores de gado contrasta com o ânimo do lado turístico. A marina de Vilamoura anunciou que vai alargar a sua capacidade de oferta, criando um novo espaço para receber mais 68 iates de grande porte (entre os 20 e os 40 metros), reforçando em paralelo a componente da oferta imobiliária em seu redor. A mancha urbanística à beira-mar implantada soma e segue num modelo de crescimento sem limites.
O despovoamento do interior segue lado a lado com desertificação. “A pior guerra que temos é a morte da natureza”, diz Jorge Madeira, criador de cabras algarvias, em Giões (Alcoutim). O PIAAC sinaliza Alcoutim e Castro Marim na “lista vermelha” dos concelhos onde a seca terá mais efeito. O principal aquífero Querença-Silves, segundo a APA, encontra-se nos “mínimos históricos”.
O pastor procura ler na terra o mistério que vai nos céus. “A poluição anda aí, fui à ribeira do Vascão, na fronteira com o Alentejo, e a água está podre”, observa Jorge Madeira, conduzindo os animais para o curral. Não se vê uma erva nascida em redor. O rebanho, com 280 cabeças, alimenta-se de ração, porque lhe falta o alimento natural.
“Dizem que, neste fim-de-semana pode chover, mas não deverá ser amor de muita dura”, prevê. A criação reduziu, a produção de leite baixou e os custos da alimentação disparam. Preocupa-lhe o negócio. Mais estranho ainda, comenta, é que as “cabras velhas desatam a marrar nas novas, chegam-se a matar umas às outras”. "Ao fim e ao cabo, são como as pessoas, não se entendem”, conclui.
À tarde, Jorge Madeira sai para o campo com o gado. “Costumo andar cerca de 25 quilómetros por dia atrás das cabras”. O calcorrear, ao longo de muitos anos, vai deixando algumas marcas físicas. As botas de couro que traz calçadas protegem os pés das pedras, mas falta o conforto. “Tenho um pé que me dói”, queixa-se, logo acrescentando saber qual a cura. “Precisava de ter ido tomar banho ao mar, porque a água salgada faz bem às articulações, mas este Verão não pus lá os pés.”
A vida de pastor, resume, “é uma prisão, não há direito a gozar folgas, domingos ou dias feriados”. Quando jovem, fez uma tentativa para mudar de vida: “Ainda fui emigrante em França, durante três meses, mas vim embora.” Quando chegou altura de constituir família, atravessou o vale, passou para o outro lado do monte, e foi no Alentejo que encontrou a companheira para a vida. “O Alentejo é logo ali”, remata a lembrar que o amor, como a seca, não tem fronteiras.