Dificilmente um Outono chuvoso (que tarda a vislumbrar-se) poderá garantir água ao Aproveitamento Hidroagrícola do Mira (AHM) no próximo ano agrícola. Há três épocas que a Associação de Beneficiários do Mira (ABM) recorre ao volume morto da Barragem de Santa Clara, para assegurar as necessidades de rega, colocando uma questão de fundo: aonde se irá buscar a água para assegurar a campanha de rega de 2024? Está aberta a porta a um pesadelo social e económico sem paralelo.
As razões que sustentam a progressiva redução do volume de água na albufeira de Santa Clara estão registadas no Plano de Contingência para Situações de Seca (PCSS) que a ABM terá de executar. “As disponibilidades hídricas são inferiores às necessidades normais para rega”, circunstância que “exige a elaboração de um plano de acção que possibilite responder à emergência actual”, salienta o documento.
Não é apenas a falta de água que condiciona a sua gestão. A comissão administrativa da ABM, convidada pela ministra da Agricultura e Alimentação (MAA) para substituir a direcção eleita da associação, diz estar a encontrar dificuldades na obtenção de dados sobre quem de facto rega no AHM.
Explorada no volume morto
O Despacho n.º 5084/2023 de 21 de Abril explica por que foi tomada a decisão de suspender a direcção eleita: “O nível de água desta albufeira de Santa Clara tem vindo a descer a níveis de armazenamento muito baixos, estando esta, actualmente, a ser explorada no seu volume morto como resultado de sucessivos anos com reduzidas afluências”.
Perante este quadro de preocupante escassez hídrica na bacia do Sado, o ministério considerou urgente o “estabelecimento de medidas que visam assegurar a segurança hídrica do Aproveitamento Hidroagrícola do Mira”, para que seja garantida “a boa conclusão da campanha de rega de 2023 e a adequada preparação da campanha de rega de 2024”, que a direcção suspensa, segundo a ministra, não estaria em condições de assegurar.
O cumprimento desta orientação ministerial debateu-se, no imediato, com “dificuldades na obtenção de dados junto dos regantes e falta de consistência nos registos existentes” na associação. As lacunas detectadas obrigaram à contratação de uma empresa externa para fazer o levantamento das áreas regadas em produção no AHM.
Mas, apesar das dificuldades que diz ter revelado no acesso à informação sobre a área regada, a comissão administrativa descortinou um meio de lá chegar, recorrendo ao “conhecimento que os cantoneiros (funcionários da ABM) têm da área em produção”.
Necessidades reais em risco
A informação assim recolhida permitiu concluir que “as dotações de água em vigor (1800 m3/ha) não permitiriam assegurar as necessidades reais do ciclo cultural em curso” que decorreu entre 1 de Abril e 30 de Setembro. Era necessário garantir mais água, recorrendo à análise das inscrições efectuadas pelos agricultores, com intenção de regar, para apurar se as mesmas corresponderiam à área cultivada.
Partindo do pressuposto de que uma parte das inscrições para rega não teria sido efectivada, a comissão fez uma estimativa e concluiu que poderiam estar disponíveis cerca de 1.000.000 m3 de água e, “de imediato, foi redistribuído um volume adicional de 300 m3/hectares às áreas inscritas de culturas permanentes” para irrigar cerca de 3300 hectares, maioritariamente de frutos vermelhos (framboesa, mirtilos e amoras).
Contudo, estes 300 m3 “só resolveram o problema temporariamente”, garantiu ao PÚBLICO Manuel Amaro, presidente eleito da direcção da ABM suspensa pela MAA. Durante a sua gestão, tinha sido aprovada, em assembleia geral realizada em Novembro de 2022, a distribuição de 1800 m3/hectare a todos os agricultores inscritos para rega na campanha de 2023.
883 agricultores inscritos
Semanas depois de terem sido distribuídos os 300 m3, a comissão administrativa achou que ainda não chegava e decidiu atribuir uma nova dotação de 700 m3 destinada às culturas permanentes, perfazendo, no total, um abastecimento de 2800 m3, decisão que veio contrariar o critério que fora aprovado em assembleia geral da ABM, que aprovou a atribuição de 1800 m3/ha, inferior ao volume fornecido em 2021, de 2000 m3 /ha.
