Dar voz à transição para uma economia mais circular

Reforçar sinergias entre empresas de vários sectores para transformar os resíduos em recursos. Esta foi uma das muitas conclusões da Conferência da Associação Smart Waste Portugal, realizada há dias.

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Compreender a conexão essencial entre o uso sustentável de recursos e a redução de emissões, dando destaque às oportunidades económicas, ambientais e abordagens inovadoras para enfrentar os desafios energéticos e climáticos actuais foram alguns dos pontos de debate da Conferência “Energia e Economia Circular”, organizada pela Associação Smart Waste Portugal (ASWP) e realizada no Auditório da EDP, em Lisboa, no passado dia 26 de Setembro.

Miguel Stilwell d’Andrade, CEO da EDP, afirmou que a empresa está altamente focada no tema da transição energética. “A EDP, em 2005, tinha 20% de energia renovável e 80% era energia térmica. Hoje, é exactamente o inverso. 85% da nossa energia é energia renovável e só 15% é energia térmica”, contextualizou, anunciando o compromisso de sair do carvão até 2025, de ser 100% verde até 2030 e net zero até 2040. “Só trabalhando de forma colectiva é que vamos conseguir ter uma economia mais circular e mais sustentável”, sublinhou.

Para o presidente da Direcção da ASWP, Aires Pereira, que também participou na sessão de boas-vindas, esta conferência permitiu chamar a atenção para o aspecto da desclassificação de resíduos que faz toda a diferença sob “o ponto de vista da economia circular e da possível reutilização de materiais que hoje são resíduos e que podem ser matérias-primas secundárias”. Assistimos hoje àquilo que é o atraso de Portugal e da União Europeia (UE) no que respeita à menor utilização de matérias-primas virgens. “Estamos a viver já à custa do próximo ano praticamente desde o final de Maio. Quer isto dizer que esgotámos aquela que era a nossa quota de recursos para este ano.”

Também Aires Pereira defende que só o trabalho conjunto trará resultados positivos para um futuro mais sustentável e mais circular. “Vivemos um momento determinante da História, no qual, a sustentabilidade e a preservação dos recursos naturais se tornaram imperativos e incontestáveis”.

É preciso repensar a forma como produzimos, consumimos e gerimos os nossos recursos. Mas também é crucial potenciar os nossos resíduos enquanto recursos e resposta para os actuais desafios. A ASWP, fundada em 2015, conta com 151 associados, e tem como missão criar uma plataforma para envolver todos os agentes do sector, potenciando e valorizando o resíduo como um recurso económico e social, e criando condições para uma maior capacidade de reagir a novos factores nacionais e internacionais, de forma competitiva, actuando em toda a cadeia de valor.

“Temos todos de mudar de vida”

Para o secretário de Estado do Ambiente, Hugo Pires, Portugal não pode perder esta transição, enquanto motor estratégico que garanta que a economia nacional continue a crescer de forma sustentável “assegurando maiores níveis de bem-estar para todos”. Os resíduos são recursos que “devidamente valorizados, podem e devem ser reintroduzidos na economia, reduzindo o consumo de matérias-primas virgens, de energia ou de água para novos produtos”, salientou.

Esta visão tem também guiado a UE através da adopção do novo Plano de Acção para a Economia Circular da Comissão Europeia e que constitui um dos principais alicerces do Pacto Ecológico Europeu. “Foi com este enquadramento que publicámos o PERSU (Plano Estratégico para os Resíduos Urbanos) 2030, materializando-o na política nacional de resíduos”, avançou, adiantando que este é um caminho que não é simples porque o nosso País “tem mesmo de acelerar o seu esforço no que toca à redução de produção de resíduos, ao aumento da percentagem de resíduos reciclados e à redução drástica da deposição de resíduos em aterro”, defendeu Hugo Pires. Portugal está atrasado “neste esforço de convergência com os restantes Estados-Membros da UE”.

O PERSU 2030 garantirá a aplicação da política de gestão de resíduos urbanos, orientando os agentes envolvidos para a implementação de acções alinhadas pela UE e contribuirá para a prevenção de resíduos, para o aumento da preparação para reutilização, para a reciclagem, para outras formas de valorização de resíduos urbanos e para a redução do consumo de matérias-primas primárias e desvio de resíduos de aterro, salientou o secretário de Estado do Ambiente. No final da sua sessão de abertura, referiu os objectivos deste Plano e confirmou que “o governo tem previstos, 500 milhões de euros para a política de resíduos, no PT2030”.

