Restos de terra nos olhos
Deitamo-nos quando o dia acaba e os nossos sonhos enchem-se de terra, da voz grossa da terra, da terra cheia de mortos, ouvimo-los todos. É de pedra a nossa dor.
Sentada sem nada dizer, ao lado da Celeste, era isto que se ouvia encostando o ouvido ao silêncio da criada do advogado: estas montanhas são feitas do nosso sangue e a nossa dor é de pedra, aqui somos verticais como árvores. Só nós sabemos como cai na terra uma flor, só nós ouvimos o murmúrio da terra que a chama e a consome, porque essa mesma voz preenche os nossos sonhos, noite após noite. Deitamo-nos quando o dia acaba e os nossos sonhos enchem-se de terra, da voz grossa da terra, da terra cheia de mortos, ouvimo-los todos. É de pedra a nossa dor. Aqui somos. O que diz a terra? Chama-nos para, por fim, podermos dormir, porque isso nunca nos foi dado: só o trabalho, mas nunca dormir, jamais descansar, temos sempre de pegar no choro dos outros e embalá-lo como recém-nascidos, dar-lhes de mamar. Nunca tivemos o privilégio do sono, saímos do trabalho diário directamente para os sonhos de terra, para nos levantarmos de madrugada, lavarmos o rosto com água fria, ajeitando as rugas do tempo e limpando os cantos dos olhos dos restos de terra que ficam dos sonhos. As montanhas da serra somos nós, são feitas do nosso sangue e o seu cume, o ponto que toca o céu, são os nossos cabelos. Aqui somos. É isto que se ouve quando encostamos o ouvido à terra.
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