Antárctida está a perder os “tampões” que abrandam o derretimento do gelo

Quase metade das plataformas de gelo em torno da Antárctida perderam volume em 25 anos. Exposição a correntes quentes impede a recuperação do gelo. Circulação oceânica global pode ficar em xeque.

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Estima-se que, em 25 anos, quase 67 biliões de toneladas de gelo na Antárctida derreteram para o oceano, mas que 59 biliões de toneladas se tenham somado Reuters/UESLEI MARCELINO
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Quatro em cada dez plataformas de gelo que rodeiam a Antárctida reduziram-se em volume nos 25 anos entre 1997 e 2021, libertando 7,5 biliões de litros água para o oceano, revela um estudo publicado esta quinta-feira na revista científica Science Advances. Quarenta e oito (48) das 162 plataformas de gelo em torno daquele continente perderam mais de 30% da massa que registavam em 1997.

Embora a maioria (57,7%) dessas plataformas tenha mantido ou mesmo aumentado o seu volume de água, quase todas as plataformas de gelo do lado ocidental do continente perderam água. É assim porque “metade ocidental está exposta a águas quentes, que podem corroer rapidamente as plataformas de gelo a partir de baixo”, explicou Benjamin Davison, investigador da Universidade de Leeds, em Inglaterra, que liderou o estudo, citado num comunicado de imprensa.

Um exemplo disso é o caso da plataforma de gelo de Getz, onde só 5% das 1,9 biliões de toneladas de gelo perdidas entre 1997 e 2021 se deveram ao desprendimento de grandes pedaços do bloco original, que passam assim a flutuar de modo independente. Quase todo o volume perdido resultou do degelo na base da plataforma. No glaciar de Pine Island, um terço dos 1,3 biliões de toneladas debitados nesses 25 anos perdeu-se por desprendimento, mas o restante deveu-se ao derretimento do gelo.

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Imagem mostra a perda de gelo na plataforma de gelo de Getz ESA/Planetary Visions

No comunicado da Universidade de Leeds, o especialista fala de um “quadro misto de deterioração das plataformas de gelo”: é que o gelo da zona Oriental da Antárctida está “protegido das águas quentes por uma faixa de águas frias na costa”. Isso contribui para compensar o efeito do derretimento das plataformas de gelo a oeste: nos 25 anos em estudo, estima-se que quase 67 biliões de toneladas de gelo derreteram para o oceano, mas que 59 biliões de toneladas de gelo se tenham somado.

Portanto, ao contrário do que aconteceu no lado Oeste da Antárctida, a maior parte das plataformas de gelo no lado Leste mantiveram-se intactas ou até aumentaram a sua massa. É o caso da plataforma de gelo de Amery, que fica do lado Oriental da Antárctida — Getz e Pine Island ficam no lado ocidental — e está mais exposta a águas mais frias. Nas contas dos cientistas, o volume dessa plataforma aumentou no mesmo período de tempo em 1,2 biliões de toneladas de gelo.

Mas o que acontece exactamente? A Antárctida é um continente vasto e os mares no lado Oeste têm correntes oceânicas e ventos diferentes da parte Leste, o que leva também a temperaturas diferentes das águas por debaixo das plataformas de gelo.

“Há um cenário misto da deterioração das plataformas de gelo e está tudo ligado à temperatura do oceano e das correntes oceânicas à volta da Antárctida”, assinala Benjamin Davison, num comunicado da Agência Espacial Europeia (ESA, no acrónimo em inglês), que financiou o estudo através do seu programa de ciência de observação da Terra. “A parte Oeste está exposta a água que pode rapidamente corroer as plataformas de gelo por baixo, mas a maior parte do Leste da Antárctida está actualmente protegida por uma banda de água fria na zona costeira.”

Não era o que os cientistas julgavam que iriam encontrar ao analisarem mais de 100.000 imagens de satélite: inicialmente, os autores do estudo teorizaram que o gelo passasse por “ciclos de contracção rápida e de curta duração”, mas que depois crescesse lentamente. Em vez disso, encontraram sinais de que quase metade das plataformas (71 em 162, ou seja, 42,3%) está a diminuir “sem sinais de recuperação”, sumarizou Benjamin Davison, que é especialista em observação das regiões polares da Terra, citado no mesmo comunicado.

A Antárctida está a mudar

De acordo com o estudo, a variação natural dos padrões climáticos não explica totalmente estes resultados porque, se assim fosse, haveria sinais de crescimento do gelo nas plataformas da região ocidental. Mas há outro factor que estará a condicionar esse crescimento: o aquecimento global induzido pelos humanos. “Esta é mais uma prova de que a Antárctida está a mudar porque o clima está a aquecer”, alerta Anna Hogg, investigadora da Universidade de Leeds e co-autora do estudo: “O estudo fornece uma medida de base a partir da qual podemos ver outras alterações que podem surgir à medida que o clima aquece.”

Sem estas plataformas que rodeiam a Antárctida, e que são como “tampões” que abrandam o fluxo de gelo que derrete para o oceano, a taxa de perda de gelo dos glaciares aumenta. Se esse fenómeno culminar num desaparecimento ou numa diminuição significativa das plataformas de gelo, a Antárctida não será a única a sofrer as consequências: haverá “repercussões importantes” na circulação oceânica global, que transporta nutrientes, calor e carbono com origem neste ecossistema.

Como a água derretida a partir destas plataformas de gelo é doce, ela dilui a água salgada do oceano e torna-a mais doce e leve. Isso impede a água salgada (mais pesada) de afundar para o leito do oceano — um comportamento que “actua como um dos motores que impulsionam a correia transportadora oceânica”, explica o estudo.

“O estudo obteve resultados importantes. Temos tendência a pensar que as plataformas de gelo estejam ciclicamente em avanços e recuos. Em vez disso, vimos um atrito constante que leva ao derretimento e que partes do gelo se desprendam”, nota Anna Hogg.

Mark Drinkwater destaca ainda a importância deste estudo para a investigação das alterações climáticas na Terra. “A monitorização das alterações climáticas na vastidão da Antárctida requerer um sistema de satélites que recolhe dados de forma rotineira durante o ano”, salienta o cientista da ESA sobre este tipo de investigação. Já Noel Gourmelen salienta que a missão CryoSat, da ESA, tem sido uma “ferramenta incrível para a monitorização do ambiente polar”. “A sua capacidade para mapear de forma precisa a corrosão das plataformas de gelo permitiu esta qualificação rigorosa da perda de gelo.”