No levantamento efectuado pela direcção suspensa da ABM sobre os agricultores inscritos para a campanha de rega em 2023, havia 883 beneficiários, e cerca de 90% dos consumos (12,2 hm3) foram concentrados em 75 beneficiários, maioritariamente dedicados à produção de frutos vermelhos. Não é ainda possível apurar qual a área efectivamente regada. Regista-se sempre uma redução de áreas regadas entre o momento da inscrição e a concretização da rega.
Assim, para além da comissão administrativa ter aumentado os consumos de água dos 1800 m3 para os 2800 m3, contrariando a decisão da assembleia geral realizada em Novembro de 2022, optou por novos critérios: vai “deixar de ser atribuída uma dotação igual para todos os tipos de usos”, com o argumento de que os usos “não são igualmente prioritários e com necessidades de água equivalentes”, abrindo, desta forma, caminho à priorização das culturas permanentes em detrimento das culturas anuais. Sem acesso à água para rega ficam os agricultores precários, com explorações fora do perímetro de rega do Mira, que no seu conjunto ocupam uma área que em 2021 ultrapassou os 1000 hectares.
No entanto, a comissão administrativa acredita que as medidas restritivas aplicadas levarão a um consumo agrícola “estimado em cerca de 13 hm3 na campanha de rega” de 2023. Se assim for, terão sido poupados 1,3 milhões de m3.
E no próximo ano agrícola?
Faltam as explicações sobre o próximo ano agrícola: com que água e em que condições as grandes explorações vão reagir à eventual perda de milhões de euros em exportações. Em 2022, o volume de negócios com os frutos vermelhos ascendeu aos 230 milhões de euros.
“A água já não chega para as necessidades actuais, como é do conhecimento de todos os beneficiários”, salientou Manuel Amaro, frisando que a cota mínima de exploração determinada na segunda adenda do contrato de concessão dos recursos hídricos celebrado entre a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e a ABM, a 21 de Outubro de 2022, “limitava as captações à cota de 106” metros acima do nível do mar. Neste momento, a cota encontra-se nos 105,50.
O Relatório e Contas de 2022, reportando-se aos acontecimentos após a data do balanço da actividade da ABM, faz referência a uma reunião realizada no dia 16 de Março de 2023. Nessa reunião em que participou a APA, a Direcção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural (DGADR), o município de Odemira, a empresa Águas Públicas do Alentejo (AgdA) e a ABM, o vice-presidente da APA, Pimenta Machado, informou que “será aprovada a autorização para captação, na albufeira de Santa Clara, até à cota de 104 metros, mas com condicionantes”.
Acesso com condicionantes
As condicionantes que apresentou cingiam-se à redução do volume agrícola de 16 hm3 para 14 hm3, o que já acontece neste momento, à existência de uma reserva plurianual para abastecimento público, que já está considerada, e à apresentação de um plano de recuperação de cotas e aumento do volume armazenado, que está dependente da água que cair do céu.
No dia 2 de Setembro, o nível da água na albufeira de Santa Clara encontrava-se à cota de 105,5 metros acima do nível do mar e um volume de armazenamento de 151 hm3 quando a sua capacidade máxima atinge os 485 hm3.
Na acta da reunião da Assembleia Municipal de Odemira realizada a 9 de Dezembro de 2022, e consultada pelo PÚBLICO, o presidente da câmara, Hélder Guerreiro, informou os deputados municipais de que a ABM tinha solicitado à APA o “pedido formal de captação de água até à cota 90”, mas, a “autorização de captação que existe é até à cota 106”, precisou o autarca.
Manuel Amaro diz que a albufeira ao longo de meio século “nunca encheu mais de cinco metros” e que neste momento o nível de armazenamento está a mais de dez metros abaixo no nível de caudal morto, que se encontra à cota de 116 metros. “Teria de chover muito durante dois anos e sem consumo” para repor a água que falta na albufeira de Santa Clara. O presidente suspenso da ABM destaca um outro contratempo que pode alterar as contas do armazenamento efectivo da barragem: “O nível da sedimentação na albufeira poderá ter uma acumulação entre três e quatro metros de altura”.
O PÚBLICO solicitou esclarecimentos ao MAA, APA e à ABM, mas não foi dada resposta às questões colocadas.