O governo quer estar ao lado da indústria, dos sistemas, do sector que promove esta valorização energética. Sabe-se que 40% dos resíduos indiferenciados são biorresíduos. “A grande aposta que faremos no próximo ano – e que entrará em vigor – é a Política de Recolha dos Biorresíduos.” Hugo Pires acrescentou ainda: “Estamos muito perto de anunciar e publicar o Unilex com as novas licenças das entidades gestoras que darão uma nova ambição para este sector e avançaremos também com um Sistema de Depósito e Reembolso que contribuirá decididamente para que a reciclagem de muitos materiais seja cada vez mais eficaz. Temos todos de mudar de vida”, defendeu Hugo Pires. “Há que sensibilizar as nossas famílias e os nossos amigos para a necessidade da reciclagem e do reaproveitamento dos materiais”, concluiu.

Crise das matérias-primas e da energia

Antes dos dois painéis de discussão com representantes de várias empresas do sector, a Conferência da ASWP contou com dois keynote speakers que abordaram o tema “A crise das matérias-primas e a crise energética”. Maria Isabel Soares, professora emérita da Universidade do Porto, defendeu uma “visão política e económica, mas também de pragmatismo e de sistematização num contexto económico-financeiro muito complexo e volátil em que tudo muda”. A professora assinalou que “esta transição verde vai tornar-nos menos dependentes dos combustíveis fósseis, mas vai exercer uma pressão muito grande sobre a produção e o comércio internacional de outro tipo de matérias-primas”.

A OCDE alertou que, este ano, o aumento da utilização das tecnologias verdes poderá ter impacto nas matérias-primas críticas. “É absolutamente assustador”, referiu a oradora. “A evolução tecnológica é aceleradíssima e, por vezes, a dinâmica tecnológica e a dinâmica política e geoestratégica têm uma décalage que pode ser muito complicada e pode prejudicar os objectivos que estão desenhados a nível da Comissão Europeia”, referiu.

Por outro lado, o aumento dos preços de matérias-primas críticas origina “o agravamento da inflação”. Quando se compara o período de 2012 a 2014 com o de 2017 a 2019, a professora denota um aumento da concentração da produção de matérias-primas críticas. “Em conclusão, estamos numa situação complexa e altamente dinâmica em termos tecnológicos, em que a acção política e económica tem de acompanhar através das políticas coordenadas, da regulação e do apoio à economia.” Estamos num contexto geopolítico e económico altamente instável, com alterações profundas e numa fase de desaceleração e estagnação do PIB, o que nos deve preocupar. “As incertezas são várias e o planeamento de políticas e de orientações está a basear-se em algumas previsões altamente incertas”, rematou. Os próximos dois, três anos são fundamentais para cumprir os objectivos, mas, na opinião de Maria Isabel Soares, “a Europa está muito atrasada relativamente aos EUA e à China”.

Seguiu-se a apresentação de Jorge Vasconcelos, presidente da NEWES - New Energy Solutions que se referiu à crise energética. À margem do evento, em declarações ao Público, explicou que “temos de aproveitar os recursos endógenos de uma forma integrada, olhando para a realidade de uma forma diferente, o que significa que deve ser dada maior atenção à realidade local, observando os princípios, as regiões, e procurando encontrar um equilíbrio adequado dentro de cada uma dessas áreas”.

A evolução depende de muitos factores. “Por um lado, precisamos de ter sistemas técnicos que nos permitam, por exemplo, fazer a integração de sectores que até aqui estavam dissociados, mas também de factores institucionais, de instituições que promovam o alinhamento dos incentivos para que os agentes, as pessoas, as famílias e as empresas actuem no sentido de uma maior integração, de uma maior eficiência, na perspectiva da redução das emissões de gases com efeito de estufa, em particular, mas, em geral, de uma mais eficiente utilização dos recursos naturais”, afirmou.

Em algumas áreas no desenvolvimento de soluções técnicas, “Portugal tem sido pioneiro, mas, em outras, não está na linha da frente”. Do ponto de vista institucional e do ponto de vista legislativo, algumas iniciativas também têm sido vanguardistas, mas Jorge Vasconcelos sublinha que um dos problemas do nosso País é a “a pouca velocidade na passagem das ideias ou mesmo dos diplomas de enquadramento jurídico para a prática”. Elogiando os recursos naturais de “excelente qualidade”, quando comparados com outras regiões da Europa, o orador é da opinião que ao nível de investigação e de desenvolvimento, existe a capacidade de transformar esses mesmos recursos naturais numa mais-valia para as nossas comunidades e para a economia nacional”.

