O que acontece no Ártico não fica no Ártico

Passei quatro dias no Ártico, numa expedição climática que juntou 24 mulheres de vários países e continentes. Sentimos que chegámos ao fim do mundo — ou ao princípio dele.

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Mais de quatro mil quilómetros separam Lisboa de Ilulissat, a terceira maior cidade da Gronelândia. Estamos a cerca de 350 quilómetros a norte do círculo polar ártico. É um território singular, habitado por cinco mil pessoas e três mil sled dogs ou cães de trenó. Contam-me que, há apenas alguns anos, o número de cães era superior ao de pessoas. O impacto das alterações climáticas na Gronelândia está a mudar a vida nesta região do mundo.

Passei quatro dias no Ártico, numa expedição climática que juntou 24 mulheres de vários países e continentes. Mulheres líderes em áreas tão distintas como complementares, como finança climática, sustentabilidade em empresas globais e em diferentes indústrias, como a moda e a alimentação, ciência climática, comunicação social e media, políticas públicas, filantropia, organizações não governamentais.

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Na origem desta viagem está a vontade de três instituições internacionais — Active Philantropy, Apolitical Foundation, The Club of Rome — e um grupo de mulheres extraordinárias. O desafio que me foi proposto era irrecusável. Observar o degelo no Ártico, experienciando profundamente o significado das alterações climáticas, ouvindo a ciência e os sons do planeta com um grupo de mulheres, sobre as quais quase nada sabia antes de partir.

A paisagem em Ilulissat é uma mistura única das cores quentes e fortes do edificado e do branco glaciar que domina o território. O icefjord (fiorde de gelo) de Ilulissat (Património da Humidade desde 2004) é um dos glaciares mais rápidos e ativos do mundo. Move-se cerca de 19 metros por dia e debita cerca de 40 quilómetros cúbicos de gelo para o mar. Em terra ou no mar, estamos rodeadas de “bergy bits”, pedaços do glaciar que flutuam na paisagem.

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Em Ilulissat, visitamos o Iceford Centre. Neste museu, desenhado pela arquiteta dinamarquesa Dorte Mandrup, genialmente integrado na paisagem, a arte junta-se à ciência para nos falar da importância do gelo. Formado há mais de 250 mil anos, o gelo que cobre 80% do território da Gronelândia é composto por múltiplas camadas que contam a história da humanidade e de grandes eventos naturais. Através do gelo, os cientistas compreendem melhor as alterações climáticas e como estas afetam a nossa vida.

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Partimos de barco para o Campo de Gelo de Eqi. Três horas numa paisagem de cortar a respiração, acompanhadas de “bergy bits” e icebergues de várias dimensões e inúmeras formas. Alguns parecem castelos, outros montanhas cortadas por grutas, muitos têm a forma de animais. Paramos de frente para o glaciar Eqi, com uma extensão de cinco quilómetros. Estamos rodeadas de blocos de gelo a flutuar na água e do som que fazem quando caem do glaciar.

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Sentimos que chegámos ao fim do mundo — ou ao princípio dele — quando subimos ao Campo de Gelo de Eqi, para aí pernoitar em cabanas de madeira a observar o glaciar. Aqui somos só nós e o glaciar, o telefone serve para captar imagens e sons. O som do gelo a soltar-se do glaciar é um som único, parece o som de uma trovoada suave. Domina a paisagem, parece tranquilo. Mas apenas ao longe. O som pode ser seguido de tsunamis. É um som que nunca esquecerei.

Aqui os dias correm mais lentos, talvez porque nunca é verdadeiramente noite. Mas a Gronelândia mostra-nos que o tempo para sermos lentos terminou. O som do gelo a cair no mar é o som do planeta a aquecer e a dizer-nos que não podemos continuar a ignorar a ciência climática.

A ciência climática é uma senhora com mais de 100 anos. Em 1856, Eunice Newton Foote demonstrou a absorção de calor pelo dióxido de carbono (CO2) e formulou uma hipótese: o aumento dos níveis de CO2 na atmosfera iria alterar o clima. Foi preciso mais de um século para que o seu contributo para a ciência climática fosse reconhecido, sendo hoje considerada a primeira cientista a formular a hipótese do mecanismo conhecido como efeito de estufa.

Nos últimos 100 anos, a concentração de dióxido de carbono na atmosfera subiu exponencialmente. A curva de Keeling (em homenagem ao climatologista Charles Keeling) é um gráfico que representa a concentração de dióxido de carbono na atmosfera terrestre. E a curva está a crescer acentuadamente, assim como a temperatura média global do planeta. As duas curvas evoluem em sintonia — sempre que uma cresce, a outra cresce também. E sabemos porquê. “O aumento das temperaturas desde final do século 19 não tem precedentes. É inequívoco que as atividades humanas estão a causar o aquecimento” (IPCC).

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Aqui, na Gronelândia, sentimos e ouvimos o impacto das atividades humanas no planeta. O aquecimento no Ártico é duas vezes superior ao aquecimento global médio e o ritmo do degelo também. A camada de gelo da Gronelândia é a segunda maior, a seguir à da Antártida. Se derreter totalmente, será responsável por 7,42 metros de subida do nível do mar. O degelo, que é particularmente rápido na Gronelândia, contribuiu até agora com cerca de 2/3 do aumento do nível do mar. Os inuítes testemunham-no há décadas, apelando a uma ação global para travar a subida da temperatura do planeta. Não os temos escutado.

A Gronelândia é um território cujas fronteiras são universais. O que lá acontece importa à humanidade. Também por isso, temos de escutar quem lá vive.

Durante os dias em que estive no Ártico, escutei, observei o impacto do aquecimento do planeta, aprendi com a ciência e a experiência de várias geografias, ouvi o som do gelo a cair no mar e pensei muitas vezes em Almada Negreiros e na Invenção do Dia Claro. “Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa — salvar a humanidade.”

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Quando eu nasci, a ciência climática já tinha escrito quase tudo sobre o que era necessário fazer — só falta fazer. Organismos internacionais mais ousados, governos mais ambiciosos, empresas mais corajosas, cidadãos mais empenhados. Precisamos de todos para fazer o que ainda não foi feito. Se continuarmos neste nosso passo lento, rapidamente chegará o tempo em que deixará de ser possível ouvir o impressionante som de um bloco de gelo a cair no mar, pela simples razão de que todo ele terá derretido e o mundo que conhecemos será uma imagem do passado.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico