Uma central fotovoltaica a nascer aos pés de ninho de águias-imperiais. Conseguirão conviver?
Empresa ajustou o desenvolvimento da obra após alerta do ICNF, mas ainda é uma incógnita se o casal das aves “criticamente ameaçadas” em Portugal continuará a nidificar ali
Visto de longe, o pinheiro é apenas mais uma árvore, junto a um pequeníssimo grupo de outras iguais a ela. Mas quando se chega lá perto vislumbra-se, bem assente no meio da copa, um gigantesco ninho. É ali que, nos últimos dois anos, um casal de águias-imperiais-ibéricas (Aquila adalberti) tem nidificado e é mesmo ao lado desta árvore que corre uma cerca que delimita a área onde está a nascer uma nova central fotovoltaica, em Castelo Branco. As obras arrancaram sem qualquer medida de mitigação do impacto sobre as aves que estão classificadas como “criticamente em perigo” em Portugal, mas, desde que soaram os alertas para a sua presença, houve mudanças. A questão é se os painéis solares e as águias conseguirão conviver.
Carlos Figueiredo, de 43 anos, segura os binóculos para observar o ninho que conhece bem. O funcionário do Hospital de Castelo Branco transformou a sua paixão de sempre por animais em algo mais sério, e há três anos que a ornitologia ocupa parte dos seus dias. Vai para o terreno, procura e fotografa diferentes espécies e foi assim que, em 2022, se deparou com o casal de águias-imperiais-ibéricas naquele ninho onde estavam, na altura, quatro crias já quase em condições de voar.
O problema é que mesmo ali ao lado, no terreno que tem um alvará emitido à empresa Cortesia Versátil, andava uma máquina a partir os afloramentos rochosos típicos da região, preparando o terreno para vir a receber os painéis solares que vão passar a fazer parte da paisagem.
“Fui falar com o senhor da máquina e perguntei se não podia ir partir a pedra que estava na outra ponta do terreno, porque ali havia um ninho com crias de águia-imperial. Elas já tinham plumagem de voo e, quando se assustam, têm tendência a saltar do ninho e podem não sobreviver. No mesmo dia falei com o Carlos [Pacheco, biólogo] e ele falou com o ICNF [Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas]”, conta.
Carlos Pacheco, investigador do Biopolis/Cibio — o Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto e colaborador do grupo de trabalho da águia-imperial-ibérica do ICNF, conhecia bem aquele ninho e o casal que diz ser “um dos mais produtivos de Portugal”. Ele tinha descoberto a estrutura em 2017 e sabia também que o ninho tinha sido trocado por outro, a menos de dois quilómetros, depois de ter ficado afectado, em 2018, na sequência de uma tempestade.
“Reproduziram-se no outro ninho durante vários anos, mas em 2022 regressaram a este. Este casal ‘tira’ sistematicamente três crias todos os anos e no ano passado ‘tirou’ quatro crias de forma espontânea, algo que só tinha acontecido uma vez em Portugal e numa situação que não é comparável. Tinha sido com um casal no Alentejo, que está ao lado da reserva do lince-ibérico, onde são deixados coelhos para os alimentar. Elas só tinham de descer e apanhá-los. Mas, em Castelo Branco, o casal ‘tirou’ quatro crias sem qualquer ajuda”, salienta.
Por isso, quando, em finais de Junho do ano passado, soube do que se estava a passar junto à árvore perto do Aeródromo de Castelo Branco, contactou o ICNF, perguntando se a obra em curso não tinha sido detectada durante o trabalho anual de monitorização da espécie; que medidas de mitigação tinham sido tomadas; e se tinham sido salvaguardadas as condições para que a águia-imperial continuasse naquele território, nomeadamente, a disponibilidade de coelhos que elas caçavam, com grande preponderância, precisamente no terreno onde vai nascer a central fotovoltaica. “Nunca tive resposta”, diz.
Alerta em Janeiro de 2022
Apesar deste silêncio, o ICNF já estava a par da existência do ninho e de ele estar a ser utilizado pelo casal de águias, segundo confirmou a instituição ao PÚBLICO. Numa resposta escrita, o ICNF diz que, durante a monitorização das águias-imperiais, em Janeiro de 2022, se deparou com trabalhos, licenciados pela autarquia, “de desmatação e arranque de oliveiras”, tendo a empresa “sido alertada” para que não prosseguisse com os trabalhos nas imediações do ninho.
Em Junho (o ICNF não especifica se foi depois de alertas recebidos, como o de Carlos Pacheco) a empresa da central fotovoltaica foi notificada para “suspender até meados de Julho a realização dos trabalhos de modelação do terreno, com vista à salvaguarda da integridade do local”, acrescenta-se na mesma resposta.
Em Novembro, foi feito novo contacto com a empresa, para que fizesse “os ajustes necessários” para não perturbar o habitat da espécie. Carlos Machado, engenheiro florestal da empresa que está a construir a central fotovoltaica, confirma que o ICNF interveio no processo ainda em 2022. “Quando começaram os trabalhos, não sabíamos da existência do ninho. Fomos alertados por vigilantes da natureza e nessa altura ajustámos a actividade. Os trabalhos estão a ser coordenados com o ICNF e o que está definido é que a construção pára entre Janeiro e Julho. Já foi assim e vai acontecer de novo no próximo ano”, garante.
É essa, aliás, a razão para o atraso visível no avanço do projecto, diz. O alvará previa que a construção fosse realizada entre Outubro de 2022 — antes, conforme se viu, já existiam trabalhos de preparação do terreno — e Dezembro deste ano, mas o mais provável é que os trabalhos se estendam por cerca de um ano mais. Certamente, apanhando mais uma época de nidificação do casal de águia-imperial.
Ao telefone, num tom algo irónico, Carlos Machado ainda assegura: “Fomos os únicos a ajustar a nossa actividade, todas as outras actividades económicas que ali ocorrem — agrícola e abate de árvores, o aeródromo — continuam a actuar normalmente”.
Debaixo do sol escaldante da tarde desta quinta-feira do final de Setembro, Carlos Figueiredo diz que o nível de perturbação de máquinas a laborar o dia inteiro ao lado do ninho e aquele que é causado pelo aeródromo não são comparáveis. “O movimento no aeródromo é esporádico, só muito de vez em quando pára aqui alguma avioneta. O maior movimento é no Verão, com os Canadair de combate aos incêndios, mas nessa altura as águias já nem estão cá”, conta.
Tal como agora. Carlos Figueiredo espera que o casal comece a aparecer por ali de novo em finais de Novembro, para “avaliar” a probabilidade de regressar ao ninho. Se o fizerem, passarão depois vários meses por ali, a cuidar das crias que (espera-se) hão-de nascer, até estas estarem prontas para voar, naquele que é o período mais crítico para as aves, em termos de eventuais perturbações. Quando as crias estão aptas para voar, diz o biólogo Carlos Pacheco, são os próprios pais que os incentivam a abandonar o ninho. No Verão, as águias-imperiais partem, espalhando-se por áreas mais vastas.
O facto de o casal ter regressado ao ninho este ano foi um bom sinal, assegura Carlos Pacheco. “Parece que a restrição de obras funcionou, porque elas voltaram a ocupar o ninho”, diz. Mas a possibilidade de o mesmo voltar a acontecer quando a central estiver a funcionar é algo em que o investigador não apostaria muito. “Aquilo vai estar demasiado próximo do ninho e era um território de caça para elas espectacular. Acredito que a perturbação vá ser alta. Mas, como é um casal tolerante, que já está habituado a alguma perturbação, até pela proximidade do aeródromo, só quando a obra estiver a funcionar é que se vai saber”, admite.
Em contraposição, o responsável da empresa da central fotovoltaica explica que os painéis não vão ser colocados até ao extremo do terreno mais próximo do ninho, terminando a alguma distância, e que o espaço vedado com cerca de 80 hectares terá “um uso múltiplo”, em que irá conviver “gado, manchas de matas florestais e os painéis”.
Já sobre a incongruência de uma das espécies prioritárias do país e das mais ameaçadas estar ali, ao pé da central, sem que tenha havido qualquer alerta prévio ou conhecimento por parte da empresa, Carlos Machado limita-se a dizer que a obra tem o licenciamento necessário.
Sem necessidade de parecer
A resposta estará na informação que a Quercus tornou pública, em Dezembro, quando lançou um alerta sobre este caso e também o de uma outra central fotovoltaica no Fundão que terá destruído árvores com ninhos de cegonha-branca (Ciconia ciconia).
No comunicado, a associação ambientalista referia que fora das áreas protegidas ou das zonas especiais de conservação, os projectos de centrais fotovoltaicas com capacidade de produção inferior a 50 megawatts “apenas carecem de licenciamento da DGEG — Direcção-Geral de Energia e Geologia”, não precisando de qualquer parecer da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) ou do ICNF.
O PÚBLICO questionou a APA sobre esta matéria, que remeteu esclarecimentos para o ICNF. Já este confirma que, não estando o projecto “em áreas do sistema de áreas classificadas”, não é “necessário a emissão de parecer do ICNF”.
Carlos Pacheco mostra-se incrédulo perante este facto. “Fico surpreendido por haver projectos que passam ao lado da avaliação destas entidades, sobrepondo-se a todos os valores naturais que devem ser preservados. Estamos a falar de uma espécie prioritária e que a Directiva Aves impede que possa ser perturbada”, diz.
O biólogo recorda outro caso ocorrido há alguns anos, envolvendo um casal de águia-imperial-ibérica, no Alto Alentejo, em que as pequenas manchas de eucaliptos em que tinham dois ninhos foram abatidas, ficando de pé apenas as duas árvores usadas pelas aves. Os ninhos foram abandonados, face à desprotecção total em que foram deixados, diz.
Na década de 1980 a espécie foi considerada extinta no país, enquanto reprodutora. Os dados mais recentes do ICNF, relativos a 2020, apontam para a existência de 841 casais reprodutores na Península Ibérica, 21 dos quais em Portugal, onde também foram identificadas 20 crias voadoras. Em 2017 tinham sido detectados apenas 13 casais reprodutores no Alentejo.
Apesar de a evolução ser animadora, Carlos Pacheco salienta que estamos a falar ainda de “um número muito, muito pequeno”.
Em Castelo Branco, onde estima que existam agora apenas três casais de águia-imperial (já foram cinco há alguns anos, antes de a população de coelhos ter sido dizimada pela febre hemorrágica que atacou a espécie), garantir a presença destas aves fortemente ameaçadas parece exigir ainda mais cuidados. Sobretudo numa altura em que às ameaças já conhecidas — envenenamento, abate a tiro ou choques com linhas eléctricas — se junta a presença de empreendimentos como o que está a crescer junto ao aeródromo, que implica mudanças profundas no território.
O biólogo defende que, conhecendo o ICNF a localização dos ninhos desta espécie, deveria ser impossível o avanço de empreendimentos na sua envolvente sem a respectiva avaliação do instituto. “Era fundamental que isso acontecesse”, defende.
Sem essa obrigatoriedade, o ICNF garante que vai continuar a monitorizar o cumprimento dos ajustes que foram acordados com a empresa, para que a próxima época de nidificação seja tão bem-sucedida como as anteriores. Se vai resultar e as águias-imperiais continuarão a escolher aquele pinheiro de tronco algo curvado para nidificar, é algo que só o tempo mostrará.