Com as políticas da UE focadas no aproveitamento sistemático das vantagens potenciais de uma economia circular “importa desmontar as barreiras e atentar que o alinhamento dos incentivos fiscais, dos subsídios e das decisões que são tomadas localmente e, a nível nacional, devem estar coordenadas com esse projecto”, conclui Jorge Vasconcelos.

Exemplos de boas práticas

Com moderação de Andreia Barbosa, o primeiro painel juntou alguns oradores para abordar as iniciativas nas empresas que representam, dentro da estratégia de descarbonização da indústria como motor da economia circular. Carlos Abreu, da Secil, abordou a questão do elevado preço do hidrogénio. “É preciso que os políticos percebam que têm de injectar dinheiro no negócio.” O orador referiu ainda que os queimadores que a Secil utiliza no forno de cimento são dos mais desenvolvidos que há. “Antigamente, os queimadores tinham muita massa de ar e pouca velocidade de ar. Neste momento, têm muita velocidade de ar e menos quantidade de ar. São os chamados queimadores de alta impulsão, do melhor que existe no mercado. Estamos mais limitados do ponto de vista tecnológico.”

Cátia Carreira destacou as seis empresas pertencentes à Vista Alegre Atlantis, todas elas situadas em Portugal. “A cerâmica tem desenvolvido um conjunto de acções muito interessantes nesta temática há muitos anos. Somos altamente dependentes de energia, mas também focados em gás natural. Estamos a fazer um compasso natural para trabalhar com outros gases.” Relativamente à possibilidade do hidrogénio, apesar de considerar interessante, defendeu que é preciso adaptar todos os processos produtivos e os próprios fornos. “Algo bastante interessante é a questão do biometano em substituição de uma parte do nosso consumo de gás natural, mas não estamos só dependentes de nós. Em Portugal, relativamente à Europa, estamos bastante atrasados.” A empresa está a firmar sinergias, para que em 2027, esta substituição seja uma realidade.

Pedro Couto, da EDP Geração, referiu que para atingir os objectivos do Acordo de Paris sabe-se que “o combate às alterações climáticas exige uma aceleração do ritmo de descarbonização na economia mundial em cerca de cinco vezes comparativamente ao ritmo actual”. A EDP tem contribuído “de uma forma positiva e num esforço global e colectivo”, destacou. A estratégia de economia circular passa por maximizar os recursos, a sua eficiência e por aproveitar ao máximo, as condições que as energias renováveis dão”. Nesse sentido, a empresa tem apostado no “fecho progressivo das centrais termoeléctricas e, ao mesmo tempo, adicionando capacidade de renováveis e, ainda, na electrificação do consumo, promovendo a inovação, produtos novos e soluções de baixo carbono”.

Este painel destacou ainda os serviços de mobilidade, com a participação de Franco Caruso, do Grupo Brisa. “Os transportes têm um peso muito grande relativamente ao consumo de energia e às emissões associadas ao inventário nacional de carbono, que é de 3 a 4% acima ao valor daquele que é o valor da UE e à escala global.” O esforço da empresa centra-se em “ganhos de eficiência nas operações, no desenvolvimento de uma capacidade de auto-consumo de energia e de electrificação das operações e da frota”.

Uma vez que o plástico nas embalagens coloca muitas questões ao nível da reciclabilidade, Henrique Monteiro, da Vidrala, afirmou que o aumento da procura do vidro tem sido paulatino ao longo dos anos. “Não estamos a falar de mudanças bruscas na procura. É verdade que o vidro é claramente diferenciador e um produto nobre, mas também sabemos que, enquanto, consumidores, não nos comportamos assim.”

Em termos de vidro, há material 100% reciclável que pode ser moldado inúmeras vezes sem perder nenhuma das suas propriedades. “O mercado tem noção das potencialidades do vidro. No que respeita à utilização de vidro reciclado, enquanto País, não podemos estar orgulhosos da nossa taxa de reciclagem [em Portugal, é inferior a 60%, enquanto nos outros países da Europa Central, os valores andam na casa dos 80-90%]. Existem metas muito claras para dar a volta a este assunto”, referiu o responsável. E, adiantou ainda que “é importante fazer uma reflexão mais profunda sobre o desenho adequado do Sistema de Depósito com Retorno para evitar que outros materiais de embalagem que sejam muito menos ecológicos tenham uma vantagem mais competitiva relativamente ao vidro”.

O resíduo como recurso para a produção de energia

No segundo painel desta conferência, os oradores também deram a conhecer alguns dos seus projectos e experiência acerca do contributo dos resíduos para a descarbonização. Anabela Antunes, da PRIO Bio, adiantou que esta empresa começou como uma fábrica de biodiesel. “Os biocombustíveis nunca foram levados a sério na transição energética dos transportes, mas a verdade é que têm um papel fundamental porque não precisam de nova infraestrutura e de toda a capacidade que está instalada e que nós podemos usar. Praticamente todos os carros e os motores em combustão estão preparados para usar biocombustível.” A PRIO tem apostado na economia circular e foi desenvolvendo um processo de investimento de optimização tecnológica para trabalhar com 100% de matérias-primas residuais, como “os óleos alimentares usados e outros da indústria alimentar que são possíveis de processar com a tecnologia da empresa”, adiantou.

Fernando Leite, da Lipor, começou por contextualizar o facto de a empresa pertencer aos oito municípios da área Metropolitana do Porto. “O nosso foco foi no sentido de gerir os resíduos que são produzidos na região do Grande Porto, uma área muito concentrada.” Para a Lipor, o resíduo é efectivamente “um recurso” e começou a ter um forte vínculo às Câmaras Municipais (CM) associadas. “Há uma perfeita ligação entre a Lipor e as CM e começámos com a Fábrica dos Compostos para a Agricultura que trata de cerca de 160 000 toneladas de material de origem orgânica que depois convertemos em cerca de 12 000 toneladas de produtos que vendemos para a agricultura”, explicou. Além disso, a Lipor desenvolve novos produtos em vários sectores.

A Floene está presente em mais de 100 concelhos do território nacional, estando comprometida com o tema da descarbonização. “Temos gás natural desde 1997, mas não deixa de ser um combustível fóssil, ainda que seja o mais limpo”, explicou Nuno Nascimento. “Acreditamos que está criado o momento, as bases estão cá, há metas europeias a cumprir e temos todos de olhar para os recursos endógenos, como o biometano”, defendeu. Além de se falar da descarbornização da electricidade, é preciso falar da descarbornização do gás natural. “Estamos a começar tarde. Queremos acreditar, enquanto operador da rede de distribuição, que vamos descarbonizar a nossa infraestrutura, com as metas e a ambição que temos.”

Com a presença em cinco continentes, a Veolia Portugal tem dados de 2021 que são indicadores do caminho que tem traçado nestes temas e que confirmam que distribuiu “água potável em 79 milhões de habitantes em todo o mundo, tratou o saneamento de 61 milhões de habitantes, valorizou 48 milhões de toneladas de resíduos e produziu cerca de 48 milhões megawatts / hora”, assinalou Sandra Silva. “Queremos evoluir, mas dissociar este consumo de recursos com a nossa actividade e estes números mostram a responsabilidade que temos, pois trabalhamos os recursos de muitas indústrias.” A empresa tem como pilares desenvolver soluções que combatam a poluição, descarbonizar os modos de vida e suportar a digitalização crescente.

Carlos Coelho, em representação do Grupo Greenvolt, apresentou a empresa que tem cerca de dois anos de existência e que actua em energias renováveis. “Temos como pilares, a produção de energia renovável através de recursos de biomassa; a produção de energia renovável através de grandes instalações – solares e de vento -, e por último, a produção descentralizada, onde temos um grande portefólio dessas instalações contratadas em Portugal e em alguns países na Europa”.

Luísa Magalhães, directora executiva da ASWP teve a seu cargo o encerramento da Conferência e destacou que a sua organização “foi um marco importante para a associação, uma vez que reuniu especialistas do sector, policy makers, para abordar desafios e oportunidades urgentes que aliam os princípios da economia circular e da energia”. Atingir 10% de deposição em aterro é uma meta muito ambiciosa, mas “os resíduos têm muito potencial de valorização e a energia poderá ser um deles”, sublinhou. A este propósito e à margem do evento, Aires Pereira reforçou que o valor de Portugal na deposição de resíduos em aterro é de 56, 58%. “Não iremos conseguir atingir essa meta se não houver aqui um esforço colectivo para podermos arranjar alternativas. Não podemos continuar a viver desta forma sob pena de hipotecarmos o futuro”.